O eterno carnaval das chanchadas

Popularmente conhecidas como chanchadas, comédias musicais dominaram a bilheteria do cinema brasileiro entre as décadas de 1930 e 1960. Esses filmes incorporavam elementos das grandes produções hollywoodianas, do teatro de revista e do carnaval carioca, e hoje são lidos como parte fundamental da história do cinema brasileiro

Por Igor Nolasco

Há uma certa tendência, entre o espectador brasileiro que não é familiar de maneira pormenorizada com a história do cinema de seu país, em considerá-lo, ao longo de toda a sua existência, qualitativamente inferior ao produto estrangeiro. Nossos filmes seriam feitos com menos esmero, realizados por cineastas menos aptos e menos interessantes ou esteticamente agradáveis ao espectador. A produção contemporânea, a partir dessa visão, seria resultado desse histórico, e composta majoritariamente por comédias que servem como veículos para celebridades da televisão – e, mais recentemente, da internet.

De uns dez em dez anos, ainda segundo tal perspectiva assumidamente alheia às atividades cinematográficas nacionais, surgiria um bom filme brasileiro. Longas como “Central do Brasil”, “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite” tornaram-se representantes exemplares dos “bons filmes brasileiros” para detentores dessa opinião, eventos raros que merecem ser exaltados por sua aptidão em conquistar o público.

Tal visão simplória acerca do cinema brasileiro não pode ser lida, de maneira rasa, como inerentemente reacionária. Uma parte significativa da esquerda liberal nada de braçadas em águas igualmente superficiais – ainda que não declare abertamente um desprezo pelo bojo da obra da cinematografia de seu país, tem por ela um enciclopédico desconhecimento. Admira Glauber Rocha por sua figura vanguardista, mesmo sem ter assistido aos seus filmes, e dentre o rol dos poucos longa-metragens brasileiros que assistiu e exalta, vê-se representada por “Bacurau” – que, para todos os efeitos, é um grande filme, ainda que tenha sido tristemente apropriado por essa supracitada parcela da esquerda enquanto o expoente mor de um cinema que tanto exaltam e pouco assistem.

Não se pode, no entanto, eximir o próprio cinema brasileiro de sua parcela de responsabilidade em tal afastamento por parte do público. Basta lembrar que hoje, a tendência entre os cineastas é produzir filmes para festivais, tanto dentro (Gramado, Brasília, Rio de Janeiro, Mostra de São Paulo, etc) quanto fora (Cannes, Berlin, Rotterdam, etc) do país. E nessa produção para festivais, infelizmente tornou-se padrão uma série de vícios e cacoetes, em forma, linguagem, narrativas e temáticas.

Para além de reféns de tais vícios e excessivamente taciturnos, esses filmes, feitos para exportação, não possuem penetração no mercado interno. Boa parte dos curtas e longas brasileiros feitos para o circuito de festivais, dos mais vazios aos mais revolucionários e estimulantes, não chegam ao espectador. Se as redes multiplex de shopping dificilmente passam mesmo os filmes brasileiros mais populares (e só o fazem, lembremos, por lei, através da obrigatoriedade da cota de tela para produções nacionais), raramente chegam sequer perto de pôr em cartaz produções mais herméticas.

A relação do espectador médio brasileiro com seu cinema nem sempre foi assim, mediada por uma distância que, para alguns, parece infinita em relação a Hollywood. Quando se volta em algumas décadas, vê-se que a situação era diferente, ainda que operasse em um cenário tristemente semelhante ao atual: a produção nacional precisava se enveredar nas poucas frestas deixadas pela presença robusta do cinema estrangeiro para conseguir chegar ao público através do circuito exibidor. Segundo o crítico e pesquisador Jean-Claude Bernardet:

“Não é possível entender qualquer coisa que seja ao cinema brasileiro, se não tiver sempre em mente a presença maciça e agressiva, no mercado interno, do filme estrangeiro […]. Essa presença não só limitou as possibilidades de afirmação de uma cinematografia nacional, como condicionou em grande parte suas formas de afirmação. De 1907, quando começaram a se estruturar no Rio de Janeiro e em São Paulo circuitos de exibição com salas fixas e programação regular, até 1910, por maior que fosse a avalancha de filmes importados, os historiadores notam, principalmente no Rio, um certo volume de produção. Alguns desses filmes obtêm grande sucesso de público (grifo nosso). À medida, porém, que o comércio cinematográfico internacional vai se estruturando e se fortalecendo, a ocupação do mercado interno torna-se cada vez mais violenta e diminuem as possibilidades de produção brasileira.”

(In: BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Brasileiro: propostas para uma história, p. 11-12. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979)

No intervalo entre as duas grandes guerras, a produção no cinema brasileiro começa a dar passos mais audaciosos. É nesse período em que surge o formato que viria a posteriormente se solidificar enquanto um dos mais bem sucedidos da história da cinematografia nacional, com diversos sucessos de público e um legado que perduraria por muitas décadas depois (e isso será elaborado posteriormente aqui): a chanchada.

O subgênero, que ganha esse nome não de todo destituído de um tom pejorativo (mas que acabou sendo reapropriado orgulhosamente por seus entusiastas), era composto inicialmente por filmes que incorporavam apresentações musicais e esquetes de comédia, tirando inspiração de uma gama variada de referenciais que incluem o samba, o carnaval, os números apresentados em cassinos – uma febre à época, sobretudo no Rio de Janeiro – as comédias estadunidenses e, por meio dessas, o teatro de variedades estilo vaudeville. Essas produções eram estreladas por músicos, compositores, vedetes, galãs e humoristas (oriundos do rádio ou mesmo do próprio cinema brasileiro de então).

Dentre os expoentes bem demarcados dessa “primeira fase” da chanchada, o exemplo principal é “Alô Alô, Carnaval” (1936), dirigido por Adhemar Gonzaga – cineasta e produtor, o homem por trás da Cinédia, um dos mais significativos estúdios de cinema brasileiros da época. O elenco do longa inclui celebridades de primeiro escalão da vida cultural carioca de então, como as vedetes Rosina e Elvira Pagã, os compositores e sambistas Almirante e Lamartine Babo, os cantores Francisco Alves e Mario Reis e a dupla de cantoras Aurora e Carmen Miranda – esta, ainda antes de embarcar para uma bem sucedida carreira no exterior. Ainda em “Alô Alô Carnaval”, desponta um iniciante Oscarito, que viria a se tornar um dos mais populares atores da chanchada e um ícone da mesma.

Esse padrão permanece extremamente popular até o final dos anos 1940, como em “Carnaval do Fogo” (1949), de Watson Macedo – que, como Adhemar Gonzaga, é um nome fundamental para o gênero (e para o cinema brasileiro, como um todo). A produção incorpora, ao tradicional modelo de números musicais e humor, uma narrativa policial folhetinesca. Em seu elenco, além da presença sempre constante de Oscarito, um alto escalão de habitués das chanchadas: Anselmo Duarte, galã-mor do subgênero, Eliana (não confundir com a apresentadora de televisão de mesmo apelido), tradicionalmente escalada para os papéis de mocinha exigidos por esse tipo de filme, José Lewgoy, que desde cedo faz parte do imaginário da cinematografia nacional como o perfil arquetípico do vilão caricato, Wilson Grey, que atravessou mais 40 anos nas telas de projeção do país interpretando personagens secundários, terciários e quaternários em toda a sorte de produção, além de, claro, Grande Otelo, mineiro que, ao lado de Oscarito, se tornaria um dos atores mais emblemáticos do período das chanchadas e cuja carreira posterior atravessaria ainda outras fases e escolas cinematográficas distintas.

Se no início dos anos 1950 esse modelo parece em crise, ele não tarda a encontrar maneiras de se renovar, e um dos nomes responsáveis por esse novo fôlego é o de José Carlos Burle. Desde sempre uma presença na produtora Atlântida que buscava maneiras de desenvolver longas que fugissem do modelo já conhecido da comédia musical (como “Também Somos Irmãos”, de 1949, drama sobre questões raciais estrelando Grande Otelo), é ele o responsável por “Carnaval Atlântida” (1952), filme que pode ser caracterizado como uma meta-chanchada que satiriza tudo o que está em seu escopo: a própria chanchada, o modo de produção do cinema brasileiro, suas aspirações em equiparar-se a Hollywood, o popular “jeitinho brasileiro” e tantas outras coisas.

Partindo de Cecil B. De Milho (um trocadilho inequívoco com Cecil B. De Mille, diretor de épicos norte-americanos como “Os Dez Mandamentos”), um cineasta de grandes aspirações que sonha em fazer uma filmagem brasileira da história de Cleópatra, o “Carnaval Atlântida” deságua em um emaranhado de situações. Dentre elas, subenredos que envolvem a contratação, para a escrita do roteiro, de um tímido porém mulherengo professor de história antiga (vivido, como é de se esperar, por Oscarito), uma dupla de trambiqueiros (Cyll Farney e Grande Otelo) que, de faxineiros do set de filmagem, decidem se passar por detetives particulares, um domador de pulgas amestradas (Wilson Grey) que acaba causando indiretamente uma confusão entre os demais e tantas outras subtramas que resultam com que o filme em produção, de uma adaptação da vida de Cleópatra, acabe se transformando numa chanchada carnavalesca.

Como era, desde sempre, hábito desse subgênero, o longa serviu também como veículo para apresentar ao público marchinhas de carnaval que ganhariam as ruas em fevereiro; aqui, Grande Otelo e Cyll Farney cantam, ébria e entusiasticamente, o que viria a ser uma das marchinhas mais populares de todos os tempos: “Cachaça Não É Água”.

Outro nome importante para esse momento autorreferencial, metalinguístico e paródico da chanchada é o de Carlos Manga, já presente em “Carnaval Atlântida” como co-diretor. É ele o responsável por títulos como “Matar ou Correr” (1954) – comédia que satiriza os clássicos westerns norte-americanos – “Nem Sansão Nem Dalila” (1955) – protagonizado por um babeiro que acidentalmente volta no tempo e cai no meio de uma das mais célebres histórias bíblicas – e “O Homem do Sputnik” (1959) – no qual, em plena guerra fria, um fazendeiro tenta enriquecer vendendo um suposto satélite russo que caiu em seu quintal. Todos, evidentemente, estrelando Oscarito.

Mesmo com essa renovação, o desgaste do formato era inevitável. Com o gradual sumiço da figura de Oscarito, Grande Otelo, famoso por ser sua dupla em uma série de produções, passou a figurar ao lado de outros atores que foram surgindo como novos protagonistas, como Ankito ou Ronald Golias.

Um olhar retroativo à história do cinema brasileiro percebe que o desaparecimento da chanchada enquanto “protagonista” da cinematografia nacional vai ocorrendo na medida em que surge um movimento radicalmente diferente de se fazer cinema: o Cinema Novo, que começa a fazer barulho ainda nos anos 1950 com “Rio, 40 Graus” e “Rio, Zona Norte” do pioneiro Nelson Pereira dos Santos e surge como movimento estruturado nos anos 1960, por meio de nomes como, além do supracitado Nelson, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Walter Lima Jr. e muitos outros. Se as chanchadas eram filmadas em estúdio, o Cinema Novo prezava por filmar em locações, sobretudo externas.

Se as chanchadas eram majoritariamente urbanas e até mesmo estéticamente assépticas, o Cinema Novo busca seus personagens no Brasil rural ou nos subúrbios. Se as chanchadas são comédias, o Cinema Novo é sisudo. Ainda que ambos tenham coexistido durante um período, a ascensão de um coincide – ou causa? – o declínio do outro. E o resto é história.

Ainda assim, as marcas deixadas pela chanchada no cinema brasileiro são duradouras. Desde sempre (e de antes da chanchada, diga-se de passagem), a cinematografia nacional prezou muito pela comédia. Mesmo após o sumiço da comédia musical cinematográfica que durante décadas permaneceu tão popular no país, o humor permaneceu como um dos grandes sucessos do cinema brasileiro ao longo de todos os períodos seguintes. As bilheterias multimilionárias de grupos como Os Trapalhões em diversos de seus filmes, a popularidade das comédias eróticas que surgem a partir dos anos 1970 (que, não coincidentemente, recebem o apelido de “pornochanchadas”) e as megaproduções da comédia produzidas pela Globo Filmes (que ganham a alcunha de “globochanchadas”) servem como um possível caminho para se trilhar uma herança perene da chanchada no cinema brasileiro após o desaparecimento da versão “original” desse modelo.

O cinema brasileiro não nega: a chanchada existe até hoje, nunca deixou de existir, ainda que tenha passado por tantas transmutações. Os longas realizados entre os anos 1930 e 1960 hoje são clássicos incontornáveis para o conhecimento e o estudo da cinematografia do país, tendo sido responsáveis por fomentar o êxito de canções de carnaval, de carreiras para cantores, sambistas e atores e da bilheteria para tantos filmes.

Nem sempre o cinema brasileiro foi visto, qualitativamente, com desconfiança por seu público. E mesmo que vez ou outra as “globochanchadas” de hoje atinjam números estrondosos de venda de ingressos (e talvez o humorista niteroiense Paulo Gustavo seja o mais próximo que já chegamos de um “novo Oscarito”), ainda precisam superar o estigma que possuem em relação ao produto estrangeiro. Trata-se, no fim das contas, de um dos dilemas seculares do cinema brasileiro, para o qual não existe solução fácil para além de confabulações ensaísticas.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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