Arte: Norberto Liberator

Será barbárie?

Emergência climática aumenta urgência de superação do modo de produção capitalista

Por Vitória Regina

No primeiro semestre deste ano, a Organização Meteorológica Internacional previu que o mundo estaria à beira de ultrapassar, em cinco anos, o crítico e grave marco de 1,5°C de aumento de temperatura comparado aos níveis pré-industriais. O alarmante anúncio reforça a urgência de ações radicais e decisivas para conter as mudanças climáticas e suas consequências sem precedentes. Além disso, o relatório também frisa a importância dos esforços globais para atingir as metas deliberadas no Acordo de Paris. Entre as ações citadas no relatório, destaca-se a necessidade da redução drástica das emissões de carbono e a elaboração de medidas de adaptação às mudanças climáticas.

É de suma importância atribuir o real sentido do aumento da temperatura global e entender que estamos prestes a um ponto sem retorno. Esse ponto sem retorno é a barbárie. O avanço das mudanças climáticas impõem incêndios descontrolados, inundações devastadoras, secas extremas, escassez de alimentos, carências energéticas e ondas de calor cada vez mais insuportáveis. 

Recentemente os efeitos do El Niño e do aquecimento global foram sentidos de forma crítica no Amazonas. Em reportagem do portal Brasil de Fato, o jornalista Murilo Pajolla destacou que a forte estiagem baixou o  nível dos rios e representa uma ameaça à pesca e à agricultura na maior bacia hidrográfica do planeta. O governo do Amazonas decretou estado de emergência em 55 dos 66 municípios afetados. Estima-se que meio milhão de pessoas enfrentarão as consequências dessa situação, incluindo a dificuldade no acesso à educação para as crianças, além das escassez e aumento no preço dos alimentos.

No início de outubro, devido à severa estiagem na região amazônica, todas as operações da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, em Rondônia, foram temporariamente paralisadas. De acordo com a Santo Antônio Energia (SAE), a decisão foi tomada por uma questão de segurança. Isso porque o rio Madeira, que abastece a usina, apresenta níveis de vazão de 50% abaixo da média. A Usina Santo Antônio é uma das maiores hidrelétricas do Brasil e conta com uma capacidade de 3.568 megawatts (MW) de potência. 

Olhando para o futuro e considerando a elevação do nível do mar, um cenário em que a temperatura global aumenta 1,5°C até o ano de 2100 traz consigo a gravidade de expor cerca de 70 milhões de pessoas a inundações catastróficas. E aproximadamente 80 milhões de pessoas tentarão sobreviver sob o aumento de 2°C na temperatura. 

Na última semana de inverno deste ano, ocorreu uma onda de calor significativa que afetou nove estados brasileiros. As regiões colocadas em alerta tiveram que lidar com temperaturas extremamente altas, com algumas cidades alcançando a preocupante marca de 40°C por vários dias. Destacam-se, entre os estados em situação crítica, aqueles que compõem a região Centro-Oeste. Ao longo de todo o território de Mato Grosso do Sul, foram registradas temperaturas elevadas, indicando uma relação direta entre as mudanças climáticas e o setor do agronegócio.

Diante do cenário no qual o aumento de temperatura seja de 2°C, as projeções sinalizam que cerca de 18% das espécies de insetos, 16% das espécies vegetais e 8% dos vertebrados entrarão em extinção. 

Em um artigo publicado em 2019, Kelly Levin elenca os diversos impactos das mudanças climáticas nos ecossistemas. Um aumento de 2°C na temperatura global provocará alterações ou transformações em aproximadamente 13% da superfície terrestre, inclusive com a possibilidade de transformar tundras em florestas. Entretanto, o risco pode ser reduzido se o aumento da temperatura se limitar a 1,5°C e a superfície afetada seria em torno de 4%. Além disso, outra probabilidade que preocupa é o derretimento do pergelissolo, que armazena significativa quantidade de carbono. O cenário de aquecimento de 2°C pode ter como consequência o derretimento de até 47% do permafrost do Ártico até 2100. Se o aumento for de 1,5°C, o cenário também não é animador: a texa de derretimento estaria entre 21% e 37%.

Em relação aos oceanos, a previsão é de redução de 70% a 90% dos recifes de coral com uma temperatura a 1,5°C. Caso a temperatura chegue a 2°C, a redução atingirá cerca de 99%. Ademais, se houver o aumento de 1,5°C na temperatura, a captura da pesca global diminuirá em 1,5 milhão de toneladas; sob o aumento de 2°C, o número se elevaria para 3 milhões de toneladas. 

Arte: Norberto Liberator

As discussões relacionadas às mudanças climáticas estão entre as mais urgentes de nosso tempo. Diante desse cenário, reconhecendo a gravidade de nossos dias, é difícil não se recordar da célebre afirmação de Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie. Isso nos lembra que apenas uma abordagem radical, como a do socialismo, pode evitar o pior cenário. Somente uma transformação profunda nos sistemas de produção e reprodução da vida garantirá um futuro viável para as próximas gerações.

Se décadas marcadas por estudos científicos e previsões preocupantes sobre o futuro do planeta não foram suficientes, o que será necessário para que haja mobilizações mais radicais que intensifiquem os esforços na luta contra as mudanças climáticas? É válido destacar que as mudanças climáticas não se limitam apenas ao aumento das temperaturas globais; seus impactos se estenderão a todos os aspectos da vida cotidiana, afetando a qualidade de vida, a disponibilidade de alimentos e até mesmo os momentos de lazer, como aproveitar uma simples cerveja gelada. Isso porque pode faltar cerveja devido às mudanças climáticas, uma vez que a fabricação dessa bebida alcoólica depende de ingredientes como cevada e lúpulo, que podem ser impactados pelo aumento das temperaturas. Como destaca o G1, as mudanças climáticas podem transformar café e laranja em produtos de luxo.

Não existe concordância entre o metabolismo do sistema capitalista e o metabolismo da natureza. Não há harmonia quando um sistema de acumulação infinita, como o capitalismo, dita o modo de produção e reprodução em um contexto de recursos finitos. Considerando outra frase célebre, pensemos a colocação feita por Marx e Engels em A Ideologia Alemã: as ideias dominantes são as ideias da classe dominante. Ou seja, o nosso pensamento e os nossos desejos não surgem do nada; a cultura nos molda e nos ensina a pensar de determinada maneira em detrimentos de outras. Neste sentido, essa cultura e as ideias dominantes em uma sociedade impactam a nossa percepção do que é possível construir e do que é utópico. 

Quando analisamos a produção cultural, encontramos uma série de exemplos que ilustram como somos condicionados a pensar. Relacionando essa análise à famosa frase de Mark Fisher, de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, temos inúmeros filmes, séries e livros que exploram o tema do fim do mundo e cenários pós-apocalípticos. Essas obras vão desde “2012” e “Mad Max” até séries como “The Walking Dead” ou jogos – e agora série – como “The Last of Us”. Essas obras apresentam a destruição da civilização e do planeta tal como o conhecemos e também capturam a imaginação do público. E há uma narrativa de que a destruição é a única possibilidade.

Francis Fukuyama, após o fim da União Soviética, defendeu a ideia de que o capitalismo seria o fim da história. Embora a afirmação não estivesse diretamente relacionada às mudanças climáticas, talvez não seja tão absurdo apropriar-se e reinterpretar essa frase. O capitalismo está, de fato, pavimentando o caminho para o fim da história. Sob o capitalismo, veremos o coroamento do fim do planeta e de todos nós. Que possamos imaginar e construir um outro futuro no planeta em que habitamos.

Vitória Regina

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

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