Drama fora dos palcos

Falta de remuneração e apresentações “por divulgação” são comuns entre meio artístico e demonstram falta de seriedade com que setor é tratado

Por Felipe Lourenço
Arte: Norberto Liberator

Se perguntarmos a qualquer pessoa o que um artista faz, garanto que as definições serão as mais diversas, dado o fato de que a alcunha “artista” por si só já é bem abrangente. Mas também é certo que a imagem mental gerada por esse exercício de adivinhação será a de algum famoso, ator ou atriz de TV e cinema, ou uma diva da música pop – como Pabllo Vittar, Iza ou Anitta –, figurinos sensuais, looks extravagantes, públicos extremamente numerosos.

No entanto, há outro fato: essas figuras são raras exceções, resultadas de uma equação complexa que envolve bons contatos, muito dinheiro investido, demanda do público e talento. Por que a primeira menção que nos vem à mente são os nomes supracitados e outros do mesmo patamar, mas não o cantor que toca enquanto você está naquele restaurante legal, a professora de teatro da sua filha, o b.boy, o DJ, o grafiteiro, a escritora, os malabaristas de semáforo, o hippie que vende seu artesanato mundo afora? Porque eles não alcançaram fama.

Por óbvio, nós nos lembraremos da figura de destaque de uma determinada categoria, assim como, quando pensamos num político, lembramos eventualmente do presidente em exercício. Um atleta? Esse pode ser o atual craque do seu time. Um arquiteto? Claro, o gênio Oscar Niemeyer. As opções nunca tendem a ser seu presidente de bairro ou a senhora que corre todos os dias de manhã se preparando para a meia-maratona estadual, seu primo que é arquiteto e urbanista – mas você não tem ideia de quais edificações ele já assinou. 

É compreensível que pensemos assim, fama é sinônimo de exposição e exposição é sinônimo de reconhecimento. Mas para quem aspira viver de arte, ter referências tão distantes da realidade do trabalhador comum (sim, arte é trabalho) afeta diretamente o processo formativo do artista.

É senso comum, nós não conseguimos reconhecer o labor da arte como profissão com valor monetário. O próprio artista não se enxerga como tal, tem enorme dificuldade de gerir a própria carreira, não sabe quais caminhos seguir, o que fazer para melhorar sua condição profissional. Tudo isso não é culpa somente do indivíduo. Como disse anteriormente, faz parte do senso comum não entendermos o valor do trabalhador da arte.

Parte desse problema está na fraca (ou nenhuma) difusão do seu processo de formação e do seu processo criativo, seja do artista para o público ou até mesmo de colega para colega de trabalho. Desta maneira, em inúmeros casos o próprio artífice não sabe mensurar o devido valor do ofício, colocando-se assim inúmeras vezes em situações de trabalho sem qualidade e baixa ou nenhuma remuneração.

Presenciei um acontecimento em especial que me chocou e ajuda a ilustrar bem como as coisas funcionam por aqui. Dividi palco, certa vez, com uma cantora que precisou dividir sua performance entre segurar o filho ainda bebê no colo e cantar, pois a criança não parava de chorar por estar longe da mãe. Nem ela, nem os colegas de banda viram aquilo como um fardo a carregar – talvez tenham consciência do impacto que a cena de uma mãe jovem, cantando com o filho no colo, possa causar. Mas não romantizemos tais episódios: nem ela e nem ninguém da banda recebeu nada por aquela apresentação, além da promessa de se agendar uma próxima -cujo cachê seria pago com a bilheteria do evento, administrada pela casa, que ficaria com 30% desse lucro.

Para essa cantora, isso não seria problema, pois ela já divide o seu tempo entre cuidar do filho, trabalhar durante o dia, produzir, ensaiar e cantar sua arte quando tem tempo. Compreende-se que a vida do artista se resume em ter jornada dupla, tendo qualquer outro trabalho para manter seus meios de existência e o ofício da arte como mero lazer laborioso.

A dupla jornada de trabalho é comum na vida do trabalhador brasileiro.No caso do artista, isso se torna artifício ainda maior de exploração dos contratantes, pois sabem que o artista tende a aceitar algum tipo de sacrifício pela sua arte. Seja pela promessa de um futuro promissor, pelo sonho do tão desejado reconhecimento, pela representatividade – que nesses casos se esvazia – ou pelo prazer de fazer o que ama independentemente das circunstâncias.

Felipe Lourenço

Músico, ator, roteirista, produtor, agente cultural, karateca e Doutor Honoris Causa.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente, artes e esportes.

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