Os pátios da ditadura – A saúde mental durante o regime militar

Durante os anos ditatoriais no Brasil, se firmou a “indústria da loucura”, que tornou lucrativo tortura e assassinato de pessoas nos parques manicomiais do país

Por Carolina de Mendonça

“Eu vi o inferno! Eu vi o inferno! Eu vi uma cidade viver às custas do Paracambi. Viver às custas de um hospital psiquiátrico. Eu vi a cidade, prefeitos, secretários […] os corpos sendo dilacerados e você sem saber”. Assim o angiologista Laerte Andrade de Vaz Melo descreve a Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi (RJ), o maior hospital psiquiátrico privado do Brasil, durante o século XX.

O médico atuou como presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), quando a entidade foi reaberta no período de redemocratização, e também participou do fechamento de manicômios durante a Reforma Psiquiátrica. O horror descrito pelo médico era o padrão da saúde antes da Reforma Sanitária – que levaria à criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Os manicômios tiveram expressivo aumento de investimentos públicos e pessoas internadas durante os 21 anos que sucederam o golpe empresarial-militar ocorrido em 1º de abril de 1964, dia em que as tropas tomaram o Forte de Copacabana e João Goulart deixou Brasília. Um crescimento vertiginoso e hediondo que ficou conhecido como “Indústria da Loucura”.

Normalidade aparente

A ditadura brasileira buscou demonstrar para o exterior e a uma parte da classe média despolitizada, uma situação política habitual. Os atos institucionais cerceavam algumas das liberdades culturais e políticas da população, ao mesmo tempo em que buscavam manter a aparência democrática.

Havia alternância de governantes, mas o voto era direto apenas para deputados e vereadores. Os partidos políticos foram extintos e reduzidos à Aliança Renovadora Nacional (Arena) e ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Sindicatos e entidades políticas profissionais, como conselhos de classe, eram amordaçados e, por vezes, fechados. Agremiações e grupos da esquerda radical eram considerados organizações terroristas e tiveram seus membros perseguidos, exilados, torturados e mortos. 

A instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5) inicia o período mais repressivo dos governos militares, chamado de “anos de chumbo” – que durou entre os anos de 1968 a 1974. Artistas e jornalistas, alguns dos setores da sociedade capazes de sistematizar e divulgar denúncias contra o regime ditatorial, foram duramente perseguidos. Órgãos de censura avaliavam detalhadamente tudo que era produzido antes de ser colocado a público, respeitando as morais e os bons costumes. Com isso, diversas obras foram drasticamente modificadas e até perdidas, enquanto jornais amanheciam com receitas de bolo para cobrir o espaço de notícias e reportagens consideradas “subversivas”.

Cerceando a possibilidade de acusações públicas, com uma “melhora milagrosa” da economia e o futebol, grande paixão nacional, sendo utilizado para reforçar o patriotismo com a vitória na Copa de 1970, não se percebia que o país passava por enormes problemas, com o acirramento das desigualdades sociais – essas que impactavam diretamente a saúde da população.

Na década de 1970, houve uma epidemia de meningite no Brasil e o governo buscou omitir os perigos da doença, evitando medidas de cuidado com a população, além de censurar dados sobre infectados e mortos – números que são incertos até os dias atuais.

Espaços disciplinares

O psiquiatra Edmar Oliveira, que participou de fechamentos de manicômios no estado do Rio de Janeiro, contou em entrevista que o objetivo desses espaços é “despir o indivíduo de toda sua individualidade”, além de “transformar ele [indivíduo] em um igual aos outros”.

O regime militar brasileiro cumpria uma agenda moral; temas como sexo, aborto, homossexualidade, pautas raciais, alcoolismo, uso de substâncias psicoativas e até mesmo palavrões eram tidos como subversivos. Aqueles que buscavam transgredir a hipocrisia da época sofriam retaliação e poderiam ser classificados como loucos, dentro de uma lógica psiquiátrica normativa e moralista.

Mulheres que decidiam por abortar, bêbados, pessoas que se relacionavam com outras do mesmo gênero, pessoas que transgrediam o gênero, que feriam a moral monogâmica, que tinham crenças diferentes das cristãs, que se colocavam contra as discriminações raciais – qualquer um, poderia ser internado em hospícios, desde que a lógica sanitária vigente julgasse que o sujeito deveria ser escondido atrás de grandes muros afastados dos centros.

Edmar Oliveira analisa que quanto mais autoritário o regime, mais cerceada é a loucura. Os tidos como insanos são menos ouvidos e mais maltratados. No manicômio, não se perde apenas a liberdade, mas também a humanidade e a capacidade de gerir sua própria vida.

As pessoas que eram levadas aos manicômios, nem sempre tinham, de fato, alguma patologia, mas naquele espaço, desenvolviam diversos adoecimentos psíquicos. O psiquiatra comenta: “o hospício provoca o que chamamos de iatrogenia [efeito negativo de tratamento mal conduzido] muito grave, porque vários dos sintomas de quem passou 30, 40 anos internado, já não podia atribuir o sintoma à doença, mas ao ‘tratamento’, ao isolamento que aquelas pessoas estavam”.

A perda de noção de tempo e espaço, o afastamento brusco da vida em sociedade, a diminuição significativa do contato com a família e até a perda total dessas relações, levam a um sofrimento psíquico, que pode desencadear uma psicopatologia.

Levantamento realizado com os internos da Casa de Saúde Dr. Eiras, em 1997, mostrou que mais de 42,7% moravam no hospital e não tinham domicílio fora, enquanto 36,5% estavam lá por mais de uma década e 73,8% não saiam da unidade hospitalar. Para o psiquiatra, o hospício é “absolutamente anti-terapêutico”. 

Indústria de torturas

Sobre a Casa de Saúde Dr. Eiras, o médico Laerte Melo comenta que “Paracambi foi um escândalo de tal magnitude, porque esse hospital tinha ligações com o passado da ditadura”. Na ocasião, o angiologista se referia ao caso de Leonel Tavares de Miranda, que esteve à frente do Ministério da Saúde entre os anos de 1967 e 1969 e se tornou proprietário do espaço. 

O manicômio localizado em Paracambi chegou a ser a maior unidade particular do mundo, chegando a ter dois mil leitos ocupados. O projeto inicial contava com 400 leitos. Apesar de ser um hospital gerido pela iniciativa privada, seu financiamento era estatal. Prática comum durante o período ditatorial no Brasil que não contava com um sistema de saúde.

O hospício era uma parte importante da cidade. Dentro dele, as pessoas realizavam passeios aos finais de semana, ocorriam os desfiles cívicos no 7 de setembro, além de festividades juninas.

O espaço da Casa de Saúde estava inserido no cotidiano da população, mas os sujeitos que lá viviam não eram integrados a Paracambi, mesmo essa sendo apelidada como “cidade dos loucos”. Segundo Laerte Melo, no local não havia cuidado com a limpeza ou armazenamento de medicações, muitas delas vencidas, e os internos por vezes não tinham roupa e eram trancados em locais similares a jaulas – despidos de qualquer humanidade.

Paracambi não era a única cidade que recebeu tal alcunha, já que em Minas Gerais, a Barbacena foi durante décadas uma “cidade dos loucos” por abrigar o maior manicômio do país, o Hospital Colônia, que chegou a ter 5 mil internos. Ambas eram ligadas por uma mesma ferrovia. Em “trens de doido”, se transportava para os hospitais milhares de pessoas de todo território nacional, como se fosse matéria prima industrial.

No Hospital Colônia de Barbacena, se estima 60 mil mortes durante seu funcionamento, além de diversas formas de tortura. Apesar do local receber verbas conforme a quantidade de internados, esses não tinham alimentação adequada, camas ou água potável.

O lucro em cima dos corpos abjetos era tamanho que, quando o cemitério ao lado do manicômio não teve mais espaço para novos enterros, os corpos passaram a ser vendidos para universidades de Medicina.

Outras duas cidades mineiras se destacavam pelos seus imensos e superlotados parques manicomiais – Juiz de Fora e Belo Horizonte. As três formavam o chamado “corredor da loucura”, que correspondia a 80% dos leitos psiquiátricos no estado

Durante o período de auge dos manicômios no Brasil, entre os anos de 1970 e 1980, estima-se que houve, em média, 600 mil internações por ano no país – o equivalente a população do estado de Roraima. Nesse mesmo período, se estimava que ocorriam 15 mil mortes a cada 12 meses. Muitas dessas, em decorrência da negligência sofrida pelos internos, cargas excessivas de corrente elétrica na aplicação de eletrochoques, interações medicamentosas má conduzidas, violências físicas e suicídios.  

Os hospícios eram majoritariamente localizados distantes dos centros urbanos e, em suas arquiteturas, costumavam contar com enormes pátios cercados por muros altos. Só se sabia do lucrativo genocídio dentro desses espaços, aqueles que estavam lá. 

Nesse contexto, dois grupos tidos pela ditadura como “inimigos” foram essenciais: artistas e jornalistas. Estes que quando conseguiram adentrar nesses lugares e disseminaram as denúncias dos horrores que ocorriam nos manicômios, chocando parte da população brasileira.

Dos porões aos pátios

O financiamento das instituições psiquiátricas, para além de bastante lucrativo, também mantinha uma ordem moral, retirando do convívio social aqueles que eram considerados degenerados, também reforçando o medo à loucura. Havia tanto o receio de conviver com aquele que “perdeu sua sanidade”, quanto de ser alguém que fosse enviado para esses hospitais distantes, sem deslumbre de um retorno. 

Os militares utilizaram esses espaços também para silenciar e, possivelmente, matar seus opositores. O enfermeiro psiquiátrico Douglas Sherer Sakaguchi, em sua pesquisa de mestrado, revisitou a história do Hospício do Juquery, em Franco da Rocha (SP). Nesse trabalho acadêmico, foram realizadas entrevistas com ex-funcionários dos manicômios que reforçaram a violência como cotidiana nesse local. 

Os entrevistados relataram para Sakaguchi que era frequente a entrada do que eles acreditavam ser presos políticos. Essas pessoas eram levadas pela polícia, com muitas marcas de violência e aparentando coma. A maioria desses chegava sem registro e muitos morriam pouco após a entrada no hospital. Esses costumavam sofrer, ainda mais, com as violações de direitos básicos. 

A jornalista Daniela Arbex, responsável pelo livro e documentário “Holocausto Brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil”, sobre o Hospital Colônia de Barbacena, em audiência à Comissão da Verdade, afirmou que militantes políticos de oposição eram internados no manicômio mineiro durante a ditadura.

Edmar Oliveira e Laerte Melo, ao falarem sobre a Casa de Saúde Dr. Eiras, também disseram que opositores ao regime militar estavam entre os pacientes internados de forma compulsória. 

Há uma problemática de ambiguidade no encaminhamento dos presos políticos para os hospícios. A tortura era realizada para que a psique fosse levada a extremos que, como consequência, fariam os militantes confessassem crimes contra a pátria ou entregassem colegas. A perversidade dos militares nos Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS) se dava, por exemplo, ao obrigar um preso a assistir outros, por vezes de mesma organização e/ou família, sofrendo torturas físicas, sexuais e até mesmo sendo assassinados.

Talvez, então, houvesse uma intenção de cuidado com esses sujeitos, que enlouqueceram por conta do terrorismo de Estado, enviando-os para os hospitais psiquiátricos? É possível. Independentemente da intenção, o manicômio é, por si, um espaço de violências. O psiquiatra Edmar Oliveira pediu, durante entrevista, a utilização de aspas ao  falar de “tratamentos nos hospitais psiquiátricos”. “Considero que os hospícios causam para o indivíduo uma iatrogenia que coloca sintomas desse ‘tratamento’.”

No ano passado, o debate sobre o uso dos manicômios como braço repressor do Estado totalitário brasileiro retornou à tona por conta da reportagem de Amanda Rossi publicada no Uol. A jornalista identificou 24 internações em, ao menos, nove estados brasileiros, de pessoas que se encontravam sob custódia estatal.

Relatos publicados por ela reforçam o horror dentro dos manicômios. Nesses locais, os profissionais de saúde utilizavam de discurso científico para práticas de tortura, agindo como algozes. Durante o regime ditatorial, alguns Conselhos de Classe de profissões de saúde foram fechados ou amordaçados, sendo impossível a fiscalização de atuações que feriam o código de ética e até iam contra os direitos humanos. “A gente começou a cassar registro de médico torturador. […] Dentro desse contexto desumano do inferno,  essa é uma figura que representa perversidade”, conta  Laerte Melo, o presidente do CREMERJ, na reabertura do Conselho, durante o período de redemocratização. 

O número de episódios violentos pode ser muito maior, visto a censura em curso no período militar e falta de transparência nos serviços públicos, sendo ínfima a documentação que comprova internações por motivos políticos. Por consequência, impedindo a possibilidade de investigação de julgamento de torturadores e assassinos.

Terror permanente

Ainda na década de 1970, se organiza o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), organizado após denúncias de residentes em hospitais psiquiátricos que levou à crise da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM). Em dezembro de 1987, durante o II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental nasce o movimento da Luta Antimanicomial, que além de trabalhadores, também conta com sobreviventes de manicômios, familiares e membros da sociedade civil.

Luta contemporânea a reforma sanitária, o SUS foi essencial para a consolidação de uma nova lógica de cuidado com a saúde mental no país. A reforma psiquiátrica que levou a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), oficializada como política pública em 2001 – por meio da Lei 10.216, proposta pelo deputado federal Paulo Delgado (PT–MG).

Apesar dos avanços obtidos, em um contexto que a saúde é passível de mercantilização, a lógica manicomial permanece. Espaços como clínicas de reabilitação e comunidades terapêuticas trazem novas roupagens para os antigos manicômios.

Durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), comunidades terapêuticas passaram a receber financiamento público, um flerte da petista com uma política neoliberal. Após o golpe sofrido pela presidenta em 2016, as políticas públicas de saúde mental foram perdendo recursos em detrimento de iniciativas privadas, muitas vezes com viés religioso.

Com o retorno a um governo totalitário em 2019, as políticas de saúde mental sofreram diversos ataques. O médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta (então filiado ao Democratas), que esteve à frente do Ministério da Saúde até ser demitido por divergências na condução da pandemia, chegou a propor financiar aparelhos de eletroconvulsoterapia (ECT) pelo SUS e internação infantil, durante a sua gestão.

Os ministros seguintes que tiveram uma condução genocida da pandemia de Covid-19, também atacaram a reforma psiquiátrica. O general do exército Eduardo Pazuello propôs a revogação de aproximadamente 100 portarias de saúde mental. O “revogaço” é um risco não apenas aos sujeitos com sofrimento psíquico, mas a toda democracia.

Se a história se repete, primeiro como uma tragédia e depois como uma farsa, é preciso conhecer as tragédias que ocorreram em nosso território para quebrar o ciclo que aniquila vidas diariamente. É preciso lembrar, manter viva uma memória coletiva que tenha ódio e nojo da ditadura militar e todos os horrores causados por ela.

Referências:

DUQUE, Camila da Cunha. Ascensão e Declínio da Indústria Da Loucura e a Cidade de Juiz de Fora – MG. Anais XVIII ENANPUR 2019

GOMES, Maria Paula Cerqueira et al. Censo dos pacientes internados em uma instituição asilar no Estado do Rio de Janeiro: dados preliminares. Cad. Saúde Pública, nov-dez 2002.

GOULART, Maria Stella Brandão. Em Nome da Razão: Quando a Arte Faz História. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Humano, 2010.

GULJOR, Ana Paula Freitas. O fechamento do hospital psiquiátrico e o processo de desinstitucionalização no município de Paracambi: um estudo de caso. 2013. Tese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca.

SAKAGUCHI, Douglas Sherer; MARCOLAN, João Fernando. A história desvelada no Juquery: assistência psiquiátrica intramuros na ditadura cívico-militar. Acta Paulista de Enfermagem, 2016.

Carolina de Mendonça

Psicóloga, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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