Consumido pelo fogo

Em 29 de julho de 2021, um galpão da Cinemateca Brasileira ardeu em chamas. Não foi a primeira vez nos últimos anos que história e cultura se viram consumidas pelo fogo. Caso a sabotagem promovida pelo governo e a indiferença da iniciativa privada e da ‘filantropia’ sigam no mesmo ritmo, também não será a última

Por Igor Nolasco

Em seu livro mais recente, “A origem da espécie: O roubo do fogo e a noção de humanidade”, o escritor carioca Alberto Mussa recapitula uma série de mitos fundadores existentes em diversas civilizações, polvilhadas através do globo e de diferentes períodos históricos. O que todos tem em comum é a temática: a descoberta do fogo por tais civilizações. E o contato entre o ser humano e o fogo é, de fato, tido por muitos como o que impulsionou todo o processo de evolução e modernização da humanidade. Mas assim como o fogo cria, ele também destrói: está aí a sua dualidade. Ele está por trás, por exemplo, da criação das armas de fogo, que mudaram para sempre os rumos da raça humana. E armas de fogo, como se sabe, são feitas para destruir, independente de propósitos nobres ou vis.

Não é preciso, no entanto, olhar para invenções advindas do fogo para enxergar essa dualidade: ela é algo que faz parte natural do elemento. O fogo que aquece de forma reconfortante é o mesmo que pode queimar mediante uma aproximação pouco cautelosa. E que pode ser usado, propositalmente, para queimar alguém. Ou algo.

Lembro muito bem do baque que foi receber uma notícia relacionada ao fogo que está intimamente atrelada aos rumos que o país tomou desde então: o incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, bem como parte de seu acervo, um patrimônio histórico inestimável. Ao ver os registros do palácio na Quinta da Boa Vista obscurecido pela fumaça, percebi uma triste coincidência: há pouco eu havia começado a leitura de “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury.

451, como é explicado no livro, é a temperatura, em graus Fahrenheit, na qual o papel queima. O equivalente, medindo-se em Celsius, seria o de 232.77777778 graus. Como se sabe de forma mais ou menos ampla, dado o impacto da distopia criada por Bradbury na cultura popular ocidental, o romance conta a história de um futuro onde a humanidade é submetida a tecnologias que funcionam como um cabresto, e livros são considerados suficientemente perigosos a ponto dos bombeiros, profissão tradicionalmente incumbida de apagar incêndios, serem acionados pelos poderosos para fazer justamente o contrário: queimar todos os livros que encontrarem, empreendendo buscas para localizar o material subversivo.

Eu assistia ao telejornal com o livro de Bradbury no colo. Via, horrorizado, as tomadas aéreas do bairro de São Cristóvão. O museu parecia sufocado pelas nuvens escuras. Corte para o então presidenciável Jair Messias Bolsonaro. Perguntado sobre o Museu Nacional, deu uma resposta lacônica: “Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê? O meu nome é Messias, mas eu não tenho como fazer milagre”. Pouco mais de um mês depois, Bolsonaro seria eleito presidente do país, no segundo turno das eleições daquele ano, em uma vitória questionada por ele mesmo, de forma recorrente, até hoje – diz que deveria ter vencido já no primeiro, e questiona também a legitimidade da eleição presidencial anterior, em 2014. No entanto, não apresenta provas, mesmo quando anuncia que irá fazê-lo. Mas, por ora, o assunto aqui não é esse.

Em 2018, o Brasil ainda era presidido por Michel Temer, antes vice de Dilma Rousseff e um dos articuladores do golpe de Estado parlamentar que a derrubou. Hoje, alguns – inclusive setores da esquerda – dizem, meio que com fumos de ironia, meio que com amnésia seletiva, sentirem saudade de Temer. Mas foi em seu governo que se iniciaram as reformas que visam tornar a vida do povo brasileiro verdadeiramente miserável, e que foi imposto o infame teto de gastos. Para além dessas questões, que doem no bolso do povo mais de imediato, está uma outra, que muitos ignoram ou desprezam rigorosamente: a da cultura.

Já no governo Temer, o Ministério da Cultura foi abruptamente extinto. Após protestos mobilizados pelo setor, o Ministério foi reestabelecido poucos dias depois, num gesto de recuo e covardia característico dos dois anos em que Temer passou no poder. Mas isso já era um sinal claro de que a cultura estava sob ataque. A Agência Nacional do Cinema (ANCINE), por exemplo, desde essa época já vinha encarando as dificuldades e tensões que apenas se agravaram a partir do momento em que Bolsonaro assumiu a presidência, em janeiro de 2019.

Comentei brevemente em minha última coluna para a Badaró, publicada em julho desse ano, que a Mostra de Cinema de Gostoso de 2021 exibiu um curta-metragem realizado por Ozualdo Candeias em 1993 sobre a Cinemateca Brasileira de São Paulo. O que deixei de comentar, por descuido, desatenção ou por não caber propriamente naquele texto, foi que a disponibilização do curta de Candeias, de certa forma, dialogava com outros programas da Mostra, como a veiculação de dois filmes longa-metragem co-dirigidos por Carlos Reichenbach que foram exibidos como uma homenagem ao mesmo. Filmes raros, eles só puderam ser disponibilizados pois haviam sido devidamente preservados pela Cinemateca (como frisei ao escrever, em outra oportunidade, sobre os filmes em questão), podendo ser assim digitalizados e exibidos no evento. Algum tempo após a publicação de minha coluna anterior, fui acometido por um grave arrependimento por não ter salientado suficientemente a importância da Cinemateca naquele texto.

Na noite de quinta-feira, 29 de julho de 2021, um prédio que armazenava parte do acervo da Cinemateca Brasileira no bairro de Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, foi consumido pelo fogo. Pouco antes, ele havia sido objeto de uma manutenção em sua parte elétrica. Não se trata do prédio principal da Cinemateca, uma construção de tijolos localizada em outro bairro, Vila Mariana. Não obstante, perde-se, com o incêndio, parte da história do nosso cinema, através de latas de filme e documentos reduzidos a pó e nitrato pelas labaredas. Para a GloboNews, Francisco Campera, da Fundação Roquette Pinto – entidade que servia como gestora da Cinemateca antes de ser destituída de tal posição pelo Governo Federal – informou que “perdeu-se 4 toneladas de documentação da história do cinema brasileiro. Toda a documentação do Instituto Nacional de Cinema, da década de 60, até hoje da Secretaria Especial de Cultura, passando pela Embrafilme e pela Concine. Há também cópias de filmes, mas que já estavam em estado pior de conservação”.

Acompanhando o incêndio no galpão da Cinemateca, redescobri dentro de mim a sensação aterradora que tive ao ver, em 2018, o Museu Nacional em situação análoga. Uma quantidade absurda de documentações e filmes que fazem parte da história de nossa cinematografia e, por extensão de nosso país, perdidos para sempre. E com “filmes”, não nos referimos, apenas, a longa-metragens de ficção: documentários, longas, curtas, programas de televisão, filmagens caseiras. Tudo em película. Tudo perdido.

O incêndio, como se sabe, não é obra do acaso. A possibilidade para tal calamidade fora exaustivamente alertada pelos trabalhadores da Cinemateca Brasileira, negligenciados pelo Governo Federal e que não veem um centavo do repasse destinado à instituição desde janeiro de 2020. O descaso proposital também é uma forma de sabotagem. Bolsonaro e seus cupinchas, dentre os quais o atual Secretário da Cultura e ex-ator Mario Frias, conseguiram, em parte, o que queriam. Frias, aliás, declarou que vai abrir investigação junto à Polícia Federal para averiguar se o incêndio foi fruto de uma ação criminosa. Ora, evidente que foi. E o criminoso, nessa situação, é o próprio governo para o qual ele trabalha.

Relembro, amargo, da coluna que escrevemos para a Badaró em novembro de 2020, na ocasião de um protesto organizado pelos trabalhadores da Cinemateca Brasileira ante a marca de 300 dias sem o repasse federal daquele ano. O repasse de 2020, evidentemente, não veio, e nem o de 2021. Há pouco a Cinemateca havia sido acometida por uma enchente. O perigo de outra de proporções piores, ou de um incêndio, já manifestava-se no ar, pesado como chumbo. Incêndios e enchentes permeiam momentos duros na história da instituição. E sempre que ocorrem, levam consigo uma parcela de nossa herança cultural, que para além de sabotada pelo Estado, é solenemente ignorada pela “filantropia”.

O Brasil tem os dois cineastas mais ricos do mundo, que preferiram sentar em seus bilhões ao invés de oferecer à Cinemateca alguma ajuda substancial. Passear no Festival de Cannes enquanto o povo do próprio país perece em meio à pandemia de COVID deve lhes parecer mais interessante. Não se trata de apontar dedos, apenas constatar que haviam pessoas capazes de conter esse estrago, mesmo em meio ao esforços deliberados do Estado em levá-lo a cabo. A imobilidade dessas pessoas também dá, a elas, uma parcela da culpa. Já dizia Aparício Torelly, vulgo Barão de Itararé – patrono do jornalismo de esquerda no Brasil – “De onde menos se espera, é que não sai nada de bom mesmo”. Do governo federal e dos que a ele estão submetidos, esse tipo de imobilidade, que dá espaço ao desenrolar gradual da tragédia, é mais do que esperado. Agora, daqueles que participam do cinema brasileiro e possuem condições materiais de fazer, pela preservação do mesmo, alguma coisa, tal falta de proatividade diz muito sobre a nossa burguesia – palavra mais adequada para defini-la do que “elite”, uma vez que esta, segundo o dicionário, designa aquilo que há de melhor e mais prestigioso em um determinado grupo. Por aqui, vemos que não é o caso.

Há quem esteja comparando o ocorrido com o que ocorreu com a estátua do bandeirante assassino, escravagista e genocida Borba Gato, também em São Paulo.

Borba Gato é mesmo o tipo de figura que só poderia ser homenageada em São Paulo, cidade que culturalmente tem uma inexplicável devoção aos bandeirantes (a ponto de nomear um complexo jornalístico e televisivo em homenagem a estes), que eram pouco mais do que piratas que agiam pelo solo, somando as piores características da pirataria caribenha com os hábitos de violência e destruição tipicamente brasileiros para com os povos negros e indígenas. Pouco antes do ocorrido no galpão da Cinemateca, em meio a uma manifestação contra o governo de Jair Bolsonaro, manifestantes atearam fogo ao monumento em homenagem ao execrável bandeirante. Este, no entanto, não foi destruído: ficou apenas brevemente coberto de fuligem. O fogo foi apagado rapidamente e a estátua, que pouco sofreu, será objeto de restauração. Pessoas supostamente ligadas ao incêndio foram prontamente presas, de forma, inclusive, tida como ilegal.

Onde se viu essa rapidez no caso da Cinemateca? Onde estão as instituições se solidarizando tão de imediato? E os empresários, que se ofereceram a cuidar do bandeirante de pedra como se este fosse uma criança indefesa? E os comentaristas, colunistas e jornalistas da mídia liberal, que não pouparam palavras para taxar o ataque ao monumento a Borba Gato de criminoso e de dizer que aquele tipo de ação apenas fortaleceria o governo de Bolsonaro ante a opinião pública? Sumiram. Ou, pior: estão se fazendo de desentendidos, publicando notas comedidas e solenes.

Borba Gato merece não mais do que a proverbial lata de lixo da história. O atual presidente, junto àqueles que estão ou estiveram a seu lado nesse governo que ativamente assassina o povo brasileiro e sua cultura, merecem mais a nossa atenção.

Enquanto o galpão da Cinemateca ardia em chamas, Jair Messias Bolsonaro estava participando de uma transmissão ao vivo, como rotineiramente vem fazendo, às quintas-feiras, para sua claque – e ainda hoje ele tem um inexplicável piso de aprovação de por volta de 20% que não desce nunca. O assunto: supostas provas de fraude nas eleições presidenciais de 2014 e 2018 – parte de sua campanha quixotesca a favor do voto impresso para as eleições de 2022. Evidentemente, não havia prova nenhuma, como ele mesmo admitiu ao final de tão estúpida pantomima. Em momento algum aquela veiculação massiva de informações falsas e mentirosas pelos canais oficiais do Governo Federal foi interrompida para que se falasse, mesmo que em menção breve, da situação da Cinemateca Brasileira. Mesmo após o término da transmissão, nem uma palavra do presidente do país.

Sugeriu o jornalista André Barcinski, pelas redes sociais: “Quando nazistas ocuparam Paris, o diretor da Cinemateca Francesa, Henri Langlois, escondeu milhares de filmes em residências e sótãos (até enterrou latas!), salvando boa parte da história do cinema. Sugiro fazermos o mesmo aqui”.

Langlois foi a principal inspiração para Paulo Emílio Sales Gomes, o militante, crítico de cinema e principal idealizador da Cinemateca Brasileira. E tantas décadas depois do falecimento de Paulo Emílio, talvez o caminho indicado por Barcinski ao evocar Langlois deva ser levado em conta caso não queiramos ver o que ainda resta da história do nosso cinema ser consumido pelo fogo.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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