Uma conversa sobre K-pop

Quebra de recordes musicais é só um dos diferentes impactos sociais e culturais provocados pelo K-pop

Por Carolina de Mendonça

Nos últimos 10 anos, foi praticamente impossível não se deparar com a “onda coreana”. Também conhecida pelo termo, não tão lisonjeiro, invasão coreana, surge do neologismo Hallyu, junção das palavras “Han” (Coreia ou coreano) e “Ryu” (corrente ou tendência), e foi criada por jornalistas de Pequim (China) em 1997, buscando explicar a ascensão da importação cultural sul-coreana.

Em meio à Crise dos Tigres Asiáticos, a Coreia do Sul, através de iniciativas estatais e privadas, investiu em sua indústria do entretenimento, buscando levar para o exterior commodities que exerceriam influência para que os consumidores tivessem uma determinada visão sobre o país. No primeiro momento, a importação se concentrou em outros territórios do leste asiático como China, Japão e Hong Kong. Quinze anos após a criação do termo “Hallyu”, já era possível afirmar que a cultura pop coreana conquistou o mundo.

No final de 2012, o artista PSY atingiu a marca do vídeo mais visto no YouTube, a qual permaneceu por pouco mais de quatro anos, com o videoclipe de Gangnam Style, que faz referência a um distrito de Seul, capital da Coreia do Sul. A música se tornou mania mundial – no Brasil, era comum nos ambientes e na televisão se ver reproduzida a coreografia entre gritos de “êêê sexy lady”. A música  chegou a ser sensação no carnaval soteropolitano em 2013.

Mais recentemente, o audiovisual sul-coreano também se mostrou inescapável. O filme “Parasita” (2019), de Bong Joon-ho, venceu a Palma de Ouro, principal prêmio no Festival de Cannes e foi o grande premiado do Oscar de 2020, recebendo quatro estatuetas, entre elas a de “Melhor filme”. Entre séries, Round 6 se tornou a obra original mais vista na Netflix.

Como consequência, as subjetividades têm sido constituídas e moldadas com valores advindos dessas indústrias. Aumentou o interesse em aprender coreano, no turismo na península e a busca pelo padrão de beleza sul-coreano, que assim como o estadunidense e europeu, é bastante nocivo.

A onda coreana tem  atingido de forma mais intensa meninas e mulheres jovens, e possui  repercussões diretas na política. Grupos de fãs (conhecidos como fandoms), que se organizam para apoiar seus ídolos, têm sistematizado ações e campanhas de caráter progressista em vários países.

Para conhecer mais sobre música pop produzida nas últimas décadas na Coreia do Sul, a Revista Badaró convidou o jornalista cultural e repórter no Omelete Caio Coletti, e a funcionária pública e estudante de Publicidade e Propaganda Sâmela Silva. Ambos fazem parte da equipe do podcast K-Pop Top.

Descoberta: Você já ouviu K-pop? 

O K-pop, em si, não é um gênero, mas um termo que engloba a produção musical mainstream sul-coreana desde meados da década de 1990, passando por influências diversas como Rap, dance music, rock, R&B e muito mais. Por ser tão diverso, se torna quase impossível não gostar de K-pop e mais provável ainda, não conhecer algum grupo ou artista de agrado.

Com isso, a forma de ter um primeiro contato com esta cultura até se tornar um fã, tende a ser bastante diversa. Quando perguntei à Sâmela Silva sobre qual foi o primeiro contato, ela lembra que se deu ainda na adolescência, em 2010, quando colegas de escola a apresentaram ao Super Junior. “E realmente era muito legal, eu ouvia as músicas direto. Obviamente, tinha que baixar de formas absurdas”, disse se referindo à dificuldade de acesso a obras culturais antes da ascensão dos streamings.

Apesar da paixão em primeiro momento, Sâmela descreve que sua relação com K-pop teve diversos momentos. A partir de 2013, ela passa a conhecer mais a fundo os grupos e discografias. Em 2017, ela começa a escrever uma coluna sobre o tema, que em dois anos se tornou um podcast junto com duas amigas.

Já com Caio Coletti, a relação com K-pop se deu de forma bem diferente, apesar de acompanhar e escrever sobre cultura ocidental há mais de dez anos, teve contato mais direto com a música pop coreana em 2021, quando foi encarregado de cobrir, pelo Uol, o lançamento do MTV Unplugged do BTS.

“Existia influências nas minhas redes sociais que postavam e falavam sempre para ouvir K-pop. Sâmela era uma delas, talvez a principal. Achei as músicas legais, resolvi ouvir o disco mais recente do BTS e achei bacana. Fui indo atrás de mais coisas, comecei a seguir o podcast, que hoje participo, e daí vinha mais conteúdo para mim na timeline, fui clicando, fui ouvindo. ” 

Em meio à pandemia de Covid-19 e o isolamento social como estratégia para contenção das infecções, todos tiveram suas rotinas drasticamente modificadas. Nesse período o entretenimento foi uma forma de olhar para si, lidar com a solidão, escapar da realidade e ter esperança por dias melhores.

Com os dias de confinamento, Caio, que trabalhava em uma redação jornalística no centro de São Paulo (SP), passou a trabalhar de forma remota e retornou à cidade natal, no interior do estado. “Na pandemia, a gente tinha muito tempo. E os conteúdos lançados são desenhados para você se envolver cada vez mais, não só com a música, mas com a história de cada grupo, com as personalidades de cada membro. Acho que há um elemento de escapismo, mas uma conexão também.”

Já Sâmela, que trabalha com educação, o retorno ao trabalho presencial se deu antes de iniciar seu ciclo vacinal, o que gerou uma série de angústias. “Eu estava com muito medo de andar de ônibus, de ver pessoas de novo. E uma das coisas que me ajudou não a esquecer, mas abstrair, foi o K-pop.”

Caio conclui que a música pop tem essa capacidade de mostrar o mundo de forma menos perigosa, algo essencial para manter a sanidade em um momento tão árduo. “Para mim, era muito uma questão de eu querer ouvir música pop, pois eu tinha saudades de música pop. E eles continuam fazendo o tempo inteiro, de forma volumosa. O que é sempre bom e satisfatório.”

Onda coreana: Como se deu a história do K-pop? 

A Coreia do Sul tem uma relação com a cultura pop diferente de países ocidentais. Caio Coletti explica que na indústria cultural ocidental, há um pudor com o artista que é “descoberto”, que luta por reconhecimento até conseguir um contrato com a gravadora. Já na indústria do K-pop é diferente. “É uma escola comandada por uma empresa, onde entram adolescentes de 12, 13, 14 anos e são treinados em diversas atividades: canto, dança, línguas, atuação, acrobacias etc. Eles têm uma rotina de atleta. A gravadora junta várias pessoas que estão em sua ‘escola’ e forma um grupo e assim o grupo debuta. E não existe esse pudor de “você não chegou lá pelos seus meios”. Você foi para uma empresa e a empresa te fez estrear. Não existe esse pudor de ser descoberto ou ser feito. É feito mesmo e ninguém se importa.”

O grupo Seo Taiji and the Boys, conhecidos como “pai do K-pop” nos anos 1990, mistura hip-hop americano, com alguns gêneros populares na Coreia do Sul, antecedendo a primeira geração do estilo, sendo quatro até o momento. 

A primeira geração data em meados da mesma década e tem como grandes representantes os grupos S.E.S., Shinhwa e H.O.T., com influência do R&B e conquistaram fãs cativos, que se comportavam como “torcidas”. Tinham um estilo bastante colorido, as danças eram consideradas divertidas e os ídolos eram bonitos. Nesse momento, se inicia a expansão da cultura pop coreana em outros territórios do leste asiático, originando o termo “Hallyu”.

A força do K-Pop se firma na Ásia e começa a chegar no ocidente na segunda geração, na década 2000. E tem influência forte do pop ocidental. Grupos como Super Junior, Shinee e Girls Generation são dos mais conhecidos dessa época. A empresa SM Entertainmen agenciava alguns desses grupos e passou a investir em turnês internacionais, incluindo países ocidentais.

Na década de 2010, foi impossível escapar da onda coreana. Debutando com hip-hop, o BTS é, sem dúvidas, o mais conhecido nome dessa geração. Nesse período, a internacionalização é firmada e o K-pop se torna uma tendência mundial, como exemplo, no Brasil há shows de artistas coreanos. Apesar de não fazer parte da terceira geração, o rapper PSY é um destaque da década, com o supracitado hit “Gangnam Style”.

Atualmente, há uma nova geração ganhando destaque. São novos ídolos criados nessas escolas e que estão debutando na atual década. O estilo de música tem bastante influência do PC Music.

Muitos desses artistas pop são lançados na música, no audiovisual e na moda. Nas séries e filmes feitos na Coreia do Sul é frequente a presença de figuras já conhecidas do meio musical. Grandes grifes ocidentais têm chamado cada vez mais rostos de ídolos coreanos para serem embaixadores de sua marca, como é o caso de Gucci, Dior, Prada e Chanel.

Influência para além da música

“Todo fã de K-pop se veste parecido. Usa meia ¾ ou meia arrastão, saia quadriculada, gargantilha e tênis All Star. Também cortam franja. Antes da pandemia, se usava máscara de ursinho”, explicou Sâmela enquanto apontava para algumas das próprias peças de roupa que utilizava no momento da entrevista.

O processo de reproduzir o estilo de ídolos não é exclusividade dos fandoms de K-pop. Entre pessoas mais jovens, em especial adolescentes, se trata de uma fase importante no desenvolvimento, na qual se busca grupos a partir de gostos em comum. Esses sujeitos também tendem a ser mais suscetíveis ao hábito de colecionar e com isso, há na indústria um incentivo à acumulação de materiais e consumo de mídias relacionadas aos artistas.

Entre fãs de K-pop, há uma tendência a comprar vários álbuns, pois eles contam com um ticket para sorteio de um “fanmeeting”, um encontro entre fãs e ídolos, onde é possível interagir de forma mais próxima. Para aumentar as chances de ser sorteada, é comum uma mesma pessoa comprar diversas cópias.

Com a ascensão da música distribuída no formato digital, o disco passou a ter funções mais estéticas. “A indústria do K-pop entendeu que álbum físico é item de colecionador”, diz Caio, ao explicar que o objeto físico do CD na indústria sul-coreana traz photocards, posters e, por vezes, diferentes versões. Sâmela ressalta que “quem coleciona um integrante, tende a comprar vários álbuns para tentar ter a sorte de tirar o photocard que deseja”.

A compra de álbuns digitais também é constante entre os que acompanham K-pop, como forma de apoiar os músicos que gostam e seguem. Quando há um lançamento, é comum que os fãs criem playlists, chamadas de streamparties, para ouvir a música de forma que seja contabilizada como uma das mais ouvidas.

Preconceito a uma nova influência cultural

Caio Coletti diz que ainda há bastante despreparo na cobertura jornalística sobre K-pop e outras produções sul-coreanas. O jornalista ressalta que isso é ainda mais comum em veículos americanos: “É um desespero palpável que a dominância cultural das coisas faladas em inglês está se ruindo. E eles tão perdendo espaço dentro do próprio país e perdendo espaço quem mais exporta.”

Um exemplo disso é o ranking da revista Billboard, que há décadas tem uma forma específica de contar as músicas e artistas mais tocados. Nesses anos, muitas canções anglófonas passaram meses como as mais ouvidas, porém, quando o grupo sul-coreano BTS passou dez semanas no topo, a forma de contabilizar foi alterada

O grupo chegou a ser acusado de manipular charts para atingirem tal marco. Contudo, o comportamento dos fãs de K-pop difere pouco dos fãs de artistas ocidentais que alcançaram a ponta do ranking da Billboard outrora. A acusação, portanto, seria um ataque direcionado aos fandoms de K-pop. Algo similar ocorreu no audiovisual, quando a empresa Netflix criou uma lista de séries em língua inglesa mais assistidas, quando a sul-coreana Round 6 conquistava a audiência do streaming.

A série também foi central em um debate sobre xenofobia midiática em 2021 – a obra com texto crítico ao sadismo inerente ao capitalismo teve repercutida uma manchete que afirmava que um homem foi condenado à morte na Coreia do Norte por piratear a série.

Por se tratar de um regime socialista, a região sofre constantes ataques xenofóbicos e tem reproduções de sua história em países capitalistas cercada por mitos. A notícia sobre o assassinato tinha como fonte a Radio Free Asia (Rádio Ásia Livre), empresa jornalística financiada pelos Estados Unidos e criada durante a Guerra Fria, conhecida por produzir notícias falsas sobre regimes anticapitalistas no continente asiático.

“É um sintoma de xenofobia que a gente sente no fazer jornalístico. No ocidente existem essas reproduções de fontes não confiáveis, pois considera-se estar tão distante, não se vê as consequências, mas elas existem. Se cria um estereótipo recorrente do país oriental exótico e perigoso” conta Caio Coletti. A série também foi bastante criticada pelo uso de violência gráfica, porém tal recurso é comumente usado por obras anglófonas de grande sucesso, como a série televisiva Game Of Thrones.

A pandemia de Covid-19, com primeiros relatos na China, aumentou o racismo contra asiáticos do extremo-oriente. No último janeiro, o apresentador Jimmy Kimmel em seu programa trazendo comparação entre manias culturais e pandemias, trouxe um paralelo com o grupo BTS e a Covid.

Uma forma sutil de preconceito também presente com as obras sul-coreanas é a barreira com o consumo de obras com línguas que não são as maternas ou o inglês hegemônico. O diretor sul-coreano Bong Joon Ho disse durante o discurso ao ganhar o Oscar de Melhor filme que: “Quando vocês superarem as barreiras de filmes com legendas, conhecerão muitos filmes incríveis”. Apesar do país ter uma tradição no audiovisual, muitos filmes sul-coreanos chegaram ao ocidente através de refilmagens em língua inglesa. 

Com a praticidade dos streamings, tem se facilitado o acesso às obras, como por exemplo sites e aplicativos voltados ao audiovisual asiático a exemplo de Viki Rakuten, Kocowa TV. A dominância da música coreana é também um motivo para o aumento da busca por esse conteúdo, tendo em vista o comportamento de consumo dos fãs. Contudo, apesar do aumento do interesse de ocidentais por arte produzida na Ásia, apenas a apreciação de obras orientais não é suficiente para extinguir a reprodução de violências xenofóbicas.

Os fãs de K-pop estão decidindo a política?

A organização dos fandoms de K-pop é perceptível, nos últimos anos essa organização tem se repercutido na política em várias localidades. Grupos de fãs tem se unido em prol de pautas progressistas e agido contra campanhas racistas e influenciado em processos eleitorais.

Após o brutal assassinato de George Floyd por um policial nos Estados Unidos, o país foi palco de diversos protestos contra o racismo. O movimento Black Lives Matter (BLM), ou Vidas Negras Importam, tornou-se central na organização de atos e agitação nas redes sociais. Em contrapartida, houve uma reação supremacista branca no levante da hashtag “Whites Lives Matter” (Vidas Brancas Importam). Fãs de K-pop se uniram usando da hashtag para compartilhar publicações ligadas a seus ídolos, dessa forma evitando a viralização de conteúdo racista e transformando a hashtag em spam

A polícia de Dallas criou um aplicativo para monitorar atividades ilegais nos protestos do BLM, porém, o uso final costumava ser para denunciar pessoas que manifestavam contra violência policial. Os fandoms de K-pop se uniram para enviar diversos vídeos de seus ídolos, evitando a criminalização da luta antirracista.

Vídeos criados de forma amadora com imagens, originalmente, aleatória de artistas, chamados de fancams, foram centrais nessas duas ações políticas bem-sucedidas. Sâmela Silva compreende isso como uma forma da nova geração lidar com as redes sociais. “Os mais jovens não dominam a linguagem da mídia social. Eles são a mídia social.”. Os grupos de fãs formados majoritariamente por mulheres que acompanham debates sobre racismo e xenofobia, tem se posicionado de forma antifascista ao redor do mundo.

Durante a campanha de reeleição do estadunidense Donald Trump, em seu primeiro evento presencial, os organizadores esperavam uma multidão, mas a quantidade de pessoas presentes foi muito inferior. Fãs de K-pop reivindicaram tal feito, afirmaram que se organizaram através do aplicativo Tik Tok reservando ingressos sem intenção de ir ao local. O fiasco do ato enfraqueceu o neofascista, que foi derrotado na eleição.

Os fandoms também se mostraram ativos durante eleições na América do Sul, combateram mensagens de ódio contra Gabriel Boric, jovem político de esquerda e também fã de música pop, que acompanha diversos grupos de K-pop, durante as eleições chilenas. Boric acabou eleito e é o atual presidente do Chile.

No Brasil, fãs do grupo BTS, as armys, se organizaram em um grupo heterogêneo e fizeram projeções em prédios com frases de incentivo para que jovens de 16 e 17 anos tirem o título de eleitor. A campanha viralizou e junto a outros grupos, de partidos políticos a artistas estadunidenses, houve um enorme aumento de jovens fazendo o documento, mesmo com voto facultativo esse ano.

O grupo responsável afirmou em entrevista à BBC que não recebe nenhum tipo de financiamento e não defende nenhum candidato em específico, seu posicionamento é apenas que os jovens consigam decidir por seu futuro. Apesar de não explicitar um repúdio ao presidente Jair Bolsonaro (PL), tais projeções geram incômodo à base do governo. Caio Coletti considera que é um importante posicionamento no Brasil incentivar o voto, pois o presidente neofascista se posiciona como candidato à reeleição ataca constantemente as eleições, como ao espalhar informações falsas sobre as urnas eletrônicas e o voto auditável.

Quer conhecer um pouco mais do pop coreano? Nossos entrevistados separaram esta playlist com alguns dos videoclipes mais marcantes do estilo.

Carolina de Mendonça

Psicóloga, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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