Um cineasta na sala vazia

Responsável por “A Margem”, marco no Cinema de Invenção brasileiro, Ozualdo Candeias buscou retratar, por sua câmera, a condição das populações marginalizadas de seu país através de um estilo visualmente único. Ao fim da vida, seus filmes angariavam cada vez menos público. Hoje, eventos pontualmente lançam luz sobre componentes menos lembrados de sua obra

Por Igor Nolasco
“No meu trabalho, colhi críticas destruidoras. E ainda colho.  Cheguei a fazer shows com 2 pessoas na plateia. A imagem do professor na sala de aula vazia, explicando a matéria pra ninguém, é o que me alimenta. Por isso te chamo de infeliz. Você não entendeu nada.”
Rogério Skylab, músico e escritor.

“Nós temos aqui hoje um diretor de cinema que, você pode ter certeza, esse sim, só tem dez, doze espectadores”. Assim falou o ator e diretor de teatro Antônio Abujamra, em sua função de apresentador do programa “Provocações”, no monólogo destinado à apresentação de um dos entrevistados daquela noite. Fitando  frontalmente a câmera – fechada em seu rosto, como de costume à linguagem do “Provocações” – Abujamra prosseguiu, levantando o questionamento: “Por exemplo, quem já viu o filme ‘A Margem’? Ninguém. Quem viu ‘Meu Nome é… Tonho’? Ninguém. ‘Manelão, O Caçador de Orelhas’? Ninguém. ‘As Bellas da Billings’? Ninguém”. Foi dessa maneira que o espectador da TV Cultura, naquele 10 de junho de 2001, foi introduzido ao cineasta Ozualdo Candeias.

À época, Candeias já estava com cabelos e barba completamente brancos – sua data de nascimento ainda era tida por muitos como uma incógnita, que se há pouco foi aparentemente desvendada, não deixa de confundir pesquisadores menos habilidosos. Mesmo para uma gravação feita no interior de um estúdio, utilizava fielmente seu usual par de óculos escuros. Recebeu de Abujamra, logo de cara, uma pergunta de abertura que fez jus ao nome “Provocações”: “Me diga uma coisa, Candeias, por que você é tão desconhecido?”.

O diretor não desafinou, e atravessou a entrevista trocando provocações amigáveis – à altura das feitas pelo apresentador – com Abujamra, e respondendo às questões relativas a seu cinema (e ao escasso público do mesmo) de forma substancial, mas sempre mantendo a clareza. “Naquele momento da década de 70 até perto da de 90, ou de 80, eu tinha, por exemplo, mil espectadores… e hoje eu tenho, mais ou menos, dez”, expunha, sem demonstrar vergonha de sua posição enquanto um ilustre desconhecido para o público geral. Candeias faleceria seis anos após sua passagem pelo “Provocações”.

Já de início o cinema do diretor paulista, nascido em Cajobi, de fato poderia ser objeto de rótulos como “hermético” ou “experimental”. Mencionado por Abujamra no monólogo inicial do “Provocações”, o “A Margem”, de 1967 – seu primeiro longa – é tido como marco-zero do Cinema Marginal, movimento de cineastas que surge a partir do foco de produção paulistano conhecido como Boca do Lixo – região à qual Candeias recorreu para buscar alternativas de distribuição para “A Margem”, e na qual permaneceu, com gosto, por décadas – chegando a registrá-la, de maneira documental, no curta “Boca do Lixo Cinema”, de 1976. O movimento, chamado também de “Cinema de Invenção”, teria em “A Margem” seu verdadeiro expoente original, ainda que tenha passado a ser conhecido nacionalmente a partir de um filme lançado no ano seguinte – “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla.

No livro “Cinema de Invenção” (Editora Max Limonad, 1986), tido como um dos principais compêndios teóricos relativos a esse momento da cinematografia brasileira, o crítico e cineasta Jairo Ferreira inclusive chega a cravar que “o experimental [no cinema brasileiro] nasceu mesmo foi na Boca do Lixo em 1967 com ‘A Margem’ de Ozualdo Candeias […]”. Outra versão sobre a origem do termo “Cinema Marginal”, dada pelo montador Geraldo Veloso no catálogo “Além Cinema” (Editora SESC, 2012), atribui a origem do nome ao produtor e fotógrafo cinemanovista Luiz Carlos Barreto, “em uma tarde, no escritório de Billy Davis [ator e cineasta], para Neville [D’Almeida], Geraldo Veloso e outros, que lá estavam”. Independente de ser ou não ser a verdadeira margem por trás do Cinema Marginal, fato é que Candeias é um de seus mais prolíficos expoentes, com uma produção que se estende de 1967 até a década de 1990, ainda que longe das condições ideais. Seu último longa, “O Vigilante”, foi produzido em 1992, quinze anos antes de seu falecimento.

Era um momento particularmente difícil para o cinema brasileiro. Pouco antes, logo ao início de seu breve governo, Fernando Collor de Melo havia extinguido de vez a Embrafilme, produtora e distribuidora de capital misto criada em 1969 para dar fomento e visibilidade à produção nacional. Perdendo sua institucionalização, o cinema do país atravessou os primeiros anos da década de 1990 produzindo poucos filmes e distribuindo menos ainda. Segundo o FilmeB, portal referência para dados sobre cinema brasileiro, “em 1992 apenas três produções nacionais chegaram ao circuito”. Tratam-se de “Conterrâneos Velhos de Guerra”, documentário dirigido por Vladimir Carvalho, “O Natal de Todos Nós”, animação protagonizada pelos personagens da Turma da Mônica, e “Perfume de Gardênia”, de Guilherme de Almeida Prado. “O Vigilante” não consta nessa pequena lista. E não está nela por um motivo simples: apesar de ter, de fato, sido produzido em 1992, jamais foi exibido comercialmente, numa sala de cinema, para um público pagante, em cartaz ao lado dos grandes sucessos de bilheteria internacionais daquele ano, como (novamente tendo como base dados do FilmeB) a animação da Disney “A Bela e a Fera” ou o thriller sexual “Instinto Selvagem”, dirigido por Paul Verhoeven.

Na década de 1990, “O Vigilante” foi objeto de pouquíssimas exibições públicas, como um todo, e em ambientes como a Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Por anos, permaneceu como um filme particularmente desconhecido em meio a uma filmografia oblíqua ao público geral. Já em 2021, foi um dos filmes exibidos na mostra “Três décadas brasileiras pela cinefilia“, organizada pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com base em três listas organizadas pelo co-curador Pedro Lovallo a partir de votações realizadas entre certos círculos virtuais no objetivo de eleger os melhores filmes dos anos 1990, 2000 e 2010. Entre os espectadores da mostra, o longa de Candeias foi recebido com entusiasmo, engrossando uma espécie de “redescoberta” que em verdade já havia se iniciado quando uma cópia em boa qualidade de “O Vigilante” surgiu em certos cantos da internet, alguns meses antes.

Esforços por parte de instituições como a Cinemateca Brasileira e a Cinemateca do MAM estão entre os poucos feitos para dar maior visibilidade a um dos últimos trabalhos de cineasta sem igual no Brasil e no mundo, que através de uma linguagem experimental, não obstante sensível, e de um olhar elegante e aguçado, buscou retratar em seus filmes as condições às quais as populações marginais (vide “A Margem”, mas não só) brasileiras foram historicamente submetidas – e continuam o sendo. De seu primeiro longa, onde retrata as idiossincrasias, alegrias e dissabores dos integrantes de uma comunidade ribeirinha, passando por filmes onde elabora enredos que se relacionam com a questão da disputa de terras no Brasil rural, como em “A Herança” (1971), chegando a produções que sutilmente falam sobre a questão da violência praticada pelo estado durante a ditadura militar, como “A Freira e a Tortura” (1984), Candeias tem uma obra múltipla, calcada em um estilo muito próprio e que fez história no cinema brasileiro. E ainda assim, findou sua carreira sendo um cineasta sem público, como um professor numa sala vazia, explicando a matéria da lousa para um ou dois alunos, mas com o mesmo afinco como o faria se a classe estivesse lotada.

Que eventos como a recente mostra promovida pela Cinemateca do MAM, para além de outras retrospectivas, homenagens e recapitulações – tardias, sim, mas justas – sirvam para gradualmente trazer a certos públicos trabalhos menos prestigiados de um cineasta que foi consagrado, entre a historiografia oficial do cinema brasileiro, por seu primeiro longa, mas não demorou a descobrir que dificilmente conseguiria sair, de forma concreta, da obscuridade. Só hoje, e em dadas oportunidades, algumas dessas realizações mais obscuras vêm à tona. A Mostra de Cinema de Gostoso desse ano, por exemplo, tomou para si a iniciativa louvável de exibir um dos filmes menos conhecidos de Candeias, menos ainda que “O Vigilante” – o curta documental “Cinemateca Brasileira”, de 1993 – ao que tudo consta, esse sim, seu verdadeiro último filme.

Fazer cinema no Brasil não é fácil, e é mais difícil ainda se tornar um diretor-celebridade. Candeias não parecia ter essa como uma de suas preocupações principais: focou em fazer um cinema inventivo – verdadeiramente de invenção, conforme pregava Jairo Ferreira. Sua obra permanece entre nós catorze anos após seu falecimento, tão sólida, tão diferente, tão enigmática quanto sempre foi, com o agravante de agora estar completa. Analisá-la é como tentar resolver os enigmas de uma esfinge, que suavemente entoa: “decifra-me ou devoro-te”. A obra de Candeias, no entanto, por tudo o que tem a dizer sobre Brasil, sobre cinema, sobre a condição humana e sobre tantas outras coisas, está mais próxima da inversão dessa máxima, cunhada pelo poeta Waly Salomão: “devora-me ou decifro-te”.

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