Questão de raça: o negro no cinema brasileiro

Por Igor Nolasco
Colaboraram Leopoldo Neto e Norberto Liberatôr

Zózimo Bulbul (1937–2013), ator e cineasta, foi (e segue sendo) um dos mais celebrados avatares da representatividade negra no cinema brasileiro. Além da realização de obras magistrais à frente ou por trás das câmeras, Bulbul é responsável pela fundação do Centro AfroCarioca de Cinema, que organiza cursos, palestras e mostras audiovisuais voltadas para um cinema que discuta ativamente a questão racial brasileira e internacional.

Enquanto diretor, seus principais trabalho são o curta “Alma no Olho” (1973) – pensado, filmado e montado de maneira experimental e trabalhado em cima da música e da obra de John Coltrane – e o longa “Abolição” (1988), documentário com quase três horas de duração que escova a história do Brasil a contrapelo, discutindo-a a partir da perspectiva racial e tendo como pretexto para tal a data dos 100 anos da abolição oficial da escravatura no país.

Dentre os papéis de maior destaque em sua filmografia como ator está o de protagonista em “Compasso de Espera” (1973), de Antunes Filho, um dos mais célebres diretores do teatro brasileiro. O longa estrelado por Bulbul foi único filme que realizou. Tendo trabalhado majoritariamente com teatro ao longo de sua carreira, a contribuição de Antunes Filho, um cineasta branco, para o cinema brasileiro é um filme completamente focado na discussão sobre raça nos estratos sociais mais abastados do país. E é uma obra recorrentemente deixada de fora das retrospectivas oficiais de nossa cinematografia.

Cineastas de um só trabalho já foram consagrados no cânone fílmico nacional, sendo o exemplo mais óbvio disso a elevação de Mário Peixoto, realizador do lendário “Limite” (1931), ao status de mito. Status este, aliás, que lhe foi conferido em vida. Para todos os efeitos, Antunes Filho não teve a mesma sorte, ao menos no cinema. Seu longa é pouco comentado, pouco discutido e raramente abordado mesmo dentro da comunidade acadêmica, o que pode alimentar reflexões, visto que toca em assuntos que até então eram raros em nossa cinematografia, e de forma praticamente inexistente.

Até os anos de 1960, a questão do negro no cinema brasileiro estava dando seus primeiros passos. Grande Otelo já havia sido uma grande estrela nas chanchadas, contudo, não raros eram os papéis que o reduziam a estereótipos. Um dos exemplos mais gritantes pode ser visto em “Onde Estás, Felicidade?” (1939), dirigido por Mesquitinha. Em sua biografia de Grande Otelo, Sérgio Cabral colhe o depoimento de Alice Gonzaga (filha de Adhemar Gonzaga, que por sua vez era fundador da Cinédia – estúdio que realizou o filme em questão):

 

[No filme,] ele é um moleque espantado, preguiçoso, que vai pedir uma terrina emprestada à [personagem de] Luísa Nazaré, que acaba de arrumar um prato de rabanadas ‘lindas e doiradas como o sol nascente’. Quando esta se vira, Otelo não resiste à gula e rouba as rabanadas, colocando-as inteiras na boca. [A personagem de] Nilza Magrassi, vendo Grande Otelo com a boca cheia, pergunta se ele está com dor de dente. […]

 

Na sequência, Otelo é visto como um moleque infantilizado, a carapinha arrepiada, trajando fraldas, como um bebê gigante – e se comportando como tal. Tony Tornado, ator negro como Otelo, mencionou em algumas ocasiões ter recebido do colega o conselho de que, para os profissionais retintos na dramaturgia, “não tem papel pequeno” – antes de alcançar o estrelato com “Moleque Tião” (1943), Otelo só aparecia no cinema em papéis considerados pequenos.

Em seu período áureo na chanchada, o ícone do humor brasileiro só estrelava filmes se formasse uma dupla com outro ator (frequentemente Oscarito, ocasionalmente Ronald Golias ou Ankito), ou era jogado para escanteio como coadjuvante. Depois disso, suas participações no cinema se tornaram esporádicas – apenas cineastas como Rogério Sganzerla e Julio Bressane souberam aproveitar sua genialidade em filmes posteriores – e em poucas oportunidades Otelo pode deixar a comédia de lado e explorar seus dons dramáticos, as mais notórias sendo o clássico “Rio, Zona Norte” (1957) e o tristemente pouco comentado “Também Somos Irmãos” (1949).

Ademais, outros atores com enorme aptidão dramática, como Ruth de Souza, eram relegados a papéis de menor expressão – Em “Sinhá Moça” (1953), um dos mais conhecidos longas da efêmera produtora Vera Cruz, Souza é relegada ao papel de uma escrava, em uma trama que deixa a escravidão de pano de fundo para dar protagonismo às desventuras amorosas e sociais de personagens brancos – que, no fim das contas, salvam o dia, de forma benevolente, para os escravos.

Em 1963, 24 anos após Grande Otelo aparecer de fraldas com a boca entupida de rabanadas em “Onde Estás, Felicidade?”, Carlos Diegues lança “Ganga Zumba”, cinebiografia do guerreiro que fundou o Quilombo dos Palmares. É considerado um dos primeiros filmes brasileiros com um elenco majoritariamente negro, e Diegues voltaria à questão racial em “Xica da Silva” (1976) e “Quilombo (1984). Protagonizado por um elenco principal completamente negro, algo revolucionário à época no cinema ocidental como um todo, o longa contava com a presença de atores que marcariam a cinematografia do país, como Antônio Pitanga, Waldir Onofre e Zózimo Bulbul.

Em 1969, o mesmo Pitanga interpretaria um playboy casanova arrogante no clássico do Cinema de Invenção “A Mulher de Todos”, de Rogério Sganzerla, sendo esta uma das primeiras representações no nosso cinema do homem negro enquanto uma pessoa de status social elevado no meio urbano – algo que viria a ser tema de algumas outras produções nos anos seguintes.

Uma delas é outro longa que tornou-se praticamente esquecido na cinematografia nacional. Trata-se de um filme curioso de Carlos Alberto Prates Correia, chamado “Crioulo Doido” (1971) como no samba. Apesar do título que hoje soa anacrônico, trata-se de uma produção surpreendentemente progressista, que conta a história de um alfaiate (interpretado brilhantemente por Jorge Coutinho) em uma pequena comunidade interiorana em Minas Gerais que começa a ascender socialmente e logo torna-se objeto de interesse de pessoas brancas que até então o tratavam com desprezo e racismo, o que inclui uma moça que o seduz e desposa cuja primeira reação a uma investida do alfaiate foi chamá-lo de “urubu”.

Para além de seu comentário social sobre o racismo e a posição social do homem negro, o longa de Prates Correia também pincela críticas sobre a ditadura militar (a história do longa é ambientada em 1964 – ano do golpe), o que torna o filme de substância e coragem notórios, apesar de ser de uma simplicidade narrativa.

Esta breve retrospectiva da trajetória do negro no cinema brasileiro não foi esboçada em vão. Exatos dez anos depois de “Ganga Zumba, o mesmo Zózimo Bulbul que integra seu elenco estaria em “Compasso de Espera. E seu personagem é muito diferente de todos mencionados até aqui no presente texto – e no cinema brasileiro que o precedera, como um todo. Não era um estereótipo como os que Grande Otelo foi fadado a interpretar durante quase toda a sua carreira. Não era um escravo ou ex-escravo. Não era um rebelde que visava romper com a tradição de sua comunidade, como Firmino, protagonista do primeiro longa de Glauber Rocha, “Barravento” (1962). Nem mesmo era habitante das partes mais pobres da cidade, como os meninos que vendem amendoim em “Rio, 40 Graus” (1955). No máximo, seria possível aproximá-lo do personagem que Pitanga interpreta de forma caricatural em “A Mulher de Todos”, ou ao alfaiate de Jorge Coutinho em “Crioulo Doido”. “Compasso de Espera”, na verdade, de certa forma aborda de maneira mais desenvolvida e ampliada alguns temas já anteriormente presentes em “Crioulo Doido”.

Bulbul encarna Jorge, um intelectual negro, de classe média; uma mente brilhante que frequenta círculos sociais requintados, mas, ainda assim, não escapa dos preconceitos diários de uma sociedade racista. O enredo da produção se deslancha em vários desdobramentos, porém possui uma linha condutora clara: o embate de Jorge com o racismo cotidiano.

A primeira sequência retrata Jorge relaxando numa praia, quando subitamente é abordado por dois jovens, filhos de sua chefe (branca) Ema. Eles o saúdam e o protagonista retribui ao cumprimento, iniciando uma conversa, quando abruptamente os jovens educadamente solicitam que Jorge se retire dali, pois seria mal visto que eles estivessem na praia junto a um homem negro.

Este é apenas o choque inicial. Daí para frente, situações igualmente vexatórias ou ainda piores vão se sucedendo, até o ponto em que, de namoro com uma mulher branca, Jorge é impedido de alugar um quarto num motel, porque não é bem visto que casais inter-raciais não unidos por um laço matrimonial entrem juntos no mesmo quarto. O relacionamento inter-racial; aliás, é um dos muitos pontos nos quais o filme toca de maneira propositalmente incômoda. Depois da sequência onde os personagens são barrados no motel, aliás, as coisas pioram. Para dificultar ainda mais as coisas, Jorge possui uma relação dúbia com sua chefe, que o ostenta quase como um troféu, um objeto, e passa a tratá-lo com desdém após ele começar um namoro – abrindo um debate sobre a objetificação do homem negro.

O longa segue guiando o espectador enquanto sua câmera circula, com Jorge, pelos círculos sociais elitizados que são frequentados majoritariamente por brancos. No lançamento do livro do protagonista, por exemplo, há um quórum quase cem por cento branco – à exceção, claro, do próprio autor. Quando Jorge posteriormente visita sua família, é recebido com despeito por sua irmã, que o acusa de ter se afastado do seio familiar após ter enriquecido, enquanto seus parentes continuam na pobreza. Irmã essa que, muito perspicaz, também levanta a questão de que nenhum convite ao lançamento do livro chegou ao lar materno. Os poucos círculos negros frequentados por Jorge são de um debate intelectual fervoroso, representado pelo personagem de Antônio Pitanga, de ideologia muito mais radical, análoga à de Malcolm X (papel semelhante ao que ele desempenha durante sua breve, porém marcante, aparição em “Jardim de Guerra” [1968]), em oposição ao pensamento mais liberal e conciliador do próprio Jorge.

“Compasso de Espera” é pautado por diálogos claros e eloquentes, que discutem a negritude na sociedade brasileira de forma direta e indireta. Apesar disso, mais do que os diálogos, o que mais fala, no único filme de Antunes Filho, são as situações. A forma como o tecido social microcósmico urbano – que, ao mesmo tempo, é representativo de todo um universo cosmopolita pós-moderno – trata Jorge, a forma como ele é mastigado e cuspido pelo mundo que o rodeia, diz mais ao espectador do que qualquer coisa que poderia sair da boca dos personagens. E o longa faz isso fugir do que havia sido realizado até então não sendo, contudo, menos importante em demonstrar isso a partir do ponto de vista da população negra periférica. Coloca essa discussão sob o ponto de vista de um negro que ascendeu socialmente. Sustenta, assim, o argumento de que o racismo vai além das classes sociais, ainda que diretamente responsável pela distinção entre estas. Os que conseguem burlar o sistema propositalmente preconceituoso ainda assim não estão livres de serem vistos enquanto intrusos.

O racismo no Brasil é um problema secular. Começou no segundo em que os portugueses desembarcaram de suas caravelas pela primeira vez e perceberam que quem estava do outro lado da praia não era branco como eles. Desde então, a situação não melhorou. Tráfico de escravos, miscigenação através de atos forçados, socialização diferente para brancos e negros, preconceito enraizado na mente de um povo. Quinhentos anos depois, e qual é o resultado? Riqueza a alguns, pobreza aos demais. Genocídio do povo negro promovido pelos governantes, majoritariamente brancos, por intermédio da violência policial que diariamente mancha de sangue retinto as primeiras páginas dos jornais. Tudo sistemático e estrutural.

“Compasso de Espera” é um pequeno lembrete: É entre os círculos mais esclarecidos da sociedade burguesa, os mais intelectualizados, os mais endinheirados, que o preconceito reside de forma mais fervorosa. E, para o homem negro, não adianta “ser um deles”. Não adianta possuir a mesma conta bancária, o mesmo carro, o mesmo terno que “eles”. “Eles” continuarão o enxergando como inferior, única e exclusivamente pela cor de sua pele. Pois mais que um preconceito social, é um preconceito racial que infiltra suas raízes profundas na mente do brasileiro. Acaba se tornando um bom fomento fílmico às discussões sobre raça no país, mesmo sendo tristemente esquecido talvez de forma intencional da “história oficial” de nosso cinema. Traz, não obstante, um dos mais ricos debates sobre raça tecidos com uma complexidade pouco usual em sua abordagem. Causaria reflexões interessantes se assistido e debatido nas escolas, nas faculdades, no país talvez “no mundo” seja ambicioso demais. No fim das contas, a mudança precisa começar de algum lugar. E que a figura de Zózimo Bulbul perdure enquanto um avatar para essa mudança.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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