Junho de 2013: os rumos que a primavera tomou

10 anos depois, pesquisadores e ativistas ainda tentam entender como manifestações reivindicando direitos humanos básicos agiram junto ao avanço conservador no Brasil 

Por Tainá Jara
Arte: Norberto Liberator

O processo de assimilar momentos históricos fica ainda mais difícil quando os vivemos. Reconhecer a magnitude de tais episódios exige, por si só, tempo e observação dos desdobramentos. No meu caso, foram necessárias menos de três décadas de vida para viver alguns fatos de relevância social. Somam-se a este curto período, contexto mais veloz de análise e conclusões, já que a predominância das redes sociais impregnou o cotidiano e demanda explicações quase simultâneas ao presente dos acontecimentos. 

As manifestações de junho de 2013 estão entre os grandes momentos da década passada no Brasil. A série de eventos que as sucedeu agita e se reflete no País até hoje. Não houve calmaria desde então. No entanto, 10 anos depois, pesquisadores e ativistas ainda tentam entender como mobilizações reivindicando direitos humanos básicos agiram junto ao avanço conservador. 

Leituras do contexto global no qual as chamadas “Jornadas de Junho” aconteceram são essenciais para entender como eclodiram. Um ciclo de manifestações foi inaugurado no final de 2010 no mundo, a partir de revolta contra ações de representantes do Estado. 

A Primavera Árabe foi deflagrada depois que o vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi, 26 anos, ateou fogo no próprio corpo, em dezembro de 2010, diante de um prédio do governo para protestar contra o repetido confisco, pela polícia local, de sua banca de frutas e verduras, depois de ele se recusar a pagar propina. O fato ocorreu na cidade Sidi Bouzid, que possui pouco mais de 40 mil habitantes, e foi registrado pelo primo de Mohamed, responsável por distribuir o vídeo na internet. A partir de então, e de outras ações de autoimolação, vários protestos foram deflagrados e tomaram o País, mesmo sob a repressão selvagem da polícia, que matou dezenas de pessoas e deixou centenas feridas.

As manifestações ocorridas no chamado “mundo árabe” influenciaram outras, em todo o mundo. Na Europa e nos Estados Unidos, as referências aos protestos ocorridos na Tunísia foram explícitas. São desta época o Movimento 15M, na Espanha, onde os indignados acamparam nas ruas sob o lema “Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros” e também o Occupy Wall Street, em Nova York, em que os manifestantes entoavam que eram “os 99%”, se referindo ao 1% mais rico do País. Na América Latina, marcaram a mobilização dos estudantes no Chile por ensino gratuito e contra a lógica neoliberal de gerir a educação. 

Sintonia global, reivindicações difusas   

No Brasil, a primavera chegou através de diversos protestos, sendo o ápice em junho de 2013. Os manifestantes reivindicavam a redução do preço das passagens no transporte público e a mobilização era, ao menos inicialmente, chamada pelo Movimento Passe Livre (MPL). Em 20 de junho daquele ano ocorreu o auge das manifestações, quando 1,4 milhão de pessoas ocuparam 130 cidades no País. Três dias antes, o número de participantes tinha sido de 270 mil pessoas que saíram às ruas em 30 cidades. 

Ao longo dos protestos, as reivindicações se ampliaram e ficaram cada vez mais difusas. O uso intensivo das redes sociais da internet para mobilizar os participantes não era o único aspecto novo, em relação às mobilizações anteriores da mesma magnitude. 

Sem lideranças, a coletividade se sobrepunha às ações individuais, e a autonomia dos participantes, que agiam sem mediação de representantes políticos e até com alguma aversão a estes, também era novidade, assim como o caráter performático, marcado principalmente pelos Black Blocs, que escondiam o rosto e adotavam táticas de ação direta.  

A proporção dos protestos, ataques a prédios de empresas-símbolo do capitalismo e táticas de autodefesa praticadas por estes grupos testaram e, em alguma medida, expuseram o despreparo das forças policiais. Embates violentos foram travados e prisões arbitrárias foram efetuadas. Passados os anos, uso de provas ilegais e mesmo a inexistência delas levaram a absolvições ou processos parados na Justiça.

Porém, tal ponto é importante para ajudar a entender a disputa de narrativa entre direita e esquerda travada no calor dos protestos e que, de certa forma, ainda está presente uma década depois. As manifestações, mesmo ocorrendo sob o governo de Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, abriram espaço para um fortalecimento estrutural das polícias, grupo que posteriormente se mostrou base para o avanço conservador, juntamente com os lava-jatistas, através do apoio às eleições de Jair Bolsonaro, em 2018. 

“Junho mora onde?”

Para o pesquisador Roberto Andrés, professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais e autor do livro “A Razão dos Centavos: crise urbana, vida democrática e as revoltadas de 2013”, o discurso extremista não predominou nas manifestações, que seguiram reivindicando o espaço urbano com o fortalecimento de movimentos como do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e contra as intervenções para Copa de 2014. Somente naquele ano, por exemplo, foram registradas mais de 2 mil greves no País.

Além disso, ele aponta para o salto na adoção da tarifa zero no País. Até as manifestações, cerca de 10 cidades praticavam o passe livre. Atualmente, mais de 70 cidades incorporam políticas de gratuidade no transporte público. A principal bandeira dos movimentos, portanto, foi colocada em prática. Andrés aponta o avanço dos movimentos conservadores, após o 2º turno das eleições realizadas no ano seguinte. 

Ainda assim, jornalistas e a própria esquerda associam as mobilizações de Junho de 2013 diretamente ao golpe contra a presidenta Dilma, em 2016. A hipótese de sequestro das mobilizações foi defendida pela filósofa Marilena Chauí, que classificou o episódio como o “ovo da serpente” da extrema-direita. A própria ex-presidente endossa a tese em prólogo da coletânea “Junho de 2013: a rebelião fantasma”, que acaba de sair pela Boitempo. 

Para a socióloga Angela Alonso, autora do livro “Treze: a política de rua de Lula e Dilma”, tal explicação não se sustenta sozinha, mas deve somar-se a uma crise de representação e reação contra o sistema político iniciada ainda com o escândalo do “Mensalão”, em 2005, durante o governo Lula. Seria, portanto, Junho de 2013, o resultado de várias mudanças ocorridas na década anterior na sociedade brasileira, incluindo os avanços econômicos, no campo dos direitos coletivos e individuais e as reações a tais conquistas. 

A pesquisadora ressalta o fragmento das manifestações e identifica três campos de mobilização: os neossocialista, formado por movimentos sociais e partidos mais à esquerda que o PT; os autonomistas, exemplificados pelo próprio MPL e os black blocs; e os adesistas celebrativos (ou “gente esquisita”), de caráter mais patriótico e pessoas que não estavam acostumadas às ruas. 

Em artigo publicado em 2018, a pesquisadora Maria Bogado não negava o avanço conservador, mas apresentava um olhar otimista quanto às manifestações deflagradas cinco anos antes. Para uma das ativistas ouvidas para análise, a estudante secundarista Isabella Dias, a guinada conservadora seria uma resposta ao processo de conscientização pelo qual passamos durante os anos anteriores. 

É interessante pontuar que, apesar das expressões “primavera” e “jornadas” fazerem referência a movimentos de conquistas de direitos para classes populares, como a Comuna de Paris, em 1871,  as mobilizações mais atuais confrontaram-se com forças conservadoras. A Primavera Árabe, por exemplo, teve efeitos comparáveis às mobilizações de Junho de 2013. Em vez de um avanço democrático na política local, o que houve foi o retorno de grupos fundamentalistas islâmicos na Tunísia e no Egito. Nos casos da Líbia e da Síria, desencadeou guerras civis que duram até hoje. Tal trajetória foi verificada em outras mobilizações do período, mostrando um clima global para a guinada conservadora. 

Na tentativa de tentar entender Junho de 2013 e interpretar memórias das manifestações, o laboratório no.ar, da Universidade Federal Fluminense, lançou a campanha “Junho mora onde?”, voltada para coletar depoimentos do período. Entre os dias 21 e 22 de junho, foi realizado na UFF e na UENF uma série de mesas e debates com pesquisadores que se debruçaram sobre o episódio histórico. 

Apesar de ainda estar ganhando contornos históricos e a narrativa ainda estar em disputa, é inegável que as mobilizações representaram um choque entre diferentes setores da sociedade e ganharam contexto muito específicos mesmo diante da influência global. Reivindicações por avanços nos direitos das minorias sociais e dos mais pobres confrontaram-se com forças conservadoras que sempre estiveram presentes no País. De alguma forma, o gigante realmente acordou.


Referências:

BOGADO, Maria. Rua. In: Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade, p. 23-

42, 2018.

CAFÉ DA MANHÃ: junho de 2013: o que houve nas ruas. Entrevistados: Lucas Monteiro, Mayara Vivian, Pâmella Vaz, Kim Kataguiri, Camila Rocha, Renato Lima, Sérgio Dávila e Artur Rodrigues. Entrevistadores:  Angela Boldrini e Gabriela Mayer. Folha de São Paulo, 13 jun. 2023. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/1HC4JPJkRyLqXZ7C8sNCXz. Acesso em: 29 jun. 2023.

MALDITA POLITICAGEM: #70: quando o gigante acordou, tropeçou e bateu a cabeça. Locução de: Alessandro Tokumoto e Luiz Domingos Costa. Curitiba, 27 jun. 2023. Podcast. Disponível em: 

https://open.spotify.com/episode/7zmooaCY1SrJa8JkfS27b8. Acesso em: 29 jun. 2023.

JARA, Tainá Mendes. #Nenhumaamenos: : redes sociais e feminismos nos fluxos

informativos do caso de feminicídio de Mayara Amaral. Dissertação de

mestrado.Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-Graduação em

Comunicação, 2019.

O ASSUNTO: junho de 2013: as manifestações que abalaram o País. Entrevistados: Roberto Andrés. Entrevistadores: Natuza Nery. G1, 13 JUN. 2023. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/738riBxoBoMY751dIzxfcb. Acesso em: 29 jun. 2023. 

NOGUEIRA, Ítalo. Processos na esteira de Junho de 2013 tiveram provas ilegais, condenações e absolvições. Folha de São Paulo, 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/06/processos-na-esteira-de-junho-de-2013-tiveram-provas-ilegais-condenacoes-e-absolvicoes.shtml. Acesso em: 29 jun. 2023.

Tainá Jara

Jornalista e pesquisadora em Comunicação. Interessada em mídia, estudos de gênero e direitos humanos. Na horas vagas vai de cinema, música e, sim, política.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente, artes e esportes.

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