Normal e moral: olhares e opressões sobre a loucura na cultura ocidental

Pensar uma sociedade que respeite a loucura é pensar em uma lógica de vida radicalmente diferente

Por Carolina de Mendonça 
Capa por Fábio Faria

A loucura, hoje associada à Medicina, tem sua história iniciada muito antes da psiquiatria, sendo inerente ao ser humano. A tragédia de uma alma (no grego clássico psiquê) que exacerba simultaneamente paixão e sofrimento (pathos também no grego clássico) é registrada desde fosseis pré-históricos com crânios perfurados em possíveis rituais religiosos. Estudos em fósseis de crânios humanos do período Neolítico, ou Idade da Pedra Polida, apontam da possibilidade de psicocirurgias realizadas em contextos religiosos, forma que esses povos lidavam com a loucura.

Apesar de intrínseca à humanidade, as psicopatologias se modificam de acordo com o contexto social e histórico. Até os dias atuais, não se é possível definir uma causa única para as diversas formas de loucura, sendo, ao menos, a combinação de fatores biológicos, psicológicos e sociais, se modificando no tempo e espaço e se manifesta muitas vezes de acordo com classe social, gênero e cor.

As manifestações e interpretações de sofrimento psíquico são diversas, o mesmo tempo que as paixões exacerbadas são inerentes a condição humana. As associações da psicopatologia aos saberes médicos e às lógicas de exclusão social não são inerentes a essa condição, mas uma construção histórica e social.

Antiguidade clássica: protociência dos fluídos

Na antiguidade greco-romana, os que eram considerados cidadãos poderiam receber tratamentos baseados nos fundamentos de Hipócrates, pai da medicina ocidental, que concebia as diferentes formas de sofrimento psíquico como desequilíbrios dos fluidos corporais. Sendo, portanto, uma questão fisiológica que poderia ser resolvida através de mudanças comportamentais como dietas e práticas de atividades físicas.

Os tratamentos baseados na teoria de Hipócrates eram exclusivos do pequeno grupo daqueles que eram considerados cidadãos, ou seja, homens proprietários de terra. A maior parte da população tinha interpretação de seu sofrimento baseado em preceitos religiosos. A coexistência da leitura protocientífica e religiosa das patologias não é tão distante do que ocorre atualmente no Brasil. A popularização de doutrinas neopentecostais em relação à concepção de adoecimento psíquico como “encosto”, comum nas classes populares que têm dificuldade de acesso aos cuidados em saúde.

A Idade Média e seus demônios

A compreensão religiosa da loucura também se fez presente na Idade Média. Nesse período, o sujeito em sofrimento psíquico representava a manifestação do mal e era a prova da existência do demônio. Com o clero tendo forte influência política e social, os cuidados de saúde também eram realizados por essa classe.

No período medieval, por conta das problemáticas sociais como guerras, pestes e rebeliões houve um aumento de casos de insanidade. Com o clero no controle da saúde e a interpretação vigente de “possessão demoníaca”, a prática de exorcismo se torna comum para salvar as almas dos causavam desordem à conjuntura, entre eles os loucos.

Contudo, é importante ressaltar que em menor proporção havia espaços de cuidados médicos voltados aos loucos naquela época. Eram leitos, muito similares a jaulas, e que buscavam a cura de algumas enfermidades, como acessos de melancolia e ataques de violência.

A loucura ao ar livre durante o Renascimento
A visão de loucura se modifica no renascimento cultural e científico. No período, algumas regiões da Europa retomam os valores das civilizações greco-romana e passam a se adaptar aos novos avanços das regiões onde se desenvolviam os burgos na Europa e saberes advindos do contato junto às populações do norte da África e Ásia.

Devido à complexidade desse período em diversos pontos da Europa, as formas de lidar com a insanidade são múltiplas. A compreensão do sofrimento psíquico a partir da demonologia cristã – o estudo sistemático dos demônios – permanecia com bastante força.

Nessa época, foram criados os primeiros espaços no Ocidente destinados aos cuidados da saúde com a loucura. Porém, se tratava de práticas pontuais, o aprisionamento literal da loucura pelos saberes médicos se data da Revolução Francesa, no século XVIII.

Houve também a experimentação da loucura em seu estado livre, circulando pelos ambientes comuns, sem dominação do pathos, este visto como uma manifestação natural do ser humano. Situação similar ao proposto atualmente pelo grupo Ouvidores de Vozes, que traz a vivência, comumente associada a diagnósticos psicopatológicos, como uma experiência mais livre, sem os estigmas impostos à essa condição.

O desvio moral como inaceitável durante a Idade Moderna
Após o renascimento, a burguesia ascende socialmente e a moral desta classe passa a ser dominante, apesar de não possuir o poder político. Com a nova ideologia vigente, a loucura passa a ser interpretada de forma diferente. A partir do século XVII, a loucura que era experimentada em liberdade passa a ser excluída socialmente.
Nessa época, todos desviantes da moral burguesa eram mandados para espaços voltados à internação. Nesses espaços, eram excluídos da vida social libertinos, loucos, mendigos, inválidos, pessoas com doenças venéreas. Os que não estão aptos ao trabalho, não tornando parte da produção, circulação e acúmulo de riqueza, não podem viver livremente em sociedade. Em um híbrido com a moral cristão, a ociosidade se torna o pior dos pecados no sistema capitalista, sendo punida durante a vida terrena.

Com a ideia filosófica descarteana do “Penso, logo existo” os loucos eram tidos como seres sem humanidade por sua desrazão. Afogados em suas paixões os insanos eram destratados, torturados e viviam acorrentados. Afinal, não contribuíam com o crescimento do sistema econômico “racional”, que ascende destruindo o meio-ambiente, escravizando povos, causando genocídios e causando aculturação dos sujeitos remanescentes.

Durante a revolução francesa a loucura saí das correntes para os diagnósticos
As terríveis correntes que prendiam os loucos na idade moderna são quebradas durante a revolução francesa por Philippe Pinel – diretor do Asilo Bicêtre em Paris. O médico assim cria o alienismo (especialidade médica que lidaria com o pathos, hoje conhecida como psiquiatria). Pinel e seus discípulos, como o também alienista Esquirol, são os primeiros a observar, descrever e classificar aquilo que era estranho ao padrão moral vigente. É o primeiro olhar científico da loucura. Em tese, livre de influências socioculturais era determinado o que era “normal” e “patológico” desde então a insanidade é domínio das ciências da saúde, principalmente da medicina.

Definir o “normal” e o “patológico” é bastante complexo, até os dias atuais. O psicólogo Rogério Paes Henriques traz três principais definições e suas problemáticas: subjetiva, quantitativa e qualitativa. A definição subjetiva considera adoecimento com sofrimento para o indivíduo, porém é possível sentir-se bem ao ter atitudes destrutivas consigo ou com outrem. A concepção quantitativa avalia estatisticamente a frequência de certos conjuntos de comportamentos, mas é alta a frequência de pessoas que sofrem psiquicamente, dentre outros fatores por estímulo do sistema vigente, o comum não pode ser considerado sinônimo de normal. O critério qualitativo traz como patológico o que foge a uma norma ideal. As principais críticas a esse critério são pelo relativismo cultural, pois não é possível universalizar uma concepção de saúde e de adoecimento psíquico.

Uma das mais conhecidas críticas às definições “normal” e “patológico”, não veio do meio científico, mas das artes: a novela O Alienista, de Machado de Assis. Na história “Simão Bacamarte”, um grande estudioso da psicopatologia cria um espaço similar a uma prisão no interior do Rio de Janeiro para os, que nas definições dele, seriam loucos. Esse espaço passa a superlotar, afinal, de acordo com as definições do alienista a maior parte da cidade era insana, por desvios morais. Os internos se rebelam, julgam estar ali de forma injusta. Percebendo que algo está (muito) errado, o médico decide olhar para si e rever seus critérios de normal e patológico.

Assim como o protagonista machadiano, diversos cientistas têm buscado critérios para estudar e intervir nessas dores da psiquê. A ciência psicopatológica é vasta e em suas diversas abordagens se apropria de diferentes fundamentos epistemológicos. Destacando-se o médico alemão Emil Kraepelin que funda uma sistemática nosológica do adoecimento psíquico, dando início à psiquiatria moderna.

Uma das problemáticas da psicopatologia é o lugar do sujeito em sofrimento nas classificações. Nesse contexto se destaca o neurologista Sigmund Freud que, nos estudos sobre histeria, percebe na fala de suas pacientes, maioria mulheres, um acesso ao inconsciente, criando o método psicanalítico. É ouvida a voz da loucura.

As pessoas atendidas por Freud e seus sucessores, que seguiram ou não a psicanálise, eram pessoas principalmente de classe alta e na maior parte neuróticos – sujeitos que tiveram um desenvolvimento psicossexual de acordo com o esperado e com isso sentem angústia e culpa. Pessoas de classe baixa ou com outras psicopatologias eram presas não só aos diagnósticos impostos, mas também nos espaços físicos criados para os loucos.

Ascensão dos manicômios e queda de suas estruturas físicas
O lugar destinado aos loucos a partir de Pinel, revolucionário francês considerado pai da psiquiatria, passa a ser um tipo de hospital específico para os cuidados com esse grupo: os manicômios. Para além do espaço físico, os manicômios criam uma lógica de exclusão social daqueles que desafiam a moral burguesa, apresentam linguagens diferente da maioria ou um sofrimento agudo. Pessoas inaptas ao trabalho.

Os loucos são nomeados de “alienados”, pois eram julgados estar com “alienação mental”, não sendo sujeitos de si, mas presos a suas próprias paixões. Iniciando-se a narrativa, que por séculos tem sido respaldada pela ciência, que o louco seria perigoso para si e para as pessoas em seu entorno, visto que ele não tem um controle da sua própria psiquê. Logo, para o bem do alienado e de toda sociedade esse deveria ser isolado socialmente em ambientes exclusivos para os que sofriam desse mal – que apesar do distanciamento histórico por vezes se parecia com as interpretações medievais.

Apesar da aparente contradição entre os lemas de revolucionários da mesma época – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – foram elaborados tratados científicos que justificassem a alienação, pois a sociedade de forma simultânea clama pela igualdade e exige uma solução para a loucura. A lógica asilar passa a ser parte do tratamento moral imposto a esse grupo.

O asilo se torna mais que um ambiente terapêutico, mas um espaço de prevenir a proliferação da imoralidade. A ciência respalda não só a privação de liberdade, mas os horrores que ocorriam nos manicômios. Comumente construídos em bairros distantes nas grandes cidades ou em cidades pequenas longe de grandes centros, os hospícios se tornam espaços com pouco contato com a sociedade civil, inclusive com dificuldade de famílias e amigos dos internos realizarem visitas.

A possibilidade de fugir ou de recorrer à ajuda externa é mínima. Somado a isso o uso dos diagnósticos criam uma prisão em si mesmos dos que são submetidos a esses. O biopoder opera nesses ambientes, oprimindo o sujeito a partir de um controle científico que funciona nas mais diversas esferas da vida daquele sujeito. O discurso do louco é desmerecido, não importando o quanto condiz com a realidade compartilhada.

Dentro dos manicômios ocorrem das mais diversas torturas, para além da privação de liberdade. Uso de psicocirurgias como formas de punição, uso arbitrário de medicamentos como forma de amansar os loucos, camisas de força como forma de contenção física aos que tentavam se rebelar, privação de alimentos e água potável, uso de banhos com fortes jatos de água, isolamento entre outros horrores.
Após a segunda guerra mundial, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os manicômios passam a ser amplamente questionados em toda sociedade ocidental. Movimentos contrários à psiquiatria ortodoxa emergem na sociedade ocidental, destacam-se nomes com o psiquiatra britânico Ronald Laing, o filosofo francês Félix Guattari e o psiquiatra italiano Franco Basaglia, que questionam a existência dos espaços manicomiais.

Dentre os críticos citados, Basaglia é um de maiores influência para o movimento antimanicomial brasileiro. O médico durante as décadas de 1960 e 1970 passou a cobras não apenas uma mudança nos tratamentos dado aos loucos, mas a extinção das estruturas dos hospitais psiquiátricos. A iniciativa de fechamento desses e criação de espaços nas comunidades para o cuidado com a loucura é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1973.

Ao fim da ditadura empresarial-militar brasileira, o movimento antimanicomial e organiza e ganha força para reforma psiquiátrica e construção do Sistema Único de Saúde. A partir dos anos 1990 o país passa a fechar seus hospícios e criar um modelo de cuidado junto ao território, que posteriormente se tornaria a Rede de Atenção Psicossocial. Contudo, a queda dos manicômios não garantiu o fim das opressões contra os loucos.

Os discursos sobre a loucura na atualidade
O discurso manicomial se reformulou com as novas formas de cuidado com a loucura. Nas últimas décadas, houve um fortalecimento do discurso individual da saúde, o qual coloca no sujeito a responsabilidade por estar ou não adoecido. A imprensa convencional e, mais recentemente, as redes sociais, contribuem para propagação dessa ideologia ao incentivar a busca de um bem-estar pleno que seguem padrões de comportamentos e até formas corporais e que ignora fatores para além do controle dos indivíduos que influenciam diretamente na saúde.

Na saúde mental, esse discurso se manifesta com o aumento vertiginoso de profissões como coaches e alto consumo de conteúdos de autoajuda, como livros. A saúde mental e os “bons comportamentos” podem ser alcançados através de mudanças de comportamentos e otimismo. O bem-estar se torna algo individual e não coletivo.

Apesar da capitalização da saúde mental em produtos e serviços, se é percebido um aumento de pessoas com diagnósticos de psicopatologias nos últimos anos. O sofrimento psíquico gerado pelo modo de produção capitalista, assim como a patologização da vida, que categoriza comportamentos comuns à ideia de adoecimento, podem ser hipóteses para esse aumento.

O aumento dos diagnósticos serve para uma nova forma de manicomialização. Os sujeitos adoecidos, em grande parcela, por contextos estruturais do sistema capitalista, são submetidos a uso de medicações arbitrariamente e de forma contínua. Junto aos discursos que colocam problemáticas coletivas como questões individuais, o sujeito é preso em si química e ideologicamente, mesmo estando longe dos muros dos hospitais psiquiátricos.

Com valores capitalistas em oposição ao Sistema Único de Saúde e à Rede de Atenção Psicossocial, estes sofrem diversos ataques. Na última década os internamentos psiquiátricos retornaram à pauta e investimentos governamentais. Após o golpe de 2016, a aproximação com lógicas manicomiais aumentou, sendo central da gestão de saúde bolsonarista, que mesmo durante a pandemia ameaça um “revogaço” na saúde mental.

Os olhares e opressões sobre a loucura na humanidade são diversos ao longo da história e de acordo ao tempo e espaço que pertence. Pensar uma sociedade que respeite a loucura é pensar em uma lógica de vida radicalmente diferente. Uma utopia a se conquistar.

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