Editorial: Sem ilusões, com Lula

Eventual eleição de ex-presidente não seria solução mágica para superar bolsonarismo, mas é passo necessário para evitar sua potencialização

Em 2018, após a vitória de Jair Bolsonaro (então no PSL), os quatro anos seguintes pareciam uma eternidade. E foram. Tivemos a maior pandemia desde a Gripe Espanhola, com índices absurdos no Brasil; aumento astronômico da inflação, desemprego e fome; ameaças quase que diárias do presidente da República às instituições democráticas; aumento e posterior diminuição de mobilizações sociais. 

Contudo, mesmo com incertezas, entramos no ano eleitoral de 2022. Diferentemente da última eleição, a deste ano terá Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entre os candidatos. Após o desmonte da Lava Jato e de ter recuperado seus direitos políticos, o ex-presidente parece ser – ao considerarmos as pesquisas eleitorais – o único candidato capaz de vencer Bolsonaro. 

Em diferentes pesquisas de divulgação de intenção de votos, Lula sustenta um índice superior a 40% e, em alguns casos, com chances de vitória ainda no primeiro turno. A influência de Lula – que foi sempre maior do que a do próprio partido – surpreendeu os que cogitaram que o petista estava ultrapassado ou, ainda, que sua imagem estava assombrada pelo fantasma de Sergio Moro.

Os resultados de tal influência, ao serem convertidos em votos, podem nos colocar diante de um terceiro mandato de Lula a partir de 2023 e, por isso, não devemos perder de vista as movimentações políticas que o presidenciável tem realizado.

Lulalckmin

A ideia de uma chapa entre Lula e Alckmin começou a amadurecer ainda em 2021. Em dezembro do ano passado, visando um estreitamento de laço e consolidação de uma aliança real, o grupo de advogados Prerrogativas organizou um jantar com Lula e Alckmin para discutir a possibilidade de uma aliança. Além dos dois políticos, também estavam presentes dirigentes do PT, PSB, Rede, PCdoB, PSD e até do MDB, legenda que articulou o golpe de 2016. 

Após o jantar, políticos que até então eram adversários se uniram para derrotar Bolsonaro, ao menos nas urnas. Todavia, ao abraçar boa parte dos setores que viraram ”oposição” ao atual presidente, o PT adentra um campo minado. A frente ampla, que almeja e está disposta a abdicar de toda e qualquer divergência programática e política, encontrará sérios problemas caso tenha a intenção de superar o bolsonarismo enquanto projeto político-econômico. 

Após meses de aceno, encontros e especulações, foi lançada no dia sete de maio a chapa entre Lula e Geraldo Alckmin à Presidência da República, formada por um PT em recuperação do desgaste gerado pelos acontecimentos que culminaram no golpe de 2016 e por um PSB em ascensão, mais fisiológico do que nunca. 

A legenda que agora abriga o ex-governador paulista, junto a figuras como Flávio Dino, Tabata Amaral e Marcelo Freixo, busca aumentar sua relevância fora de Pernambuco, onde é a principal força há décadas – e, atualmente, governa há 15 anos ininterruptos com uma política neoliberal e repressora, análoga à do próprio PSDB em São Paulo, onde Alckmin impôs tal agenda por 12 anos (não consecutivos).

Com uma composição tão eclética, o PSB teve em seu grupo paulista o conchavo que levou à aliança atual. Márcio França, ex-vice de Alckmin que veio a ocupar seu posto, costuma ser classificado pela mídia hegemônica – e por si mesmo – como um político de centro-esquerda, mesmo tendo sido parte da alta cúpula do governo tucano. 

França é apontado como principal articulador da chapa e pode ser o candidato de Lula ao Senado por São Paulo, caso a chapa concorde em se aglutinar diante de Fernando Haddad para o governo paulista. É com o discurso de “união nacional” que o peessebista tem defendido a aliança desde o final de 2021. Quem propagou e defendeu uma frente ampla anti-Bolsonaro não deve se chocar com a chapa encabeçada por Lula. E ao se comparar a atual composição às que o PT realizou desde 2002, não há qualquer surpresa.

Os problemas do frenteamplismo

A retórica de “união contra o fascismo” é perigosa. A simples retirada de Bolsonaro do Palácio do Planalto não garante uma superação efetiva do bolsonarismo. Em caso de uma vitória de Lula aceita por Bolsonaro – no plano das ideias, já que o ex-capitão afirmou que não aceitará a derrota para Lula –, a frente ampla e os novos aliados do petista conseguirão revogar o que foi aprovado desde 2016? Mais do que isso, haveria tal vontade? De acordo com o próprio presidente do PSB, não. Carlos Siqueira afirmou, em abril, que o programa de governo “não pode ser de esquerda”, e sim refletir uma vaga “defesa da democracia”.

É um erro crasso pensar em Jair Bolsonaro como um solecismo da história ou pelo viés patologizante. As reformas neoliberais realizadas por Bolsonaro e por Paulo Guedes – um verdadeiro membro dos Chicago Boys e que tem no seu histórico a atuação no período ditatorial de Pinochet – miram na completa destruição de direitos sociais, privatizações e sucateamento do serviço público, desmonte do Estado, além do reacionarismo neopentecostal e enfraquecimento dos pilares que sustentam a controversa democracia brasileira.

As políticas econômicas e sociais de Bolsonaro são um esticamento extremo e a curto prazo daquelas que o próprio Alckmin, bem como outros políticos que têm acenado a Lula – como Gilberto Kassab, chefe supremo do PSD, e até mesmo o ex-governador paulista João Doria (PSDB) –, defenderam ao longo de suas trajetórias políticas. O compromisso com tais setores fez com que Lula recuasse a respeito da revogação da Reforma Trabalhista*.

Diante do atual cenário, em que o discurso aliancista está mais explícito até mesmo do que o da “Carta aos Brasileiros” de 2002, o que se pode esperar de um eventual governo petista é uma gestão à direita dos mandatos anteriores do partido, que já tiveram altas doses de liberalismo na economia, desenvolvimentismo preocupante no meio ambiente e, até mesmo, de conservadorismo nos costumes, chegando a contar com Marcelo Crivella como ministro (da Pesca, quando o que mais “entende” do assunto é ter gravado a música “Oração do Pescador”) e gerando aberrações como Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos da Câmara.

Perspectivas e apoio

Não devemos nos iludir quanto às medidas de um eventual governo petista em relação a reformas profundas, seja no sistema fundiário, seja na estrutura econômica ou em relação à violência policial, por exemplo. Diante de descalabros recorrentes como desaparecimento de uma comunidade inteira de indígenas yanomami, ou da tortura seguida de assassinato de um homem negro via câmara de gás em uma viatura, há quem veja na saída de Bolsonaro e retorno de Lula uma esperança.

Não há o que se negar sobre o atual governo, a partir de seu culto à violência, permitir que apoiadores se sintam à vontade para agir violentamente. Nada garante, porém, que casos do tipo reduzam drasticamente quando se trata de um governante que, quando presidente, defendeu a atuação de Unidades de Polícia “Pacificadoras” (UPPs) e comandou a ocupação militar do Haiti, a qual também gerou milhares de mortes e até chacinas. Ainda mais quando seu vice é conhecido pelo tratamento policial truculento que dava a populações periféricas, estudantes, professores e movimentos sociais.

Para não perdermos de vista o passado do atual vice de Lula, é importante relembrar que, durante a gestão de Alckmin, o ex-governador nomeou como comandante da Polícia Militar um ex-chefe da Rota. Além disso, foi também sob a gestão do ex-tucano que 94 escolas estaduais foram fechadas, gerando uma onda de protestos e a ocupação de 200 escolas no estado de São Paulo. Alckmin, durante as ocupações, encaminhou a Tropa de Choque para lidar com os estudantes.

Também foi sob ordens do governo Alckmin que, em 2012, a PM paulista despejou cerca de 1,6 mil famílias na ocupação conhecida como Pinheirinho, que já funcionava como bairro havia oito anos e foi desmontada em favor do milionário Naji Nahas – que já havia sido preso por crimes financeiros –, para servir como fonte de especulação imobiliária. A reintegração de posse foi violenta, contando com dois mil agentes. Os próprios habitantes registraram, na época, a truculência da polícia, que feriu dezenas de moradores. Houve denúncias de destruição de bens materiais e até de violência sexual.

A Badaró não acredita que uma possível eleição de Lula seja suficiente para superar o bolsonarismo e seu legado de destruição. Dentro do sistema capitalista, o fascismo é cíclico e jogado à mesa como coringa pela própria burguesia, como forma de barrar projetos de esquerda. Por outro lado, o desmonte de nação e de civilização em curso chegaria a níveis ainda mais catastróficos com a possibilidade de mais quatro anos de governo Bolsonaro.

Diante de tal contexto, embora não acreditemos que um turno a mais ou a menos fortaleça ou diminua o desejo de Bolsonaro em organizar um golpe, não é possível prever a que níveis o jogo sujo bolsonarista pode chegar durante as duas semanas entre a primeira e a segunda volta, nem o que podem gerar em parte do eleitorado. 

É preferível que se tente garantir a vitória de Lula no primeiro turno, não adiá-la em duas semanas, o que poderia abrir o risco de uma virada histórica. Portanto, a Badaró apoia – não de forma acrítica e dentro de todas as limitações pontuadas – a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva e orienta seus leitores a votarem “13”  no primeiro turno das eleições para a Presidência da República.

 

*Atualização: a coordenação da campanha de Lula enviou a partidos aliados, no dia 6 de junho, o esboço do programa de governo da chapa, que inclui a revogação da Reforma Trabalhista. 

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