O uso político do futebol por ditaduras sul-americanas

Por Alison Silva, Gabriel Neri, Guilherme Correia e Norberto Liberator

Na última quarta-feira (20), a então secretária especial de Cultura do governo de Jair Bolsonaro, Regina Duarte, foi demitida do cargo. Entre os milhares de comentários sobre a saída da atriz, muitos afirmaram que não adiantou cantar música da ditadura para agradar seu chefe. 

O apontamento se refere à fala de Regina no dia 7 de maio, em entrevista à CNN Brasil, quando ela disse: “ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 60, 70, 80… gente, vam’bora, pra frente. ‘Pra frente, Brasil, salve a Seleção’. Não era bom quando a gente cantava isso?”.

A música citada por Duarte é uma canção ufanista composta por Miguel Gustavo, por ocasião da Copa do Mundo de 1970 e utilizada como propaganda da ditadura militar, que buscava relacionar sua imagem à da Seleção Brasileira, aproveitando o prestígio dos atletas em benefício próprio.  

Sete dias antes da declaração da atriz, o ex-jogador Caio Ribeiro havia criticado uma fala do ex-atleta Raí, durante programa Bem Amigos, do canal fechado de televisão SporTV. “Eu não gostei do discurso do Raí, porque ele falou muito pouco de esporte e falou muito sobre política. […] Na hora que ele fala de renúncia, dos hospitais públicos e tudo isso, me parece que ele tem conotações políticas em relação a preferências”.

Raí é irmão de Sócrates, uma das principais cabeças pensantes da “Democracia Corintiana”, movimento da década de 80 do qual também fazia parte o ex-atacante e companheiro de bancada de Caio, Walter Casagrande. O grupo lutava para reformular a estrutura democrática no clube e na política nacional.

Em meio a um cenário pandêmico causado pelo novo coronavírus, Raí, que é dirigente do São Paulo Futebol Clube, se posicionou contra o retorno do calendário profissional do futebol masculino, devido a uma série de incertezas sanitárias e políticas. Ribeiro, por sua vez, o rebateu ao dizer que  “ele [Raí], por mais que fale que é a opinião pessoal dele, hoje é o homem forte do São Paulo e as declarações e opiniões que ele emite respingam na instituição. Eu acho que ele tem que falar de esporte”.

Mesmo concordando com o reforço ao isolamento social, principal recomendação feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) contra a disseminação da doença que atinge o mundo inteiro, Caio insistiu que política e futebol neste caso não se misturam – ainda que isso represente melhores condições de vida para todo um setor, que movimenta milhões de reais e emprega uma série de profissionais no país.

Sócrates foi uma das diversas vozes que se uniram em favor da democracia no país e que, ao lutar contra o autoritarismo presente no regime militar de 1964, misturou política e futebol. A exemplo de outros contextos que relacionam essas duas coisas, os regimes militares (comuns no século passado em países sul-americanos) constantemente utilizaram dos feitos e contextos esportivos como forma de propaganda política.

Brasil

Em 11 de abril de 1964, Humberto de Alencar Castello Branco assumia a presidência do país. O marechal foi o primeiro presidente da nação após o golpe militar ocorrido em abril daquele mesmo ano contra o presidente João Goulart; como estratégia de governo, o ditador decidiu aproximar a Seleção Brasileira de seu mandato.

O trabalho alinhado entre governo e Confederação Brasileira de Desporto (CBD) afetou diretamente o desempenho do Brasil nos anos seguintes. Os órgãos decidiram excursionar com os jogadores brasileiros por várias cidades do país em 1966, principalmente nos estados do sudeste, a fim de aproximar populares da Seleção, trabalhando de maneira propagandista tanto com os atletas, quanto com a imagem da equipe nacional, que disputaria o Mundial naquele mesmo ano na Inglaterra. O torneio foi vencido pelos anfitriões e o objetivo da ditadura foi frustrado, com o Brasil eliminado na primeira fase.

Em 1968, com a instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5) no país, clubes e dirigentes de futebol passaram a ser monitorados pelos governantes, tendo de submeter relatórios periódicos aos mesmo para fins de inspeção. Nesse período, a Seleção era treinada pelo jornalista e militante comunista João Saldanha, responsável pela formação inicial do time que seria tricampeão mundial em 1970. Saldanha passou a ser monitorado pelo regime. Por pressão do regime, foi demitido e cedeu o cargo a Mário Jorge Lobo Zagallo, então treinador do Botafogo.

De acordo com periódicos da época, “João Sem Medo” (apelido do treinador) foi sacado da Seleção por não acatar as intervenções do ditador Emílio Garrastazu Médici em seu plantel. Integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi dispensado da equipe pouco antes da Copa do Mundo, durante aquele que é considerado o período de maior censura e com mais casos de tortura por parte do regime militar.

Demitido da Seleção, foi contratado pela BBC de Londres para emitir opiniões durante a competição. Como o acompanhamento da equipe brasileira realizado pela imprensa durante o Mundial do México em 1970 sofria crivos das autoridades, João Saldanha não obteve autorização para ficar próximo do time.

Argentina

A última ditadura da Argentina começou com o golpe da Junta Militar que indicou o General Jorge Rafael Videla como primeiro líder em 24 de março de 1976. Era a segunda vez, em três anos, que o país passava por um regime de exceção imposto por militares – a anterior começou 10 anos antes e terminou em 1973.

O país platino vivia uma crise política e econômica que motivou a retomada do poder pela Junta e a derrubada de Isabelita Perón, viúva do folclórico presidente Juan Domingo Perón, falecido em 1974 (Evita, mais famosa das esposas de Perón, morreu em 1952). Com a nova ditadura, o governo tinha “carta-branca” para fazer o que quisesse.

Como forma de dar a entender que tudo estava normal e que o regime era um sucesso, a Argentina teve a oportunidade de sediar a Copa do Mundo de 1978, dois anos após o golpe. Não importando como, a seleção local tinha de ser campeã. No torneio em que Mario Kempes foi artilheiro e destaque do time, havia uma campanha muito forte para seleções europeias boicotarem o Mundial. Todas participaram, mas a seleção da Holanda (Países Baixos) afirmou que, se ganhasse, não cumprimentaria Videla. 

No entanto, antes de começar, o Mundial já era da Argentina. A Seleção da Junta venceu duas vezes na primeira fase, mas passou em segundo, atrás da Itália. Na segunda fase, que seria uma “semifinal”, a Argentina estava no mesmo grupo de Brasil, Polônia e Peru. 

O time argentino conseguiu passar de fase após vencer a Polônia; empatar com o Brasil na “Batalha de Rosário”, jogo com uma série de erros de arbitragem a favor dos locais; e vencer o Peru no polêmico 6 a 0 da última rodada. Devido ao saldo de gols, a equipe da casa precisava vencer os peruanos por no mínimo quatro gols de diferença para avançar. O ex-jogador José Velásquez, que fez parte da Seleção Peruana naquela Copa, afirmou em 2018 que seis dos atletas em campo haviam recebido dinheiro para deixar a Argentina marcar o número necessário de gols. A final contra a Holanda foi de Mario Kempes, ele fez dois e Bertoni marcou o tento do título. Assim acabava a Copa da Junta Militar em 1978.

No topo do regime autoritário houve quatro presidentes militares: Videla (1976-1981), Roberto Eduardo Viola (1981), Leopoldo Galtieri (1981-1982) e Reynaldo Bignone (1982-1983).

Na década de 1980, devido a crimes como corrupção, sequestros e torturas, que motivaram pressões políticas e populares, o regime começou a ruir. O fracasso final da ditadura veio com a derrota para o Reino Unido na Guerra das Malvinas, que custou as vidas de milhares de jovens e encheu a opinião pública de vergonha. Depois de morrerem mais de 30 mil pessoas, Raúl Ricardo Alfosín assumiu a presidência do país e a Junta foi dissolvida no final de 1983.

Diferente do Brasil, movimentos “negacionistas” da ditadura não são comuns na Argentina. O futebol é o esporte mais político e os clubes ilustram isso com o Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça, em 24 de março, quando o “nunca más” é ecoado contra o autoritarismo. 

Chile

O maior palco do futebol andino também deu lugar a uma série de prisões e torturas da ditadura chilena. O Estádio Nacional do Chile, que sediaria a primeira final única da Copa Libertadores em 2019 se não fosse o cenário político vigente, foi onde os contrários ao regime militar sofreram as consequências por buscarem liberdade.

A ditadura militar no Chile se iniciou em 11 de setembro de 1973, quando o Palácio de La Moneda foi bombardeado por tropas comandadas pelo general Augusto Pinochet, que tiraram o socialista Salvador Allende do poder. Foram 3 mil mortos e desaparecidos durante o período.

15 dias depois do golpe, o então meio-campista do Colo Colo, Leonardo Véliz, uma das diversas vozes de oposição ao regime, deveria entrar em campo contra a seleção da União Soviética, por partida de repescagem para a Copa do Mundo de 1974.

Os chilenos, tanto os futebolistas como o governo, só não esperavam que os soviéticos se recusassem a jogar a partida. Contrários ao regime ditatorial de Pinochet, solicitaram à Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa) que o confronto fosse realizado em campo neutro. O pedido foi negado pela entidade máxima do esporte e, como forma de retaliação política, os atletas se recusaram a viajar para a capital Santiago.

Após o golpe de Estado, Pinochet se apoderou do Colo Colo, clube de coração onde Véliz atuava – o mais popular e vencedor do Chile. Três anos após a instauração do regime, o ditador ordenou que dirigentes do clube saíssem e impôs uma espécie de consórcio econômico para gerir a equipe, recebendo em troca o título de presidente de honra do Colo Colo. 

Nos dias atuais, militantes que torcem pelo clube lutam para cancelar o que chamam de “decisão ilegítima”, que manchou de sangue a história do Colo Colo. Em fevereiro deste ano, a pressão da torcida impediu que o clube contratasse o técnico  Luiz Felipe Scolari, devido à admiração do treinador brasileiro por Pinochet. “Scolari, no eres bienvenido“, diziam algumas das postagens e cartazes pertencentes à campanha dos torcedores. Em nota, a torcida La Garra Blanca, uma das principais organizadas do clube chileno, afirmou sentir “nojo” da sondagem por parte da diretoria, que desistiu da negociação.

alison silva

Repórter

Estudante de jornalismo. Interessado na área esportiva, política e produção audiovisual.

Gabriel Neri

Colunista

Estudante de jornalismo, amante de futebol sul-americano e América Latina.

Guilherme Correia

Repórter e Subdiretor de arte

Estudante de jornalismo. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

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