Não há sanidade sem autonomia: saúde mental entre privados de liberdade

Por Carolina de Mendonça

Hoje tá difícil, não saiu o Sol
Hoje não tem visita, não tem futebol
Alguns companheiros têm a mente mais fraca
Não suportam o tédio, arruma quiaca

(Diário de um Detento – Racionais MC’s) 

Instituições totais, como presídios, manicômios e conventos, não buscam ressocialização ou o retorno das pessoas à sociedade. Pode-se notar isso ao se observar, por exemplo, como a insalubridade das penitenciárias brasileiras estimula o aumento da propagação de doenças infecciosas como tuberculose. As violências vivenciadas em tais instituições levam a traumas físicos, psíquicos e, por muitas vezes, sexuais. Tal como evidencia a canção dos Racionais MCs, epígrafe deste texto, na cadeia o relógio anda em câmera lenta. Por causa do isolamento, a percepção de tempo dos privados de liberdade é alterada, fator este que os leva a uma fragilização psíquica e os deixam ainda mais vulneráveis. O sofrimento é intenso e constante. As possibilidades de sair de lá “ressocializado” se dão por trauma, por morte ou por uma outra maneira de institucionalização, também violenta – comumente igrejas neopentecostais, que se aproveitam da fragilidade dos internos.

O ambiente dos presídios é feito para adoecer, uma forma de genocídio em massa da população negra no Brasil. Nesse cenário, a presença de transtornos psíquicos na população privada de liberdade é, infelizmente, constante. Em contrapartida, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Infopen), não oferece dados sobre os diagnósticos de transtornos mentais dessa população, os dados se limitam aos internos do Instituto de Psiquiatria Forense (IPF) (pessoas em conflito com a lei que por possuírem um adoecimento não podem ser inteiramente culpadas por seus atos). De qualquer forma, percebe-se que a situação é crítica: em uma pesquisa comandada pelo médico Sérgio Baxter Andreoli¹, estimou-se que aproximadamente 60 mil presos sofriam de transtornos mentais graves no Brasil no início dos anos 2010.

A instituição se sobrepõe ao sujeito e nega sua subjetividade. É difícil ser “único” ao dividir celas que excedem dezenas de vezes a lotação adequada, com regras tão rígidas que tornam impossível desejar algo – mesmo que tais desejos se tratem somente de necessidades básicas, como comer ou ir ao banheiro. Tudo é limitado, cronometrado e apático. Na medida em que se retira o sujeito, se aumenta a anedonia – que caracteriza a depressão, transtorno comum entre os privados de liberdade. Como descrito na composição de Mano Brown e de Josenir Prado, o Jocenir, ideação suicida também se faz comum nesses espaços:

Só o cheiro de morte e Pinho Sol
Um preso se enforcou com o lençol
Qual que foi? Quem sabe? Não conta
Ia tirar mais uns seis de ponta a ponta
Nada deixa um homem mais doente
Que o abandono dos parentes.

O suicídio sempre é um ato multifatorial, em uma pesquisa feita pela psicóloga Maria Thereza Coelho², se atesta que a falta de suporte de parentes é fator de risco para o suicídio. Entre mulheres que têm filhos em privação de liberdade, foi evidenciada uma ambivalência entre ter um consolo em meio à angústia e perceber uma fragmentação familiar, pelos filhos mais velhos e por eventual parceiro, distante nesse momento; como também pela separação abrupta dos filhos recém-nascidos³. Apesar de ser um dever, em tese, do Estado o cuidado da saúde entre os privados de liberdade, a saúde social é perdida ao se levar alguém para prisão. Não se pode manter o sujeito saudável ao afastá-lo daqueles que ele confia, se sente bem e considera família.

A ansiedade também é comum entre presos, a forma que mais chama atenção em prevalência é o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). O encarceramento em si já é um fator traumático, suas violências são constantes e fortes, além desse muitas pessoas que chegam a ser encarceradas já sofrem de TEPT. O fato da maioria dos detentos serem das frações de classe mais baixas e terem a pele negra, faz com que sofram diversos preconceitos durante a vida. Parte da população mais suscetível a traumas, por causa da pobreza e do racismo, que são fatores de estresse, também parcela dos sujeitos com menor acesso a cuidados especializados à saúde mental, podendo ter adoecido previamente pelas constantes violências sofridas, porém nunca cuidado com auxílio de profissionais.

A presença de TEPT aumenta a probabilidade de consumo abusivo de álcool e outras drogas. Uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro mostrou que entre as mulheres encarceradas no estado a prevalência de abuso de cocaína, droga estimulante, entre as entrevistadas que apresentavam TEPT4. Tal pesquisa corrobora com um estudo similar, feito poucos anos antes em Pernambuco. Apesar de produções acadêmicas sobre o tema, dada complexidade do levantamento e as dificuldades com as gestões dos presídios, com o material que se tem disponível, é perceptível uma enorme intercorrência de uso abusivo de substâncias nessas instituições. A redução de danos, implementada pelo SUS, apesar de sucateada, seria a melhor estratégia para lidar com a situação; porém por questões jurídicas, essa população não tem acesso a tal forma de cuidado.

Os detentos que tem algum transtorno mental comprovado, e cometem crimes os quais não se pode atribuir culpa (imputáveis) ou se tem culpa parcial (semi-imputáveis), não são punidos e encaminhados aos presídios. É imposta a “Medida Preventiva” e os presos são encaminhados ao Institutos de Psiquiatria Forense (IPF). Contudo, o tratamento  e as condições oferecidas não são melhores do que aqueles de um presídio. Enquanto os presídios são controlados pela justiça, os IPFs, além do controle jurídico, contam com o controle da Medicina. O híbrido de manicômio e prisão, o pior de dois mundos.

O ser humano é descartável no Brasil
Como modess usado ou Bombril
Cadeia? Guarda o que o sistema não quis
Esconde o que a novela não diz

Com a Reforma Psiquiátrica Brasileira, os manicômios são substituídos gradualmente – afinal, era insustentável para uma democracia liberal permanecer em uma lógica comparada ao nazismo. Com isso os então Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), popularmente conhecidos como “Manicômios Judiciais”, foram substituídos pelos IPFs. Apenas em nome. A lógica dos IPFs permanece similar aos manicômios anteriores à Reforma Psiquiátrica, sendo considerada uma forma de tortura por contrariar exigências impostas pelos Direitos Humanos para o cuidado com a loucura6. 

Entre os privados de liberdade, a utilização de medicamentos psiquiátricos é alta. Nesse contexto, os psicotrópicos deixam de ser uma estratégia de cuidado e tendem a ser uma maneira de contenção dos “loucos perigosos”. É, especialmente, assustadora a hiperpsiquiatrização entre os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. Ainda em fase de desenvolvimento, são moldados de forma violenta a restringir seus comportamentos.

Não é possível se criar saúde em situação de cárcere. Tais instituições servem para produzir o genocídio e perpetuar o controle social. Não há possibilidade de melhora que passe por reformas nesse sistema ou “garantias” de direito. A única opção viável de parar atrocidade do atual sistema penitenciário é sua abolição.

 

Referências bibliográficas

¹ ANDREOLI, S. B. et al. Transtorno Mental e Prisão. In: TABORDA, J. G. V.; ABDALLA-FILHO, E.; CHALUB, M. (Org.). Psiquiatria Forense. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2012.

² COELHO, Maria Thereza Ávila Dantas. Concepções de normalidade e saúde mental entre infratores presos de uma unidade prisional da cidade do Salvador. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 567-575, apr. 2009.

³ OLIVEIRA, L. V; MIRANDA, F. A. N.; COSTA, G. M. C. Vivência da maternidade para presidiárias. Rev. Eletr. Enfer., v. 17, n. 2, p. 360-369, 2015a.

QUITETE, Byanka et al. Transtorno de estresse pós-traumático e uso de drogas ilícitas em mulheres encarceradas no Rio de Janeiro. Rev. psiquiatr. clín., São Paulo v. 39, n. 2,  p. 43-47, 2012.

BARROS-BRISSET, F. O. Rede é um monte de buracos, amarrados com barbante. Rev. bras. crescimento desenvolv. hum., São Paulo , v. 20, n. 1, abr. 2010.

SANTANA, A. F. A.; CHIANCA, T. C. M.; CARDOSO, C. S. Direito e saúde mental: percurso histórico com vistas à superação da exclusão. Psicol. rev., Belo Horizonte, v. 17, n. 1, abr. 2011.

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

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