A “lacração” no divã: saúde mental e política de cancelamento no BBB21

“Cancelamento” não só é a palavra do momento, mas uma versão deturpada da ação política ou do que já foi um dia considerado atitude

Por Tainá Jara

O reality show Big Brother Brasil 21 tem dominado as timelines e trending topics do Twitter nos últimos dias. O programa, que desde 2002 mostra-se como um clássico da cultura de massa televisiva brasileira, propõe-se como uma forma de entretenimento e distração para a classe média. Entretanto, nesta edição a “distração” não está tão leve assim. 

Cancelamento não só é a palavra do momento, mas uma versão deturpada da ação política ou do que já foi um dia considerado atitude. O companheiro próximo da “lacração”, dá potência a vários temas, no entanto perde sentido quando não vem acompanhada de espaço para diálogo e debate. O ato de “cancelar” tornou-se o enredo do programa. Fiuk, Lumena, Lucas Penteado, Julliette, Karol Conká e Projota estão entre alguns dos que protagonizaram atos de cancelamento em pouco mais de 10 dias de confinamento.

No BBB com mais participantes negros em 21 edições, é natural que dois deles estejam no centro das polêmicas. A formatação inédita não impede, no entanto, que complexos problemas sociais sejam trazidos na bagagem. Pelo contrário, há mais e novos elementos para problematizações. Fala-se em militância para caracterizar os debates e a própria representação social de Lucas Penteado e Karol Conká. Aqui, vamos considerar tanto militância como ativismo como formas de transformação social.

A primeira, mais estruturada, ocorre geralmente dentro de organizações constituídas, como partidos e movimentos sociais organizados. Muitas vezes, exigem pragmatismo e estão amarradas a questões burocráticas, demandando mais tempo para resultar em ações concretas, porém, mais sólidas a longo prazo.

A segunda carrega a fluidez característica das gerações conectadas. A difusão que permite a adesão a uma causa por um clique, no entanto, é a mesma que a torna vulnerável, fácil de ser apropriada e utilizada, muitas vezes, como mero artifício em favor do consumo, mas não menos importante num processo urgente de romper com preconceitos. O movimento “Black Lives Matter”, que tomou as ruas no ano passado em várias partes do mundo, está aí para comprovar.

Considerando o ano em que as questões raciais estiveram no centro das discussões, a Globo optou por trazer negros mais ligados a uma representação estética sustentada pelo discurso de combate às opressões, portanto, mais ativistas do que militantes.

Talvez a familiaridade com questões sociais tenha desviado minha atenção para algo sensível de ordem aparentemente subjetiva. A abordagem de temas imprescindíveis, mesmo que de forma contraditória, me leva recorrentemente para outro produto da “alienante” indústria cultural. 

Em um dos episódios da série americana “She’s Gotta Have It” (Ela Quer Tudo), dirigida por Spike Lee, a partir do enredo do seu primeiro filme, de mesmo nome, a personagem principal, a artista plástica negra, Nola Darling, enfrenta problemas de várias ordens, profissionais, amorosas e, inevitavelmente, sociais, quando uma amiga, também negra, a sugere procurar auxílio terapêutico. Resistente, Nola só se convence quando a garantia é de que a psicóloga em questão se trata de uma mulher negra, assim como ela. 

A lembrança me vinha a cada cena de abuso, exclusão, punitivismo e incompreensão transmitidas pelo programa e, lamentavelmente, não se trata de uma ficção. Talvez seria mais simples se a questão da saúde mental de populações oprimidas carecesse apenas de identificação com um terapeuta. 

Arrogância, toxicidade, preconceito e problemas relacionados à saúde mental não são exclusividade de nenhum ser humano. Mas, podem ser agravados por problemas sociais, cuja população negra no Brasil vive de forma mais acentuada. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 54% da populaçãoé formada por negros.  

São eles que compõem as camadas mais pobres, afetadas por falta de moradia, dificuldade de acesso à educação, à cultura e um contexto de violência agravado pelo racismo estrutural. Fatores sociais podem funcionar como acentuadores e causadores de problemas psicológicos, como a depressão.

Os maiores índices de suicídio, por exemplo, têm raça e idade. De acordo com dados de pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde, em 2019, jovens negros, entre 10 e 29 anos estão entre os que mais tiram a própria vida no Brasil, nos últimos quatro anos. Jovens como Lucas, o mais atacado pelos membros da casa, se encaixam neste perfil.

É necessário cuidado ao associar temas como saúde mental e desigualdade sociais. Não podemos resumir o debate a uma questão meramente arrogante e impositiva. Como se terapia funcionasse como cantinho da disciplina. Como bem lembra a série americana, a própria psicologia procura mudar para abarcar os problemas que batem a porta, como o racismo. 

Apesar do clima pesado, o BBB permite tal reflexão. É interessante fazermos uma breve revisão de como o debate racial tem sido tratado ao longo de algumas edições do programa para entender em que pé estamos.

A edição mais negra da história surpreende com posturas intolerantes, abusivas e angústias se expressando das mais diversas formas. Talvez não seja a melhor versão de representação de negritude brasileira, e talvez de ninguém, mas é necessário pensar que se analisamos as pessoas por uma ótica rígida, em que a cobrança por coerência parece ser duplamente maior,  estejamos mais uma vez desumanizando quem já passa por isso há séculos.

Lembrando que estamos refletindo sobre um programa que em 2018 premiou Paula von Sperling Viana. A participante, além de ser indiciada por intolerância religiosa durante o programa, ficou marcada por proferir frases de cunho racista em tom considerado “espontâneo”. Além de levar R$ 1,5 milhão, teve suas atitudes relativizadas na final pelo apresentador do programa.

Parece que a narrativa da superação ainda continua sendo a preferida do público para premiar negros. No ano passado, a médica Thelma Assis venceu o programa com o histórico nesta linha. Na mesma edição, o ator Babu Santana conquistou um público fiel, mas dentro da casa foi altamente criticado pela postura considerada “ranzinza”. Ele acabou eliminado. Coincidentemente, ele revelou que entrou na casa durante um processo depressivo, já que estava há muito tempo sem oportunidade de trabalho.

Isto nos mostra que não dá para colocar negros em caixinhas de representação. Há diversidade, particularidades a serem consideradas. Ainda que esta não seja a versão preferida do público, tampouco queremos que negros voltem ser colocados num local de invisibilidade e/ou de ridicularização, como a de Solange Cris Couto, a Sol, do longínquo BBB4.

É pesado ver dores e lutas tornado-se entretenimento. A exposição pode significar a infeliz oportunidade de estigmatizar ainda mais o combate às opressões frente a uma possibilidade potente de amplificação deste discurso. Sendo positivo, o espaço revelou a necessidade autocrítica, enquanto geração teoricamente consciente das desigualdades, e considerar a importância de uma reflexão coletiva, e não individual, sobre estas pautas. E falo aqui de uma coletividade que perpassa pelo reconhecimento das diferenças de classe, raça e gênero. Afinal, a questão aqui é ainda a de se manter vivo para continuar lutando.

Tainá Jara

Jornalista e pesquisadora em comunicação. Interessada em mídia, estudos de gênero e direitos humanos. Na horas vagas vai de cinema, música e, sim, política.

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1 Comment

  • Texto impecável e super bem escrito! Parabéns!

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