Do nascimento da psiquiatria ao “revogaço” na saúde mental

Iniciada na gestão de Mandetta, política de Bolsonaro para a saúde mental se baseia em ideias ultrapassadas que remontam ao início da psiquiatria

Por Carolina de Mendonça

Durante a Revolução Francesa, o médico Philippe Pinel tem um ato radical: quebra, literalmente, as correntes dos loucos. O ato devolveu humanidade à classe dos alienados. Foram criados tratamentos, pensados de modo cartesiano, para as dores das almas desses sujeitos e, para muitos, o ato marca o início da especialização que um século mais tarde foi nomeada “psiquiatria”.

Após desacorrentados, os insanos são enclausurados em diagnósticos. O saber médico é colocado acima do indivíduo em sofrimento, causando uma alienação de suas próprias dores e um poder que diversas vezes se mostrou nefasto, como o caso da Teoria da Degeneração proposta por Bénédict-Augustin Morel, base cientifica do projeto político nazista.

Na saúde mental, foi utilizada no Brasil, por décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, eugenia similar a usada pelo regime nazista alemão. Em todo território brasileiro, a justificativa de psicopatologias era utilizada para segregar indivíduos que causavam algum tipo de incômodo ao status quo. O maior dos hospícios brasileiros no século XX, o Hospital Colônia de Barbacena, chegou a ser comparado a um campo de concentração nazista pelo italiano Franco Basaglia, expoente da antipsiquiatria.

Sendo inaceitável existir espaços no país comparáveis ao holocausto, os movimentos pela luta antimanicomial se intensificaram e, no final da ditadura civil-militar, somaram forças ao movimento de Reforma Sanitária, que levou à criação do Sistema Único de Saúde, e ao clamor social por democracia. Mais de uma década mais tarde, a reforma psiquiátrica brasileira se fez presente na Constituição a partir de  06 de abril de 2001 pela Lei 10.216, que garante direitos e proteção às pessoas acometidas com transtornos mentais.

A partir da Lei, criaram-se portarias que instruíram a implementação do modelo substitutivo na saúde mental. A reforma conquistada com tanta luta se tornava uma realidade palpável sendo construída junto a legisladores, profissionais de saúde, usuários de serviços e egressos de hospícios. 

O modelo hospitalocêntrico, para além da estrutura arquitetônica, centrou-se nas relações hierárquicas que giravam em torno da autoridade médica, e na relação dos profissionais com pacientes e familiares, estes últimos mantidos ignorantes de seus sofrimentos. 

Em contraponto ao modelo hospitalar, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foi criada com objetivo de substituir o modelo fracassado dos hospitais. No SUS, ela está presente nos diversos espaços, não mais sendo associada apenas ao hospital ou clínica individual. O modelo substitutivo considera o sujeito integralmente, sendo assim sua relação com saúde e doença é vista de forma ampla. Não há hierarquia dentro das equipes, tendo em vista que cada profissional presente detém um saber técnico que será útil para a compreensão da totalidade da pessoa atendida. O usuário do sistema é sujeito de si e agente ativo em seu tratamento. Uma utopia parecia ser traçada.

Contudo, a lógica manicomial permaneceu no Brasil. Mesmo após a criação do SUS, há a possibilidade de os profissionais e grupos terem uma relação comercial com os pacientes. No contexto da saúde mercadológica, presente nas redes particulares e planos de saúde, os hospitais psiquiátricos continuaram a funcionar. E movimentar bastante capital.

Dominar a saúde mental significa um acúmulo de poder econômico e político. Dessa forma, o fim da política pública que descentraliza esse poder é um interesse perverso das classes dominantes. Os governos de esquerda, que fizeram alianças com setores conservadores e empresariais, se mostraram ativos no desmonte do modelo substitutivo. Em 2011, a então presidente Dilma Rousseff assinou a Portaria Nº 3.088/2011 que insere as Comunidades Terapêuticas na RAPS.

As Comunidades Terapêuticas são iniciativas privadas, com lógica manicomial e são, em maioria, de orientação cristã desrespeitando a laicidade da política de saúde brasileira. Estas recebem, desde a Portaria, investimentos públicos que seriam direcionados ao SUS. Espaços de privação de liberdade, também revelam outras formas de tortura como atos LGBTfóbicos, imposição religiosa, sequestros, privação de sono, uso indiscriminado de medicamentos entre outros absurdos.

O governo Bolsonaro, desde seu início, aproximou-se da lógica manicomial. O ex-ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, assinou no início de seu mandato um documento que modifica as políticas de saúde mental no Brasil, permitindo a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia pelo SUS, retirando o protagonismo da Política de Redução de Danos com justificativas morais e abrindo possibilidade de internação de crianças e adolescentes, medida que fere o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Por divergências políticas na condução da pandemia da Covid-19, Mandetta saiu do Ministério da Saúde, mas a necropolítica implementada pelo neofascismo de Jair Bolsonaro na saúde mental continuou em curso. O ministro Eduardo Pazuello, que não tem formação na área de saúde, propôs a revogação de cerca de cem portarias sobre saúde mental.

O Revogaço foi colocado em pauta próximo ao final do ano, nas vésperas ou início de recesso de diversos setores da sociedade. Além disso, o ano de 2020, especialmente, trouxe no seu final uma sensação coletiva de cansaço e luto, por conta da pandemia do Covid-19 e a condução genocida desta pela gestão federal.

Apesar da exaustão e dor de forma rápida e orgânica, milhares de pessoas se uniram formando a Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial, conjunto de lutas em oposição às involuções submetidas pelo Governo Federal. São entidades, movimentos antimanicomiais regionais e nacionais, ONGs, organizações políticas, profissionais de saúde, familiares e usuários, universitários, pesquisadores, profissionais de comunicação, artistas, políticos e membros da sociedade civil. São, acima de tudo, sujeitos espalhados por todo o país que acreditam em uma sociedade sem manicômios e lutam para que não seja dado nenhum passo atrás.

Tamanho retrocesso proposto pela revogação em massa significa a morte. Propõe que profissões contrariem suas éticas e permitam que seus profissionais sejam omissos, e até ativos, em situações de opressão. Mortes sociais de pessoas que deixarão de ser vistas como sujeitos integrais para serem retiradas do convívio social e torturadas. Mortes literais. A morte de toda sociedade que não pode permitir repetição da barbárie.

Na Frente Ampliada, adotou-se como lema o seguinte trecho da música “Sujeito de Sorte”, de Belchior: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Mesmo sangrando demais e chorando pra cachorro, há uma permanente luta para viver. Também foi adotada a figura de um pássaro, e sua busca pela liberdade como símbolo do movimento, trazendo um outro lema para a luta: o doce “Poeminho do Contra” de Mário Quintana.

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!

Com força e leveza, deve-se buscar construir uma sociedade que não utilize do biopoder para segregação de grupos marginalizados, nem transforme perseguição em política de saúde. Que não seja dado nenhum passo atrás e manicômios nunca mais! 

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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