A psicologia enquanto um discurso ético-político

A força da psicologia não pode ser utilizada enquanto instrumento de manutenção do status quo. Que seja uma ferramenta para superação das estruturas de opressão e, assim, para libertação de todos indivíduos

Por Carolina de Mendonça 
Colaborou Leopoldo Neto 

O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.

(Código de Ética Profissional do Psicólogo)

No dia 27 de agosto de 1962, o então presidente brasileiro João Goulart sancionou a Lei 4.119, que previa a formação e atuação trabalhista do psicologista – nome dado ao profissional de psicologia na época. Contudo, apenas em janeiro de 1964, com o decreto 53.464, o ofício foi regulamentado e somente em 1971 foi criado o Conselho Federal de Psicologia (CFP) – órgão que regulariza e fiscaliza a situação desses especialistas no Brasil.

Formada em meio a uma democracia frágil, a psicologia só se regulamenta enquanto prática profissional nas vésperas do golpe civil-militar – que se perdurou em uma ditadura empresarial-militar de 21 anos. A psicologia, enquanto ciência e profissão, se inicia no Brasil servindo à lógica social e econômica vigente; afinal, a ocupação é transplantada com objetivo de auxiliar na modernização . Em tal âmbito, o país terceiro-mundista emergente passou a utilizar testes psicológicos para separar adultos (em organizações) e crianças (em escolas) entre as categorias de aptos e inaptos, o que gerou segregação através da ciência recém chegada.

Logo ao chegar aqui, a psicologia também se operacionaliza nos manicômios –enquanto no continente europeu, cresciam os debates sobre abolição manicomial. Em todas regiões há manicômios, em todos os manicômios há denúncias de maus-tratos de funcionários. E a psicologia está lá, validando o discurso de poder de um suposto saber da psiquê daqueles internos. Felizmente, o movimento para fechamento dessas instituições chega no território nacional. A psicologia se mostra ativa na luta antimanicomial; e passa a integrar o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), por uma reforma psiquiatria – antipsiquiatria tradicional.

Se ao chegar no território nacional, imerso em uma ditadura, a psicologia reforça opressões, poucos anos depois os psicólogos lutavam por uma democracia que possibilitasse direitos de cidadania a todos habitantes brasileiros. Apoia criação de estatutos voltados às minorias, reforma na saúde mental e criação do Sistema Único de Saúde – o essencial SUS. A psicologia nunca é neutra. Qualquer pressuposto que afirme uma neutralidade da ciência e da prática psicológica, demonstra um desconhecimento da área e um claro reforço à lógica vigente – lógica esta que é cruel, genocida e aniquila a subjetividade do outro.

A psicologia, enquanto ciência e profissão, pode tanto ter um discurso de violência, ao reforçar o status quo que reduz o sujeito, como pode ser uma importante ferramenta de transformação social. Dependerá da forma que o profissional utiliza de seus conhecimentos – ou desconhecimentos– em sua prática. O discurso psicológico sempre é político, se não for associado a uma ética clara, que se baseei na Declaração Universal dos Direitos Humanos, acaba por desrespeitar a atividade profissional.

A partir dos anos 1990, a psicologia lida com uma nova questão ético-política: o avanço dos psicotrópicos. A psiquiatria retoma com força, que só aumenta desde então, baseada em um discurso que limita o sofrimento do sujeito e o reduz a aspectos químicos, resolvíveis com remédios. O neoliberalismo se apodera desse discurso lucrativo e reducionista. O sistema de ideias vigente na psiquiatria cria uma forma de manicomialização – institucionalizando o agente por remédios.

A simplificação da dor psíquica reduz o sujeito e produz uma necessidade de consumo. A medicalização não é de todo ruim, porém ao ser utilizada como forma de manter o paciente passivo a sua dor, acaba por destituir o seu potencial de transformar o contexto vivido, mas com suficiente força de trabalho para permanecer sendo explorado. A psicologia se mostra pouco crítica ao poder psiquiátrico, reforçando a lógica perversa que adoece o indivíduo.

A psicologia brasileira tem uma grande história de clínica individual a ser superada. Não enquanto uma prática, mas enquanto uma lógica que individualiza os problemas do atendido a si mesmo – desajustes na força de vontade ou na forma de existir. A prática individual é uma maneira de transformação, contudo, ao alienar ao sujeito para além das estruturas que os cercam, os psicólogos tendem reforçar racismo, misoginia, LGBTfobia entre outras problemáticas. E não fortalecer o indivíduo a superar os discursos de opressão.

A psicologia também reduz o sujeito na assistência social. Apesar de ser uma das áreas que mais emprega esses profissionais no país, a formação acadêmica é deficitária nesse aspecto. Problemas estruturais, como a negação de direitos e de violências são colocados a parte da psique e não como produtores ativos de adoecimento psicológico.

Por causa da pandemia de Covid-19, o Brasil vive uma crise – sanitária, econômica, política, social e humanitária. Por seu turno, a crise sanitária trouxe à tona problemas sociais profundos causados pela lógica do neoliberalismo em um país que tem fome e morre por opressões sistemáticas. O discurso da psicologia se faz presente nesse contexto, porém sua força se dá ao reforçar o status quo.

Para o sistema neoliberal, não há tempo para se elaborar a dor, mesmo com tantas dores potencializadas ou trazidas pelo espaço social. Afinal, O Brasil não pode parar. Os psicólogos e as psicólogas, no início da quarentena, se propuseram a sugerir para muitos trabalhadores formas de melhorar a produtividade no novo contexto. Propostas estas que ignoram problemáticas que afetam a saúde do sujeito e os reduzem a meras máquinas destituídas de subjetividade.

O isolamento social foi catalisador para o aumento de violência doméstica. A negligência com indígenas aldeados causa um genocídio desta população. O isolamento entre encarcerados no país foi intensificado, não há visitas e se propõe julgamentos por vídeo-chamada. Nestes locais se prolifera o vírus, as torturas e se piora a saúde psíquica de um grupo abandonado. Crianças negras são assassinadas dentro de casa pela polícia militar. É ateado fogo em aldeias, quilombos, reservas ambientais e qualquer espaço de resistência ao perverso agronegócio.

A “saúde mental” é reduzida a um discurso de classe média para que se reabram espaços de lazer – shoppings, bares, cinemas. O lazer e arte são, sem dúvida, essenciais para saúde. Contudo, tal reabertura neste momento aumenta a transmissão do vírus entre os usuários de transporte coletivos – principalmente os profissionais que servirão aos que buscam lazer.

A “saúde” de uma classe vale mais do que a vida de outra classe, isto mostra o discurso político nefasto que a psicologia, quando acrítica, reforça. A força da psicologia não pode ser utilizada mais enquanto ferramenta de manutenção do status quo. Como previsto no Código de Ética Profissional, é importante que seja avaliado todo um contexto complexo no qual se insere o sujeito. Que a psicologia seja, então, um instrumento para superação de uma estrutura opressora e, assim, libertação de todos indivíduos.

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema

Guilherme Correia

Repórter e Subdiretor de arte

Estudante de jornalismo. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

leopoldo neto

Editor-chefe

Jornalista e mestrando em Comunicação. Possui interesse em jornalismo político, científico e cultural. Busca explorar o formato podcast.

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