Não se engane: missão de Mandetta é o desmonte da saúde pública

Por Adrian Albuquerque, Marina Duarte e Norberto Liberator
Colaborou Guilherme Correia

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é apontado por parte da mídia e da opinião pública como estadista e como boa indicação técnica, devido à sua postura diante da pandemia do coronavírus. No entanto, tal empolgação não corresponde à verdade. Além de seus diversos erros à frente da crise – como defender o direito de Jair Bolsonaro a não mostrar os exames que realizou e dizer que os casos devem diminuir após o contágio de 50% da população –, Mandetta possui trajetória controversa.

A missão de Mandetta como ministro, desde o início, foi o sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Em janeiro de 2019, no discurso de posse, afirmou que trabalharia pelo fortalecimento do sistema privado, por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – órgãos que fiscalizam empresas particulares. Em junho daquele ano, durante uma palestra em Porto Alegre, disse que pretendia “revigorar” o SUS com participação do setor privado. Também foi durante sua gestão que profissionais de saúde cubanos deixaram de atender pelo Mais Médicos, programa que foi criticado pelo ministro com base em declarações falsas.

Em novembro de 2019, Mandetta apresentou seu plano para novas formas de financiamento da Atenção Básica, que excluía o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). O NASF foi criado pelo Ministério da Saúde em 2008, durante gestão de José Gomes Temporão, para consolidar a atenção primária no Brasil. Os profissionais atuam por meio de equipes de Saúde da Família (eSF, presentes tanto em Unidades de Saúde quanto em visitas domiciliares) e de serviços para populações específicas, como ribeirinhos e indígenas, além de consultórios nas ruas.

Após a publicação do plano de Mandetta, mais de 20 entidades assinaram carta aberta em apoio ao NASF. O órgão não foi extinto, mas em janeiro deste ano seus parâmetros de custeio foram revogados. Em fevereiro, o Ministério da Saúde congelou a ampliação de núcleos. A medida impede o credenciamento de novas equipes pelos municípios, por tempo indeterminado.

Mandetta também foi responsável pela nova política de combate à dependência química. Ele assinou, junto a Moro e Bolsonaro, o Decreto 9.761, que estabelece uma Nova Política Nacional Sobre Drogas. Uma das alterações realizadas foi instituir a abstinência compulsória como modelo de prevenção e tratamento de adictos – método considerado atrasado e contra-indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) –, ao invés da até então vigente redução de danos

O ministro também fez uso de sua pasta para promover outras medidas de cunho ultraconservador que vão na contramão de recomendações de especialistas da área, como se posicionar ferrenhamente contra o parto humanizado e abolir a utilização do termo “violência obstétrica”, medida que visa atender a médicos cesaristas – ou seja, defensores da cesariana compulsória, que consideram essa abordagem um ataque a seus interesses.

Além de ser o encarregado de Bolsonaro para o sucateamento da saúde pública e para o fortalecimento do setor privado, a carreira política de Mandetta é repleta de escândalos, que envolvem acusações de desvio de verba pública, fraudes em licitação, tráfico de influência e tentativa de forjar o laudo de morte de um indígena assassinado. Listamos alguns deles.

Contratação de empresas aliadas

Recentemente, Mandetta contratou uma empresa ligada ao financiamento de suas campanhas eleitorais, sem licitação. A justificativa para a dispensa de processo licitatório foi a emergência da pandemia do coronavírus. Em regime emergencial, o Ministério da Saúde comprou aventais hospitalares para o SUS. 

A compra foi realizada com a empresa Prosanis Indústria e Comércio, do empresário Aurélio Nogueira Costa, também dono da Cirumed Comércio Ltda – uma das maiores doadoras da campanha eleitoral do atual ministro em 2014, para deputado federal. 

O montante da compra foi de 700 mil reais. Em 2014, a Cirumed foi a segunda maior doadora da campanha de Luiz Henrique Mandetta para deputado federal, repassando cerca de 94 mil reais. Quatro anos antes, a mesma empresa também havia doado R$ 50 mil, por meio de dois cheques, para a campanha eleitoral do atual ministro. 

Também sem licitação, o Ministério da Saúde contratou a Farma Supply, que não tem experiência em fornecimento de produtos hospitalares, para a compra de máscaras cirúrgicas no valor total de 18,2 milhões de reais. A empresa é administrada pelo bolsonarista e militar aposentado Marcelo Sarto Bastos. 

De acordo com reportagem do The Intercept, os materiais fornecidos pela Farma Supply custam mais do que o dobro da quantia cobrada para o mesmo fim por empresas com histórico de licitações. A matéria também mostra que o valor contratado é 180 vezes maior do que o capital declarado pela empresa.

Fraude no Gisa

Em março de 2015, o então deputado federal Luiz Henrique Mandetta foi investigado por crimes como fraude de licitação, desvio de dinheiro, inexecução de contrato, contratação ilegal e tráfico de influência, relacionados à compra e implementação do Gerenciamento de Informações Integradas da Saúde (Gisa). 

O sistema foi comprado quando o atual ministro era secretário municipal de Saúde de Campo Grande, entre 2005 e 2010 (durante gestão de seu primo Nelson Trad Filho), e deveria ser uma plataforma de integração de dados com informações dos pacientes e dos atendimentos feitos pelo SUS, a fim de facilitar os trabalhos da administração pública.

Segundo o processo que consta no STF, Mandetta teria cometido vários crimes enquadrados na Lei de Licitações (Lei 8.666/1993). Ainda de acordo com o documento, o “inquérito [foi] instaurado em face do atual deputado federal Luiz Henrique Mandetta para apurar suposta prática de crime na contratação do Consórcio Telemídia & Technology Ltda. e da empresa Alert Serviços de Licenciamento de Sistemas de Informática para a Saúde Ltda., em troca de favores pessoais relativos à sua campanha política no pleito de 2010″.

O Ministério Público Federal (MPF) afirma que o processo de licitação foi irregular desde o início, já que a empresa Telemídia teve acesso às regras antes mesmo da publicação do edital, ganhando tempo para se adaptar às cláusulas. De acordo com a Procuradoria, mesmo com o acesso prévio, o grupo Contisis (do qual a Telemídia faz parte) não preencheu os requisitos mínimos e apresentou documentos falsos. 

Segundo o processo, o Contisis foi criado exclusivamente para subcontratar serviços da empresa portuguesa Alert. Embora o próprio edital não permitisse terceirizações, a investigação do MPF concluiu que Mandetta utilizou de sua influência para fazer com que a prestação de serviços da Alert fosse admitida.

O sistema de informações custou cerca de 10 milhões de reais aos cofres públicos e teve prejuízo de cerca de 6 milhões em pagamentos por serviços não executados, segundo auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU), que também apontou que o sistema não operava como deveria. 

Assassinato de Semião Vilhalva

Listado em relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi – órgão católico que atua na defesa de povos tradicionais) sobre os 50 parlamentares mais anti-indígenas do Brasil, Mandetta está implicado diretamente em um ataque que resultou em morte. No dia 29 de agosto de 2015, o líder guarani-kaiowá Semião Fernandes Vilhalva, de 24 anos, morreu atingido por um tiro de calibre 22 no rosto, que atravessou sua nuca. O jovem foi baleado enquanto tentava tirar seu filho de uma zona de ataque. 

De acordo com reportagem do jornal Correio do Estado no dia 9 de setembro daquele ano, um grupo de cerca de 100 ruralistas teria entrado com caminhonetes para desocupar, à força, a área Ñande Ru Marangatu – onde os indígenas estavam assentados. A mesma matéria afirma que a ação foi combinada durante assembleia no Sindicato Rural de Antônio João (cidade a 320km de Campo Grande).

Na assembleia, a presidente da entidade, Roseli Ruiz, teria dito que voltaria à sua casa, na fazenda Barra, finalizando com a frase: “e quem quiser, que me acompanhe”. Em seguida ao anúncio, teria saído do local uma fileira de caminhonetes, até a fazenda citada. A equipe do jornal, que estava no local, recebeu dos coordenadores da expedição a ordem para não acompanhá-los, a 1,5 km do destino. “Daqui em diante, vocês não vão ver o que vai acontecer”, teria dito um dos ruralistas aos repórteres, ameaçando “riscar” os pneus do carro da equipe caso eles insistissem.

No dia 30 de agosto, o Sindicato Rural de Antônio João, por meio de uma secretária, afirmou ao jornal Midiamax que Semião já estava morto quando os ruralistas chegaram. A reportagem ainda cita que, posteriormente, houve outras tentativas de contato com a entidade, mas os telefones encontravam-se desligados.

No mesmo dia, o então deputado federal Luiz Henrique Mandetta escreveu um relato em sua conta no Facebook, em que confirmou ter estado no local no momento do crime. No texto, Mandetta diz que foi à reunião do Sindicato Rural de Antônio João a pedido do senador Waldemir Moka e da então deputada federal Tereza Cristina, hoje ministra da Agricultura, ambos da chamada “bancada ruralista”. Ele ainda afirmou que teve “arma apontada na cabeça pelos índios” e que “a troca de tiros rolou de ambos os lados”, embora a investigação jamais tenha encontrado armas de fogo em posse dos indígenas.

O então parlamentar reforçou a hipótese de que Semião já estivesse morto, além de procurar deixar subentendido que os próprios indígenas teriam baleado seu corpo para forjar cena de crime. “Ouviu-se um tiro numa mata a 800 metros e dez minutos depois os índios trouxeram um corpo que diziam ter sido alvejado. Me coloquei como médico e fui até o local. O cadáver de um homem já em rigidez cadavérica foi jogado na estrada. Fiquei ilhado entre eles. Após negociação consegui que o comandante da Força Nacional estabelecesse um espaço entre eles e saí de lá por volta das cinco horas”, postou Mandetta.

No entanto, o laudo médico feito no corpo da vítima foi o suficiente para desmentir a versão do Sindicato Rural e de Mandetta. A perícia concluiu que o jovem foi morto no intervalo entre as 7h e 15h do mesmo dia da ação contra Ñande Ru Marangatu. O delegado federal Bruno Raphael Barros Maciel, que conduzia o inquérito do caso, disse ao Correio do Estado que o kaiowá foi atingido por um projétil de arma pequena, provavelmente de calibre 22, que ficou alojado em sua cabeça. Também foi apurado que o tiro foi disparado à longa distância, ou seja, no mínimo a 50cm do atingido.

Adrian Albuquerque

Jornalista, editor de vídeo, sucinto e entusiasta de alguns filmes. Interessado em artes, cultura e política. Diretor do documentário “Isto não é uma entrevista”.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

MARINA DUARTE

Ilustradora e quadrinista pantaneira. Feminista antiproibicionista interessada pela profunda mudança social.

Guilherme Correia

Jornalista. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

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