Na ausência de Mojica

Falecido em fevereiro de 2020, o cineasta José Mojica Marins deixou para o cinema brasileiro um legado que vai muito além do seu mais famoso personagem, o Zé do Caixão. Um ano depois, a trajetória desse mestre do cinema popular segue sendo única, entre seus altos e baixos

Por Igor Nolasco

Março de 2020 foi um dos meses mais emblemáticos da história brasileira recente. A chegada e a rápida proliferação da pandemia de COVID-19, que fez o país entrar em alerta por volta do meio do mês, deixou boa parte da população em estado de alerta. Um ano depois, o março de 2020 ainda não acabou. Com um governo federal que pareceu ativamente lutar para piorar os efeitos da pandemia e uma vacinação ainda dando seus primeiros passos (e totalmente dependente do governo federal), o Brasil parece estar há um ano preso naquele fatídico mês de março.

De tal maneira, os meses de janeiro e fevereiro de 2020 parecem pertencentes a uma outra realidade que não a nossa. 2020 já está estigmatizado, em nossas memórias, como um ano perdido (e 2021 está tristemente se mostrando uma extensão do ano anterior). Os dois meses que precederam a eclosão da pandemia em território brasileiro parecem hoje, olhando em retrospecto, estarem há anos, décadas de distância.

São memórias longínquas de um tempo em que máscaras eram não mais do que o traje exigido pelo carnaval, em que se compartilhava o ar com outras pessoas em ambientes fechados sem temores e em que se olhava para os outros sem uma perpétua desconfiança. Tempos que, ao que parece, demorarão a voltar. Talvez nunca voltem do jeito que eram.

Nessa realidade que parece tão distante, mas em verdade não é tanto, um dos personagens mais emblemáticos do cinema e da televisão brasileiros saiu de cena. Foi em fevereiro de 2020 que faleceu o ator e cineasta José Mojica Marins, conhecido nacionalmente por ser criador e intérprete do Zé do Caixão; figura icônica, munida de capa e cartola pretos em meio ao calor dos trópicos e de longuíssimas unhas, sua marca registrada – inicialmente postiças, mas depois crescidas de fato pelo próprio Mojica.

Criado para o filme “À Meia Noite Levarei Sua Alma”, de 1964, o personagem e o longa fizeram tamanho sucesso que garantiram uma continuação pouco depois (“Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver”, em 1967). Zé do Caixão passou a ser presença assídua em vários dos filmes que Mojica gravou ao longo das décadas seguintes, culminando, em 2007, na realização de um sonho: fazer chegar às telas de cinema a terceira parte da trilogia principal do personagem.

“Encarnação do Demônio” fechou a história originada por “À Meia Noite Levarei Sua Alma” e “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” em grande estilo, e acabou sendo o último longa-metragem dirigido pelo cineasta, que posteriormente ainda filmou trabalhos de menor escopo, mas igual inventividade, como um segmento para a antologia “Fábulas Negras”, capitaneada pelo cineasta capixaba Rodrigo Aragão.

Em suas aparições públicas e idas à televisão, Mojica, performático, recorrentemente era visto caracterizado como Zé do Caixão, respondendo as perguntas a ele dirigidas completamente dentro do personagem. Dessa maneira, criador e criatura se misturaram aos olhos do público, ainda que a diferença entre os dois fosse clara para quem conhecesse o diretor em sua intimidade. Mojica, sob a roupagem do Zé do Caixão, foi apresentador de mais de um programa de televisão, frequentador assíduo de diversos outros e até mesmo mestre de cerimônias de telecatch. Mas foi, acima de tudo, um cineasta de primeira qualidade e primeira importância para o cinema brasileiro.

Anos antes da criação do Zé do Caixão, Mojica já estava revolucionando a cinematografia nacional a trazer às telas o que é por muitos considerado o primeiro filme brasileiro em Cinemascope (ou, no jargão mojicano, “gigantela”). As dimensões de quadro largas capturam a paisagem do faroeste encenado pelo diretor em “A Sina do Aventureiro”, de 1958. O longa fora rodado na esteira das incontáveis produções que sucederam o sucesso de “O Cangaceiro”, a partir de 1953, numa onda de bangue-bangues brasileiros que passariam a ser chamados de “nordesterns”.

Anos depois, a geração vanguardista do Cinema de Invenção, composta por nomes como Rogério Sganzerla e Julio Bressane, louvaria Mojica por seu trabalho em “A Sina do Aventureiro”, considerando-o um percussor de todas as experimentações em imagem e linguagem que estavam sendo encabeçadas pelos cineastas mais jovens. Olhavam Mojica como um mestre, um professor – o que pode ser visto em “Horror Palace Hotel”, média-metragem de Jairo Ferreira rodado nos bastidores do Festival de Brasília de 1978.

Visto por alguns como a retaguarda da vanguarda e por outros como o porta-estandarte de um cinema apelativo, filmes de monstro ou produções softcore recheadas de (semi)nudez, ninguém pode tirar de Mojica uma característica factual de seu trabalho: sempre buscou fazer um cinema irremediavelmente popular.

Leituras primárias podem reduzi-lo a “comercial”, como se o termo fosse propriamente dotado de uma característica pejorativa. Ora, fazer filmes para o povo deveria ser visto como um mérito. E a abordagem frontal, direta e por vezes inocente de um filme como “A Sina do Aventureiro” não faz com que ele deixe de ter grandes momentos imageticamente e seja, como um todo, mais interessante do que uma parcela considerável das produções “refinadas” que vem sendo entregues atualmente pelo “novíssimo cinema brasileiro”.

Se os filmes de Zé do Caixão (sobretudo os dois primeiros) já são mais arrojados em termos de linguagem, contendo um experimentalismo mais visível, ainda assim não perdem seu caráter popular. Não por acaso possuem narrativas fortes e bem demarcadas, com momentos que chegam a uma escala épica  – no segundo longa, a descida de Zé do Caixão ao inferno é a sequência de maior destaque, com uma ambientação trabalhada em riqueza de detalhes surpreendente e filmada em Technicolor. Projetos posteriores sem o vilão icônico, como “Finis Hominis”, seguiram por caminhos mais herméticos, sempre dotados de originalidade, frescor na abordagem e sempre com algo a dizer.

Filho de uma família de classe média baixa que residia no bairro operário do Brás, em São Paulo, Mojica teve pouca escolaridade e nenhum estudo formal acerca do cinema. Era filho, no entanto, do proprietário de uma sala de cinema de rua. Apaixonado desde pequeno pelo fazer cinematográfico, este foi, para ele, um rumo natural. O filmete mais antigo (e ainda assim, segundo o cineasta, não o primeiro) sobrevivente dos que realizara durante sua infância é “Reino Sangrento”, curta primário, sem sonorização, rodado em 1948, quando Mojica tinha não mais que doze anos de idade.

Um de seus longas mais emblemáticos, tanto em notoriedade quanto por apresentar uma linguagem disruptiva e temáticas controversas, é “O Despertar da Besta” (posteriormente renomeado “Ritual dos Sádicios”), de 1970. Vetado pela censura por, dentre outras coisas, conter nudez excessiva e falar abertamente sobre o uso de drogas ilícitas em meio aos anos de chumbo do regime militar, o filme só foi liberado ao público muitos anos depois, e jamais foi exibido comercialmente.

É hoje considerado uma das grandes obras do diretor dentre os que se debruçam com entusiasmo sobre seus trabalhos – e a partir da década de 1990, estes ganharam um cult following internacional impulsionado pelo lançamento de biografias e documentários sobre o cineasta no Brasil e no exterior.

Mojica sempre rodou seus filmes com orçamentos modestíssimos, em geral tirados do próprio bolso ou de sua produtora. A exceção está em seu último longa – “Encarnação do Demônio” possuiu orçamento de R$ 1 milhão captado através de leis de incentivo, já na era da ANCINE: o filme mais caro capitaneado pelo cineasta. Operava verdadeiros milagres em seu estúdio particular no Brás, onde o “À Meia Noite Levarei Sua Alma” foi rodado quase integralmente, incluindo as sequências que mostram Zé do Caixão correndo em meio a um cemitério. Administrava diminutos elencos e equipes técnicas enxutas compostas por parceiros fiéis. Fazia cinema de guerrilha muito antes dessa expressão se popularizar no Brasil.

A partir da censura de “O Despertar da Besta”, sua situação enquanto cineasta começou a se dificultar. Desde sempre fazendo produções de baixo orçamento, dependia do retorno nas bilheterias para conseguir se sustentar e por em prática o projeto seguinte.

Quando lhe era possível, em respiros, ainda conseguia entregar filmes feitos com paixão e esmero, que não deixavam muito a dever comparados aos clássicos do Zé do Caixão (“Inferno Carnal”, de 1977, talvez seja o melhor exemplo), mas a necessidade o inclinava a fazer filmes cada vez mais apelativos (como “Perversão”, de 1979) que angariavam cada vez menos espectadores. Os tempos difíceis desaguaram em 1985, quando precisou partir para os filmes de pornografia explícita: em “24 Horas de Sexo Explícito”, Mojica registrou o que é considerada a primeira sequência de zoofilia do Brasil.

As coisas nunca foram fáceis para José Mojica Marins. Como questionariam os narradores de “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla, seria o diretor “um gênio ou uma besta?” Vanguardista ou cineasta barato? Revolucionário ou pornográfico? Mojica transcende rótulos. “Mestre do Terror”? Também, mas não só isso. O bojo de sua filmografia, além dos diversos projetos de horror, compreende também dramas, faroestes, histórias de aventura, um mockumentary (falso documentário) sobre ele mesmo, pornochanchadas e as infames fitas de pornografia.

Seu falecimento em fevereiro de 2020 pôs o cinema brasileiro de luto e deixou para trás uma obra única, com seus altos e baixos, com obras-primas, maus percalços e todos os tons de cinza entre um e outro extremo. E esse ano na ausência de Mojica foi, por diversos motivos, um dos mais difíceis das últimas décadas. Assistir aos clássicos do diretor não deixa de ser uma forma de momentaneamente escapar de uma realidade tão dura que não encontra competição nem nas perversidades que saem da cartola de Zé do Caixão.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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