Sujeitos precarizados e ética tênue: profissionais de saúde e redes sociais

Divulgações de serviços de saúde em plataformas online tem mostrado falhas éticas de profissionais da área, fruto da precarização do trabalho dos mesmos

Por Carolina de Mendonça
Arte por Guilherme Correia

Com o avanço do neoliberalismo, a ideologia do self-made man (em tradução livre: homem que se constrói sozinho) criou um trabalhador ideal ao novo momento do capital: o autônomo, que acumula funções para além de suas aptidões.

As profissões de saúde historicamente têm um viés elitista e individual, e os profissionais que trabalham na modalidade liberal tendem a ter maiores remunerações – como por exemplo, os que atuam em contexto de clínicas privadas.

No entanto, as atividades são realizadas sem um vínculo empregatício e com negociação direta com aquele que contrata o serviço prestado, o paciente, e é preciso se tornar conhecido enquanto profissional. Desta forma, as redes sociais têm sido uma forma de promover seus trabalhos.

Muitos que prestam esse tipo de serviço utilizam perfis nas mídias sociais como ação de marketing. Em sites e aplicativos, para conseguir ser visto, é preciso muito esforço para produção constante de conteúdo que seja de fácil consumo e que gere bastante engajamento. 

A necessidade em ser simples e chamativo pode fazer com que o profissional crie conteúdo não tão adequado ao debate científico, que contrarie a ética da profissão que exerce, o que leva a questões problemáticas a curto, médio e longo prazo, nos discursos sobre saúde mental, em tempos de algoritmo – reforçando a lógica neoliberal que adoece sujeitos.

Se você sente…

Ao promover produtos ou serviços, não é incomum o formato de criar um desejo, ou necessidade, para incentivar o consumo. Na área de saúde, esse tipo de promoção acaba sendo mais embaçada – afinal, para consumir remédios ou buscar tratamentos, é preciso, na maioria dos casos, estar em estado de adoecimento.

Há uma anedota interessante na medicina (ou talvez seja fala de uma série que acompanhei há uns anos) que falava que um mesmo adoecimento terá suposições diagnósticas muito distintas de acordo com cada especialista. 

Exemplificando: uma mulher de 35 anos vai a diferentes médicos queixando dor de cabeça. O primeiro é um ortopedista, que suspeita de um trauma – uma lesão externa que gera ferimento. Investigando a história de vida da paciente, ele encontra situações que podem ter gerado este trauma. Já ao buscar um psiquiatra, a suspeita será um outro tipo de trauma – um evento que leve a afetos intensos e tem repercussão em outros aspectos da vida. Ambos aguardam resultado de exames solicitados para confirmar as hipóteses e iniciar o tratamento adequado. Ambos estavam equivocados e a paciente em questão não estava doente, mas gestante.

Dor de cabeça é um sintoma comum, presente em muitos casos, além dos quais descrevi. E suas causas podem confundir e intrigar especialistas mais diversos. Mesmo associando a outros sintomas, ainda é preciso de diagnósticos físicos e investigação da vida do paciente – a anamnese. 

Em contrapartida, a complexidade de um diagnóstico em saúde se tornou popular em publicações, com listas de sintomas, em imagens ou vídeo, que podem gerar um adoecimento, além da necessidade da busca de profissional especializado e, logo abaixo, a indicação de que o criador do conteúdo pode oferecer este trabalho. Além disso,  esta relação pode estimular autodiagnósticos que levam a conclusões ainda mais precipitadas, arriscando especialmente o uso de medicamentos sem indicação médica, comum em três a cada quatro moradores do Brasil.

Em saúde mental, é ainda mais complexo. Sintomas físicos, como dor, coceira ou febre, significam que algo acontece, necessariamente, e requer atenção. Mudanças psíquicas – como emoções consideradas negativas, variações de humor ou pensamento acelerado, não indicam que algo está fora do esperado ou adoecido, mas podem significar diversas coisas, inclusive uma forma salutar de existência.

Vale ressaltar que, dentro da lógica capitalista, é muito difícil estar no mundo de modo saudável. A relação com trabalho, cada vez mais precária, cria sofrimento e adoecimentos, para além do psíquico. A intensa cobrança por produtividade leva os sujeitos a reprimir afetos, tais como luto, saudades ou paixão, para que esses não atrapalhem a rotina.

A classe trabalhadora é composta majoritariamente por grupos marginalizados, alvos de constantes violências, que levam muitos destes a se moldarem como forma de evitar serem reprimidos – uma forma de violência, que também fragmenta a subjetividade.

O sofrimento de uma pessoa não cabe em um manual de diagnósticos. Tampouco em uma publicação de rede social com menos de um minuto. Informar sobre adoecimentos e suas formas de cuidado não deve ter viés puramente mercadológico, já que vender uma suposta saúde, também pode gerar adoecimento.

Hoje atendi um paciente que… 

Não é incomum ler ou ouvir um relato de profissional de saúde sobre algum paciente. Seja alguma forma de cuidado equivocada e sem assistência que levou a um quadro de adoecimento grave, alguma situação jocosa ou triste que impactou o trabalhador que acompanhou o caso, ou até mesmo um comparativo de antes e depois do tratamento.

Há diversas problemáticas nessas abordagens. A primeira, e óbvia, é a exposição do atendido, que pode gerar problemas ao sujeito e torna público informações muito sensíveis. Mesmo que soem engraçadas ou pareçam ensinar algo, tendem a descontextualizar e explanar sobre intimidades que foram confiadas em sigilo profissional. Além disso, com certa frequência, tais aprendizados têm embasamentos morais e não científicos.

O uso de imagens comparativas ou respostas sobre o trabalho é comumente incentivado em cursos sobre marketing digital, mas não deve ser utilizado por profissionais de saúde. Além de expor um sujeito – o que não é permitido pela maioria dos códigos mesmo com suposto consentimento, há uma problema na previsão de resultados na divulgação, visto que as consequências do tratamento só podem ser prognosticadas após avaliação do sujeito atendido.

No artigo 9 do Código de Ética Profissional do Psicólogo, é possível encontrar como dever do mesmo, o respeito ao sigilo profissional. Artigos similares são encontrados nos demais códigos de ética de outras categorias de trabalhadores em saúde, a fim de assegurar direitos básicos às pessoas atendidas e respeito a suas histórias.

E tá tudo bem?

Não.

Essa é a resposta curta para essa frase que se popularizou nas redes sociais de profissionais de saúde, a fim de falar de contradições cotidianas, mas que se tornou um meme em formato de pergunta.

Os trabalhadores da área têm de lidar, cada vez mais, com a precarização de suas atividades laborais. As investidas constantes para privatização do Sistema Único de Saúde (SUS) geram instabilidade nas relações de trabalho destes. Em contextos privados, tende a se contratar majoritariamente prestadores de serviço, em modalidade de pessoa jurídica (PJ), sem a garantia de uma série de direitos trabalhistas. O empreendedorismo surge neste contexto, não como uma escolha, mas sim como uma necessidade. 

A ideologia liberal vigente reforça uma forma de empreender voltada à competição entre profissionais, enfraquecendo lutas coletivas destes, junto a sindicatos e conselhos de classe. Mantendo um ciclo vicioso de precarização do trabalho de tais grupos.

Nas redes sociais, esses sujeitos encontram a possibilidade de atrair pessoas interessadas em seus serviços. Contudo, a exigência de produção de conteúdo pelos algoritmos dessas plataformas é contrária à divulgação de informações embasadas, o que faz com que muitos trabalhadores, na maioria das vezes, sem nenhum estudo em comunicação social, caiam em discursos antiéticos.

O espaço virtual pode ser importante para disseminação de informações e debates, como também da divulgação de serviços. O uso dessas plataformas, no entanto, não pode ser desassociado de uma luta por melhores condições de trabalho, como também de acesso amplo à saúde pela população, trazendo a esse ambiente, também profissional, uma responsabilidade pela transformação social e garantia ao bem-estar.

Carolina de Mendonça

Psicóloga, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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