Aviso aos navegantes: cinema e pirataria no Brasil

Por Igor Nolasco

Enquanto povo, o brasileiro é amplamente versado na pirataria. A evolução da tecnologia ao longo das últimas décadas, no que se refere ao consumo de mídias audiovisuais, foi seguida de perto pela evolução da distribuição ilegal. A era do VHS conheceu a difusão massiva das cópias de fitas, que podiam ser feitas através do próprio aparelho que era usado para reproduzi-las. Já o período do DVD, que no Brasil ocorre a partir da primeira metade dos anos 2000, foi marcado pela venda ampla de DVDs piratas.

Dentre os episódios célebres da pirataria brasileira, há o caso “Tropa de Elite”: pouco antes de estrear comercialmente, em 2007, o longa de José Padilha foi vazado. O sempre antenado mercado da pirataria não deixou barato: a produção tornou-se sucesso de vendas nos camelôs, e o DVD pirata de “Tropa de Elite” se firmou como um dos objetos emblemáticos da cultura popular brasileira dos anos 2000. O apogeu desse vazamento se deu quando o diretor do filme recebeu denúncias de que Gilberto Gil estaria em posse de uma cópia pirateada do longa, indo à residência do músico e então Ministro da Cultura do Brasil para solicitar a devolução do DVD.

A difusão do longa através da pirataria fez com que ele fosse visto por um público massivo, incalculável, e responsável pela popularidade imediata que ele adquiriu entre o povo, marcada pela disseminação de uma série de frases do filme que acabaram tornando-se bordões cotidianos. O sucesso foi tamanho que há quem suspeite que o vazamento do filme teria sido intencional, hipótese que José Padilha nega veementemente. Quando “Tropa de Elite 2” foi lançado, três anos depois, Padilha criou um braço de distribuição para a Zazen, sua produtora, assumindo para si a  responsabilidade de evitar um novo vazamento.

Em resumo: a pirataria foi responsável por um dos maiores sucessos da cinematografia brasileira recente. Não por acaso “Tropa de Elite” permanece como um dos filmes brasileiros mais profundamente enraizados na cultura popular brasileira desde seu lançamento. Tamanho seu impacto, é tido por alguns como um dos responsáveis pela propagação de uma mentalidade que viria a causar profundas consequências políticas e sociais para o Brasil. Ademais, o foco aqui é: “Tropa de Elite” não seria o que é caso não tivesse sido objeto do fatídico vazamento que sofreu.

A era do streaming

 

A partir de meados dos anos 2010, o consumo de audiovisual passa a ser feito digitalmente. A popularização de plataformas de streaming e video on demand causa a morte de mercados antigos, como o das videolocadoras e o do home video como um todo. A pirataria já estava na internet desde muito antes, mas é a partir desse período que ela passa a chegar em um público que antes apenas a consumia através de suas manifestações “analógicas”, como as fitas VHS e DVDs pirateados.

A palavra-chave é “torrent“. O sistema de compartilhamento de arquivos através da lógica peer-to-peer, que não é necessariamente restrita a formas ilegais de distribuição, passou a ser a principal forma de se piratear audiovisual no Brasil. Dentre os interessados em cinema e seriados de TV, os sites de compartilhamento de torrents tornaram-se Mecas digitais. Como o tráfico de informações era feito com o IP do usuário visível, não tardaram a surgir formas tidas como mais seguras para o compartilhamento de torrents, como fóruns nos quais é preciso ter convite para entrar e trackers privados, ainda mais restritos que os fóruns.

A pirataria digital inicialmente mostrou-se como a única alternativa para consumo de filmes que não chegavam legalmente no país, cujo circuito exibidor, àquela altura, era majoritariamente focado no cinema comercial estadunidense (não que muita coisa tenha mudado desde então). Para os interessados em explorar a história do cinema, passou a ser um meio incontornável para se poder assistir a filmes que nunca haviam sido disponibilizados de forma legal em território brasileiro, ou facilitar o acesso àqueles que apesar de disponíveis, eram difíceis de se encontrar, ou vendidos a preços caros.

Quando as primeiras grandes plataformas de streaming de filmes e séries começaram a arrebanhar para si um número considerável de assinantes no mundo inteiro, o fenômeno foi, por alguns, anunciado como “o fim da pirataria”. A lógica era a seguinte: por um preço acessível, o espectador poderia consumir um vasto catálogo de conteúdo audiovisual de várias décadas, que ia de clássicos a produções recém saídas das salas de cinema. O bastião do “fim da pirataria” foi o primeiro serviço de streaming a alcançar popularidade no Brasil: a Netflix. E não poderia ser diferente. Hoje, anos depois, ainda é a plataforma mais popular no país e a que mais lucra com o streaming no mundo.

As primeiras falhas nessa lógica, entretanto, não demoraram a se manifestar. A começar, evidentemente, pelo escopo geográfico do catálogo. Era inegável a predominância de conteúdo estadunidense. Esse recorte abruto já era, desde o início, extremamente limitador. Logo diversas companhias que detinham propriedade intelectual distribuída pela Netflix gradualmente retiraram seus títulos do serviço para poder eventualmente disponibilizá-los em plataformas próprias. A concorrência veio tanto dessas companhias quanto de outras, como a Amazon, com seu serviço Prime Video. As grandes corporações do oligopólio norte-americano entraram numa guerra interna, onde quem saiu perdendo foi o consumidor. Sem dinheiro para bancar as cada vez mais numerosas plataformas de streaming, o brasileiro médio se viu preso apenas com a Netflix, de quem já era consumidor fidelizado. A essa altura, a plataforma já estava investindo em peso em conteúdo original. Fazia isso não só como uma forma de se firmar como produtora e distribuidora, mas também para preencher as lacunas deixadas pela debandada de filmes e séries que foram retirados de seu catálogo.

Parte majoritária desse catálogo, atualmente, é composta por conteúdo original. Para a Netflix, isso é ótimo. O consumidor padrão da plataforma não reclama, devidamente fidelizado. Os poucos filmes clássicos restantes na plataforma vão desaparecendo, um a um. Os títulos anteriores à década de 1990 são estrategicamente escondidos pelo algoritmo para que sejam pouco localizados e pouco assistidos. Somem sem deixar vestígio. Para o público fidelizado, a história do cinema está sendo reescrita. Começa nos anos 2010, quando muito nos anos 2000. Os anos 1990 já são vistos como um passado pré-histórico. Plataformas concorrentes também já estão investindo em conteúdo original, sugerindo que esse modelo veio para ficar.

O público da Netflix continuará consumindo tudo o que a plataforma lhe oferecer. Os filmes e séries veiculados pelo serviço são moda, assuntos do momento. O consumidor que quiser conhecer uma maior variedade de títulos, se aprofundar na cinematografia de países e décadas variadas, encontra-se sem outras opções para além da pirataria. Se antigamente as videolocadoras, apesar de suas limitações, podiam assistir com um ou outro título mais raro, hoje isso está fora de questão, visto que esse modelo de negócios, a rigor, não existe mais. Por ter perdido espaço no mercado, o home video virou coisa de nicho, e como tudo o que vira de nicho, encareceu: apesar de uma boa variedade, DVDs e discos Blu-Ray hoje são vendidos a preços que o consumidor médio não pode pagar.

Resta, como única alternativa, a pirataria. Para além do torrent, plataformas de compartilhamento de vídeo, como o YouTube, também são amplamente utilizadas para a veiculação de filmes, disponibilizados por pessoas que recorrem à distribuição ilegal como forma de compartilhar filmes que cada vez mais são vistos como párias por empresas como a Netflix. Existem canais inteiramente dedicados à divulgação de clássicos dos anos 1930, 1940, 1950. Canais que focam em cinematografias de países específicos, como o Brasil (que mesmo tendo um cinema rico e múltiplo, é mal e porcamente representado pelas plataformas oficiais). E os serviços de streaming, que inicialmente eram vendidos como “o fim da pirataria”, foram, em verdade, o estopim para seu recomeço.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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