Camaleão político, Ciro agora é guru conspiracionista

Teorias conspiratórias, nacionalismo chauvinista, ataque a minorias e flertes com neofascismo formam nova retórica da “Turma Boa”

Por Norberto Liberator

Que Ciro Gomes tem acenado ao eleitorado de Bolsonaro para disputá-lo, não é novidade. Poderia, inclusive, ser uma estratégia eleitoral razoável. No entanto, o pedetista não se conteve em se apresentar como uma alternativa às duas principais candidaturas à Presidência da República. Com uma biografia política que inclui mudanças de posicionamento ideológico em diversos momentos, o ex-ministro agora aposta suas fichas no que há de mais atrasado no discurso conservador, anticomunista, antipetista e chauvinista.

Com críticas muito mais brandas a Bolsonaro do que aquelas que reserva ao PT, Ciro Gomes iniciou o debate da Globo atacando Lula ofegantemente; serviu de escada para o show de clichês antipetistas do candidato do Novo, Felipe D’Avila; no debate organizado pela CNN e SBT, chegou a fazer cochichos amistosos com Bolsonaro, além de ter rido dos ataques misóginos feitos pelo candidato do PL à jornalista Vera Magalhães, durante o debate da Band, TV Cultura e Folha de S. Paulo.

 Antes de chegarmos à tragédia que se tornou o discurso cirista, é preciso fazer um resgate da trajetória do político cearense. Pertencente à influente família Ferreira Gomes, Ciro iniciou sua carreira no PDS (Partido Democrático Social), como passou a se denominar a Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido de sustentação da ditadura militar-empresarial. 

Mais tarde, filiou-se ao PSDB e integrou o governo neoliberal de Itamar Franco, de quem chegou a ser ministro da Fazenda. À época, chegou a chamar o fundador do PDT, Leonel Brizola, de “suprassumo do atraso”. Ciro classificou o ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro como “populista e, pior ainda, com discurso de esquerda”. Foi após sua passagem por Harvard, sob influência do professor Roberto Mangabeira Unger, que Ciro Gomes aderiu à escola keynesiana, de tendências social-democratas – na definição que o termo passou a ter na segunda metade do século XX, sem propor o rompimento com o capitalismo. A parceria resultou no livro “Próximo passo: uma alternativa prática ao neoliberalismo”.

Filiado ao PPS, partido fundado pela cúpula do antigo PCB que abandonou o marxismo-leninismo e abraçou a Perestroika de Mikhail Gorbachev, Ciro Gomes chegou a figurar na capa da Veja como a “esquerda light”, em tentativa da revista historicamente antipetista em emplacar uma alternativa centrista a Lula, dentro do chamado campo progressista. Em 1992, quando governava o Ceará, também apareceu, junto a outras personalidades – incluindo Fernando Collor de Mello –, na capa da publicação, que trazia o título “Sim, o Brasil tem jeito”.

Na primeira tentativa de presidir o Brasil, com Roberto Freire compondo a chapa, foi o terceiro colocado, com 10,97% no pleito em que Fernando Henrique Cardoso (PSDB) foi reeleito com 56,06% dos votos no primeiro turno. Lula, que tinha Brizola na vice-candidatura, obteve 31,71%. Em 2002, com Paulinho da Força (PTB) na vice, Ciro chegou a liderar pesquisas, mas amargou a quarta colocação, com 11,97% dos votos. Apoiou Lula no segundo turno e veio a ser ministro da Integração Nacional no governo do ex-líder sindical.

Do trabalhismo aos flertes com o fascismo

Após passagem pelo PSB, que abandonou após a legenda decidir que não apoiaria a candidatura de Dilma Rousseff (PT) para as eleições que viriam a ocorrer em 2014, Ciro se filiou ao Pros, partido do chamado “Centrão”. Com curta passagem, desembarcou e entrou no PDT em 2015. Foi no partido fundado por Brizola que Ciro alavancou seu famigerado projeto de desenvolvimento. E foi na mesma agremiação que militantes neofascistas decidiram se abrigar, apoiados na controversa reivindicação feita pelo partido à memória de Getúlio Vargas.

O PDT tem sido há anos a legenda escolhida por membros de movimentos neofascistas como Nova Resistência e Sol da Pátria, ligados à chamada “Quarta Teoria Política” do fascista russo Aleksandr Dugin (cujas ideias e atuação foram sintetizadas neste artigo de março de 2020), relação que não é discreta e é objeto de reportagens, exposições públicas e cobranças de posicionamento da direção do partido, que chegou a anunciar a expulsão de membros e simpatizantes de tais grupos – o que, em larga escala, não ocorreu.

O trabalhismo brasileiro tem em sua raiz um dilema complexo a ser contornado: Vargas. Por um lado, foi a partir da reivindicação de sua faceta de inclusão social que trabalhistas de esquerda, como Leonel Brizola e João Goulart, definiram suas trajetórias políticas. Por outro, Getúlio Vargas não escondeu sua aproximação a regimes de caráter fascista, inclusive acolhendo em seu governo simpatizantes do nazismo, como Góes Monteiro e Filinto Müller. 

Além disso, é notório que o objetivo de Getúlio não era a emancipação da classe trabalhadora, mas evitar a radicalização desta à esquerda. Circunstâncias políticas da época levaram Alberto Pasqualini, precursor do trabalhismo brasileiro perseguido pelo próprio Estado Novo de Getúlio Vargas, a filiar-se ao antigo PTB de Getúlio, tornando-se representante de uma ala interna à esquerda do partido, conhecida como “Linha Pasqualini”, na qual se destacariam Jango e Brizola¹. 

Tal qual outros líderes populistas, como o argentino Juan Domingo Perón, o legado de Vargas foi disputado à esquerda e à direita, embora o reformismo radical de Pasqualini, Jango e Brizola em muito tenha se distanciado de Getúlio, criando uma tendência própria que torna absolutamente desnecessária a reivindicação desta figura. Ao contrário: Leonel Brizola foi indubitavelmente um dos maiores e mais combativos quadros da esquerda latinoamericana, apesar de sua admiração por Getúlio e não devido a ela.

Amparados nas contradições do varguismo, oportunistas de extrema-direita viram no PDT o espaço para desenvolver seu nacionalismo chauvinista, seu reacionarismo moral e suas propostas corporativistas de “união nacional”, termo vazio e antimaterialista, que implica no abrandamento de reivindicações da classe trabalhadora em nome de um ideal corporativista que remete ao fascismo clássico.

Foi no PDT que o renegado Aldo Rebelo, ideólogo de uma versão brasileira da “Quarta Teoria Política” à qual chama de “Quinto Movimento”, encontrou eco para suas fantasias dignas de uma versão atualizada do líder integralista Plínio Salgado. É o mesmo PDT que abriga Robinson Farinazzo, notório ufanista que – assim como Rebelo – é tietado como uma espécie de popstar pelos membros da Nova Resistência. Também é a agremiação que abriga Cabo Daciolo, o qual se destacou a partir de teorias conspiratórias contra o próprio Ciro Gomes.

Surfando no conspiracionismo e reacionarismo

Ciro não só exalta Aldo Rebelo e o carrega como papagaio de pirata, como também adere a seu discurso nos campos da moral e da semântica, da luta contra o “politicamente correto”, termo utilizado pelo alagoano como motivo para ter saído do PCdoB – diga-se de passagem, de forma tardia e lamentavelmente por opção própria, o que também é revelador a respeito da postura daquele partido em relação a posicionamentos estranhos à linha teórica que a legenda reivindica.

O ex-governador do Ceará classificou como “papo furado” e “baboseiras do esquerdismo” as pautas de direitos civis de negros, mulheres e indígenas (a quem chama de “índios”), associou – de forma proibicionista – o que classifica como “esquerda caviar” ao consumo de cocaína (já tinha sugerido anteriormente que Gregório Duvivier trabalharia sob efeito de drogas), disse que um discurso complexo não seria compreendido na favela, entre outros impropérios. Seu amigo pessoal e escudeiro Gustavo Castañon, chamado nas redes sociais de “Carluxo do Ciro” e “Olavo de Carvalho do PDT”, já participou de live da Frente Sol da Pátria, usou sua conta no Twitter para dizer que artistas que se engajam na campanha de Lula são o “Partido da Maconha” e, recentemente, recorreu ao pânico satânico para atacar uma jornalista. 

De acordo com Castañon, Letícia Oliveira – autora de reportagens em que denuncia a ligação entre setores do PDT e militantes neofascistas – seria “satanista”, por utilizar uma camiseta que traz na estampa o personagem Baphomet — bode antropomórfico que simboliza equilíbrio — e um colar com pingente em forma de pentagrama. Em sua avaliação, isso seria suficiente para descredibilizar o trabalho da jornalista. Castañon reproduz, desta forma, o racismo religioso e demonstra seu desprezo pelo Estado laico (sobre pânico satânico, a Badaró publicou esta reportagem). No mesmo tuíte, acusa Letícia de ser “braço do Ross no Brasil”, em referência ao pesquisador Alexander Reid Ross, a quem acusa de ser agente da CIA.

Teorias da conspiração do tipo são a nova tônica de Ciro Gomes. Em sabatina no jornal O Estado de S. Paulo, o candidato pedetista acusou o Psol e o que considera “pautas identitárias” de serem “financiados por George Soros”. As acusações de que o bilionário húngaro seria patrocinador de setores de esquerda não são novas e têm ligação com discursos conspiracionistas e antissemitas. É uma reformulação do discurso de que o sistema financeiro mundial é dominado por famílias judaicas donas de bancos, como Rockefeller e Rotschild. Não causa espanto que a única fração da burguesia realmente atacada por Ciro sejam – de forma bastante difusa – os banqueiros. O mais lógico seria atacar também o agronegócio, mas a este setor o pedetista exalta.

As argumentações variam, mas têm a mesma origem nos Protocolos dos Sábios de Sião, texto apócrifo que acusava a comunidade judaica de uma “conspiração global” e serviu como base para o nazismo. A versão brasileira da publicação foi traduzida e prefaciada pelo integralista Gustavo Barroso, uma das referências da Nova Resistência. De fato, por meio da Open Society Foundation, George Soros financia algumas iniciativas como organizações não governamentais ligadas à defesa de direitos de minorias, o que de forma alguma implica em um plano de dominação mundial, mas em algo muito mais simples: o abatimento de impostos e a “limpeza” da própria imagem.

Um dos principais propagandistas do conspiracionismo a respeito de Soros foi elogiado por Ciro Gomes durante sua participação no podcast Monark Talks (que dispensa apresentações): Enéas Carneiro, um dos mais destacados políticos fascistas do Brasil. As ideias de Enéas eram tão similares ao fascismo clássico que foi em seu partido, o Prona (Partido da Reedificação da Ordem Nacional), que os integralistas se organizaram durante o final da década de 1980 e meados dos anos 2000, até a legenda se fundir ao PL para formar o PR, hoje Republicanos. Pelo Prona, o integralista Elimar Damasceno se elegeu deputado federal e, em 2003, fez uso do plenário para homenagear Plínio Salgado, principal ideólogo do fascismo brasileiro.

Por estas e outras evidências, não é exagero afirmar que os cochichos de Ciro a Bolsonaro durante o debate do SBT, ou, antes deles, a passagem de recado ao presidente da República por meio do ministro Fábio Faria, seriam apenas o estopim de algo ainda mais profundo. A “Turma Boa” em torno de Ciro Gomes o alça a um guru infalível, capaz de enfrentar tudo o que consideram negativo, do “politicamente correto” ao sistema financeiro, além de enxergar nele uma aura intelectual semelhante à que os olavistas veem em seu “professor”.

Jogando no lixo o espaço de liderança de esquerda que, embora com embasamento frágil, vinha conquistando nos últimos anos, Ciro Gomes tem se tornado o líder máximo de um movimento que mistura conservadorismo, teorias fantasiosas, anticomunismo, ataque difuso ao capital internacional – mas sem propor o rompimento com o capitalismo – e a união em torno de um líder forte, carismático e paternal, que enfrenta e é atacado por um abstrato “sistema”. Tire suas conclusões.

 

¹SILVA, Roberto Bitencourt da. Alberto Pasqualini: trajetória política e pensamento trabalhista. 2012. xi, 290f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense. Departamento de História, 2012.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente, artes e esportes.

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