Sofrimento e glória de um artista maldito

Um dos principais artistas visuais da história da humanidade, Vincent Van Gogh foi desumanizado tanto em vida, quanto em morte

Por Carolina de Mendonça
Arte por Adrian Albuquerque

De que vale um poeta? – Um pobre louco 

Que leva os dias a sonhar? – Insano

Amante de utopias e virtudes

E n’um tempo sem Deus ainda crente

(Cadáver de um Poeta – Álvares de Azevedo)

O trecho da poesia de Álvares de Azevedo (1831 – 1852), considerado um dos poetas malditos do romantismo brasileiro, descreve uma visão do senso comum do artista: insano e utópico. Ter uma vida breve, infeliz, comportamentos excêntricos, dificuldades financeiras e com dom divino, é tido comum entre os trabalhadores da arte. Histórias de tragédias e reforço de uma “genialidade inata” levam muitos a se afastar da arte, que se mantém como área restrita a uma elite. Aqueles que permanecem, encontram contextos majoritariamente hostis e deixam seu sofrimento fetichizado à venda.

O caso emblemático e mais popular desta situação é do pintor neerlandês Vincent Van Gogh (1853 – 1890). Nascido em Zundert, pequena cidade no sul dos Países Baixos, o segundo filho tem mesmo nome do avô e irmão mais velho (natimorto), em uma família com tradição de atividades voltadas para a vendas de arte e trabalhos religiosos.

Vincent tenta um dos ramos, mas não é bom comerciante. Seu irmão caçula, Theo Van Gogh (1857 – 1891), se destacou na área, sendo, inclusive, importante para a popularização de artistas impressionistas, como Claude Monet (1840 – 1926). O pintor também arrisca atuar como pastor calvinista, como seu pai, mas não é bem aceito no ofício – seus superiores consideravam exagerado seu envolvimento com os grupos com os quais trabalhava.

Considerava absurda a miséria vivida pelos trabalhadores com quem convivia. Em seus trabalhos artísticos, passa a usar de sua criação para denunciar o horror causado pelo capitalismo. Resolve então se dedicar exclusivamente à pintura como atividade laboral, mesmo sem ter retorno comercial e artístico,  também como forma de denúncia da realidade que testemunhava.

Os Comedores de Batata (1885) – Acervo: Museu Van Gogh

Morando a maior parte de sua vida adulta na França, ao começar a pintar resolve assinar apenas com seu primeiro nome, pois se aborrecia com o erro na pronúncia de seu sobrenome – algo frequente, sobretudo após sua morte. 

O pintor confessa, ao irmão caçula e mecenas, angústias e sonhos fantásticos, de uma lógica social solidária. Ao conhecer a costureira Sien (1850 – 1904), uma jovem mãe, grávida do segundo filho e que foi abandonada pelo companheiro, Vincent oferece a ela a possibilidade de trabalhar como sua modelo. Ambos estabelecem um companheirismo para além do envolvimento romântico, que, como a maior parte das relações do artista, foi fugaz.

Outro importante vínculo de Van Gogh foi o pintor francês Paul Gauguin (1848 – 1903), com quem morou junto. O neerlandês desejava construir uma grande comunidade de artistas plásticos – todos morariam juntos e dividiriam ideias e materiais. Além disso, ele planejava a criação de um sindicato para fortalecer a classe, a partir da parceria com Gauguin. Uma tendência socialista forte, muitas vezes apagada em suas representações.

Assim como a relação com a costureira Sien, o vínculo entre Vincent e Paul Gauguin foi efêmero e febril. As dificuldades cotidianas, o temperamento complicado de ambos e as diferentes formas como se relacionavam com a arte, causavam brigas gigantescas,  chegando por vezes à agressão física – como comentado por ambos em cartas.  Em um momento, Paul chegou a avisar ao companheiro que se afastaria, por considerar o ambiente hostil e limitante.

A Cadeira de Gauguin (1888) – Acervo: Museu Van Gogh

Vincent queixava-se ao irmão, Theo, de seu humor instável e intenso – ora não conseguia fazer nada, e levantar da cama era uma tarefa árdua, ora tinha energia para pintar por dias seguidos sem pausa. Percebia influência direta do uso de álcool nessas oscilações, mas não sentia ter controle para dosar o uso da substância. Separado do amigo, que decidiu partir, o neerlandês ficou drasticamente abalado, culminando no trágico episódio em que se automutila, retirando um pedaço da orelha e o entregando em um bordel.

As pessoas ao redor não sabem, ao certo, o que houve. A história se espalhou como fofoca, recebendo uma série de outras interpretações e até mentiras. Mesmo após a recuperação, o pintor afirmou ao irmão, em carta, não lembrar daquela noite – era esperado, pois suas emoções eram intensas e havia perdido muito sangue. Não há certeza do que aconteceu, por conta dos poucos registros que permanecem sobre a situação. 

Uma das testemunhas foi Paul Gauguin, que após a morte de seu amigo, escreveu de forma dura e dolorosa o mais detalhado relato sobre o episódio. O francês contou que, na noite anterior, Van Gogh atirou um copo com bebida contra o amigo, mas não lembrou do ocorrido ao acordar. À noite, Gauguin decidiu passear e percebeu passos o acompanhando. Ao virar-se, Paul viu o amigo com uma navalha aberta na mão e parecia ameaçar um golpe. A troca de olhares entre ambos foi suficiente para que Vincent retornasse correndo para casa. Na manhã seguinte, os amigos se encontraram pela última vez. Vincent havia se mutilado, seu corpo era inanimado e pela casa estavam espalhadas muitas toalhas com sangue.

A Casa Amarela (1888) – Acervo: Museu Van Gogh

O artista foi internado após a automutilação. Estava frágil física e psicologicamente, precisava de cuidados profissionais e de uma rede de apoio forte que o ajudasse nesse período. Contudo, seus vizinhos endereçaram um abaixo-assinado, com aproximadamente 80 assinaturas, ao então prefeito de Arles, cidade no sul da França em que morou, descrevendo que o pintor não poderia viver em liberdade e assim tornou o episódio um caso de polícia. Em carta endereçada a Theo Van Gogh, em 19 de março de 1889, comentou sobre o ocorrido: 

“Assim você pode imaginar que duro golpe em pleno peito foi saber que havia aqui tantas pessoas covardes o bastante para se unirem em tão grande número contra um só, e ainda por cima doente.” [1]

O pintor não se permitiu sentir emoções fortes, mesmo com essa violência sofrida. Temia que pudessem tornar permanente o estado de insanidade que ele se encontrava, naquele contexto. Para seus vizinhos ele era um “louco perigoso” e deveria permanecer isolado para o bem da sociedade – o estereótipo de que o artista poderia apresentar riscos e a imposição de uma internação, configura uma lógica manicomial, da qual o artista foi vítima.

Em junho de 1890, aos 37 anos, Vincent saiu para pintar uma tela ao ar livre, mas retornou agonizando por conta de um ferimento causado por um disparo de revólver contra seu peito. Morreu pouco tempo depois em decorrência do tiro, junto ao irmão caçula. Não houve testemunhas e a versão mais aceita e reproduzida do ocorrido é de que o pintor cometeu suicídio.

Theo, que já se encontrava adoecido na época, por uma possível infecção por sífilis, teve uma piora no estado físico e psíquico e morreu meses depois do irmão. Ele deixou a esposa, Johanna Bonger (1862 – 1925), e um filho pequeno, também chamado Vincent Van Gogh (1890 – 1978). Os irmãos são enterrados lado a lado, unidos postumamente, como eram em vida.

A Noite Estrelada (1889) – Acervo MoMA

Johanna, viúva de Theo, tornou-se herdeira de milhares de obras. Possuindo contatos com pessoas dos meios artísticos da época, passou a ceder quadros do cunhado para exibição e editar as cartas trocadas entre Vincent e Theo para mostrar as qualidades e humanidade do artista.

Durante a primeira metade do século XX, o pintor  neerlandês tornou-se popular. Na década de 1960, o filho de Theo e Johanna e o governo dos Países Baixos se uniram para conservação e exposição das obras de Vincent Van Gogh. Na década seguinte, foi fundado em Amsterdã o Museu Van Gogh, que tem acervo com parte significativa das obras do artista. Seus quadros também podem ser encontrados em alguns dos mais importantes museus de arte mundo afora, como o Museu de Arte Moderna (MoMA), localizado em Nova Iorque, e o Museu de Arte de São Paulo (MASP), na capital paulista.

A história do pós-impressionista passou a ser estudada por diversos grupos. Cientistas da saúde mental querem compreender quais patologias o artista sofria, biógrafos buscam reconstruir a vida do homem que deixou milhares de quadros e cartas, e pesquisadores das artes visuais buscam entender a influência de movimentos artísticos diversos – como barroco, impressionismo, pintura de natureza japonesa e a própria vida de Vincent, na criação de obras tão singulares. Também a influência de Vincent a outros artistas, como o caso dos expressionistas, que também utilizam de pinceladas mais grossas e obras intensas emocionalmente. 

Em outros segmentos artísticos, também é possível ver a influência da estética e história de Vincent Van Gogh. A premiada cartunista Barbara Stok (1970) [2] transformou a biografia do pintor em uma singela história em quadrinhos que com traços simples recria cenários e pessoas que Vincent conheceu e transformou em quadros, narrando a partir das cartas trocadas entre os irmãos, o período da vida do pintor a partir de sua mudança para a cidade de Arles.

O músico Don McLean, na década de 1970, fez um tributo ao  neerlandês na música Vincent [3], na qual ele fala do singelo olhar do artista com o mundo que o cercava. Interpretando as narrativas acerca da morte do artista, o compositor traz:

Quando não houve mais esperança

Naquela noite estrelada

Você tirou sua vida, como amantes costumam fazer

Mas eu poderia ter te dito, Vincent

O mundo não foi feito para alguém belo

Como você [4]

A compreensão da beleza em Vincent Van Gogh não é exclusiva de McLean. Na série britânica Doctor Who [5] o artista se torna personagem de uma aventura fantástica no episódio “Vincent e o Doutor”. Com a possibilidade de viajar no tempo e espaço, os protagonistas levam o pintor a um museu de Paris, em 2010, onde há uma exposição de suas obras. Na ficção, o neerlandês vê a admiração do público a seu legado e ouve de um curador de arte, elogios emocionados sobre a importância de sua pintura na história da arte.

Não apenas Vincent, enquanto sujeito, se tornou personagem de obras diversas inspiradas em sua vida. No filme “Com Amor, Van Gogh” (Dorota Kobiela e Hugh Welchman, 2017), Armand Roulin [6], filho do carteiro Joseph Roulin [6] que entregava as cartas à Vincent em Arles, busca entre figuras conhecidas do pintor algum parente para entregar uma carta trocada entre os irmãos Van Gogh, que não chegou ao destinatário.

A animação narra com delicadeza uma incerteza expressiva entre os biógrafos de Vincent, especialmente na última década. Através de cenas e personagens que replicam as obras do artista e representam a trágica história que pode ter o levado a insanidade, o longa suscita o debate: como ele levou o tiro que o matou?

Obra 'O Escolar', de Van Gogh
O Escolar, ou, O Filho do Carteiro (1888) – Acervo MASP

A história de Vincent também foi recontada, recentemente, na moda. A marca estadunidense de vestuário e calçados Vans lançou em 2018, junto ao Museu Van Gogh, uma coleção de peças com estampas baseadas em obras do artista. De forma não oficial também se é vendido itens com referências ao neerlandês, alguns inclusive com comentários jocosos sobre o dramático episódio da mutilação de sua orelha. A estética dele vende, dando até mesmo nome a prédios de luxo, bares e restaurantes ao redor do mundo.

Obra e vida, em si, tornaram-se produtos, que vão além das especulações e leilões que vendem a valores astronômicos, quadros que, enquanto o artista viveu eram desprezados. A inspiração em Vincent Van Gogh passa por uma tênue linha de admiração e desprezo. 

Em vida, o artista foi humilhado, maltratado, desumanizado e jogado em uma internação por ser considerado “perigoso demais” para estar em liberdade. E talvez fosse sim, um homem instável, irritante e problemático. Postumamente, o artista é exaltado, glorificado e tido como um gênio acima das capacidades humana, mas também desumanizado.

Em cartas escritas pelo artista, é possível ver suas impaciências, desejos, senso de humor, posição política e implicância – em geral, sua complexidade como sujeito. Até mesmo o aborrecimento com o erro na pronúncia de seu sobrenome, pela forma como outras pessoas se referiam a ele, era visível nos registros que deixou. Hoje, no entanto, seu nome é repetido em uma leitura anglófona, algo que possivelmente o incomodaria. 

No contexto capitalista não é difícil saber quanto vale a mercadoria em volta da arte. Sejam as obras em si ou souvenirs criados a partir dessas. Contudo, é ínfero o valor da vida de um artista.

A Ronda dos Prisioneiros (1890) – Acervo: Museu Pushkin

Notas:

[1] Tradução da carta pode ser encontrada no livro “Cartas a Theo” publicado no Brasil pela editora L±

[2] Barbara Stok venceu o Prêmio Holandês de Melhor Autor de HQ em 2009 com a obra “Vincent”, publicada no Brasil pela editora L±

[3] A canção faz parte do álbum American Pie (1971);

[4] Tradução livre do trecho: For they could not love you/But still your love was true/And when no hope was left inside/On that starry, starry night/You took your life as lovers often do/But I could have told you, Vincent
/This world was never meant for one/As beautiful as you

[5] Série de fantasia e ficção científica atualmente produzida e exibida pela BBC. A série conta histórias de viagem no tempo e espaço. No décimo episódio da quinta temporada, Vincent e o Doutor, os personagens da série encontram Vincent Van Gogh.

[6] A família Roulin é pintada entre 1888 e 1890 em retratos individuais por Vincent Van Gogh.

Carolina de Mendonça

Psicóloga, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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