O corpo como poética e política: a presença de Ana Mendieta

Breves apontamentos sobre trajetória da artista que questionou fronteiras étnicas, categorizações de gênero e usou o corpo como ferramenta política

[Alerta de gatilho]: o texto contém discussões sobre violência sexual e estupro

Por Carolina Mendonça 
Colaboraram Guilherme Correia e Leopoldo Neto 

A subjetividade entre a objetividade, um relato da autora

Encontrei a artista pela primeira vez em meio a outras artistas latinas na exposição Mulheres Radicais na Pinacoteca de São Paulo, pouco após o fascismo se ascender ao poder no Brasil por meio do voto popular. A intensidade de sua presença não me permitiu lembrar seu nome, mas manteve viva na minha mente as imagens de suas obras. Um ano depois encontrei de forma aleatória a artista visceral que tanto busquei em meio a uma série de vídeos sobre arte e feminismo e a Ana das minhas memórias estava inconfundível. Pude aprender seu nome e assim pesquisar mais sobre ela. Mendieta está onde se permite discutir poesia, política e corporeidade. Ana Mendieta está aqui!

 

Da subjetividade à construção de um perfil: a vida e os percalços de Ana Mendieta

Cubana oriunda da capital Havana, Ana Mendieta nasceu no dia 18 de novembro de 1948. Na época, a ilha caribenha vivia um período de instabilidade e indícios de uma grande efervescência social – que culminou na Revolução Cubana, em 1959. Em um primeiro momento, Ignácio Mendieta, pai de Ana, apoia a derrubada do ditador Fulgencio Batista; mas, ao perceber o caráter socialista pós-revolução, se torna um inimigo do regime castrista.

Ignácio se opõe ao governo pelo caráter “anticatólico” e se envolve em atividades contrárias à Revolução. O pânico causado por setores da sociedade contrários ao regime socialista liderado por Fidel Castro fez a família Mendieta enviar suas filhas Raquel, na época com 15 anos, e Ana, 11 anos, para os Estados Unidos na Operação Peter Pan – ação que se caracterizava pelo êxodo de milhares de crianças e adolescentes cubanos para os Estados Unidos, com o apoio de grupos católicos anticomunistas.

Dentro dos EUA, Ana sofre violências sob a tutela da igreja católica. Ao se fixar no estado norte-americano de Iowa, em meio à intensa resistência na luta pelos direitos civis numa cidade onde havia poucos cubanos, a jovem (na infância de família abastada) passa a se perceber diferente. Seu tom de pele é considerado muito escuro e sua nacionalidade é malvista, se iniciando os questionamentos da artista enquanto seu corpo e sua origem. Sua presença revelava uma ambiguidade insustentável e inumana entre o erótico e o violento.

 

A fronteira, o gênero, a criação: as obras de Mendieta

Durante a década de 1970, a jovem cubana estuda Artes Plásticas na Universidade de Iowa e lá tem contato próximo com a efervescência artística e política desse momento. Havia uma emersão de um novo fazer artístico que utilizava do corpo e de seus limites num fazer efêmero: a performance. Na política, mulheres, negros e pessoas LGBTs – grupos historicamente oprimidos – passam a ter grandes levantes que questionam sua abjeção. A obra de Ana é permeada e manifesta esse contexto no qual se insere.

Figura 1: Sem Título (Facial Hair Transpalnte) – Ana Mendieta,  1972

Em Facial Hair Transplante, um homem, amigo de Mendieta, corta barba enquanto a artista coloca os pelos em seu rosto montando em si um bigode similar ao da obra “L.H.O.O.Q.” (Marcel Duchamp, 1919) que questiona o gênero inserindo um bigode na clássica obra Monalisa (Leonardo DaVinci, 1503). Com uma roupa que não marca as curvas tidas como femininas, cabelo completamente preso, mas com grandes brincos de argola, ao colocar um bigode Ana torna sua aparência andrógina.

A artista questiona a distinção tênue dos gêneros binários a partir da performance arbitrária que classifica o sujeito de acordo com seu sexo biológico. Em suas representações, a artista se utiliza da nudez como ato político. O corpo de Mendieta é ambíguo, por ser mulher despi-lo algo pecaminoso, mas por ser considerada bonita era fonte de gozo, enquanto uma mulher latina seu corpo era desejado, mas não humanizado. A desumanização desse corpo se faz presente em obras que Ana Mendieta discute a violência sexual, como na série de fotografias que a artista se deita de bruços na grama e parcialmente coberta por grama e folhas. O corpo nu no ambiente bucólico demonstra uma sensualidade em um contexto de vulnerabilidade.

Figura 2: Sem Título (Grass On Woman) – Ana Mendieta,  1972

Um ano após essa série de fotografias há um homicídio brutal nos dormitórios da Universidade de Iowa e a artista produz performances sobre a temática, uma delas em seu apartamento se torna sua obra mais conhecida.

 

Alerta de gatilho: como enfatizado no subtítulo da matéria, alguns trechos deste texto contêm descrições sobre obras de arte que criticam a violência simbólica e física que as mulheres sofrem e permeiam na discussão sobre estupro.

 

Um mês após uma jovem ser estuprada e assassinada dentro do campus universitário, Ana convida amigos para sua casa e cria uma performance sem título, conhecida como Rape Scene – cena de estupro. A porta se encontrava entreaberta e ao entrar, os convidados se depararam com a casa bastante bagunçada, como se alguém tivesse brigado no ambiente. Havia sangue animal pela casa e a artista estava amarrada, seminua e imóvel na mesma posição que a universitária foi encontrada morta. Mendieta passa aproximadamente uma hora nessa posição gerando debate entre seus amigos. Após isso junta-se ao grupo para discutir o tema. A artista, mesmo anos depois da performance, a coloca como algo pessoal, uma resposta visceral a uma situação que mexeu profundamente com ela. Uma mulher discutir e mostrar o quão brutal e próximo é a violência sexual, mesmo que por motivos pessoais, se torna um ato político.

Figura 3: Sem título (Série Silhuetas) – Ana Mendieta, 1973 a 1980

Conduzindo sua arte de forma biográfica, Ana Mendieta cria a série Silhuetas (1973 – 1980), na qual desenvolve olhares sobre o feminino, a fronteira, a vida, a morte e a natureza. A artista cria o termo earth-body sculpture (escultura térreo-corpórea) para suas performances feitas junto à natureza, com poucas testemunhas, por vezes apenas a artista, e que se tem registro apenas por fotografias e gravações em Super-8.

Em Silhuetas a obra é efêmera, as esculturas são feitas com elementos naturais como gelo, areia, terra, fogo – obras que, devido à instabilidade material de seus componentes, logo se dissolvem e se reintegram à natureza. Ana enquanto uma mulher exilada desde a infância de seu país de origem demonstra uma angústia de seu não pertencimento. Os Estados Unidos não era um lar para a artista e não era possível voltar à Cuba de suas memórias. Mendieta não pertence a qualquer espaço.

O uso da terra na obra se dá por uma forte influência da Santería – religião afro-cubana a qual Mendieta foi por seus empregados apresentada durante a infância. De acordo com as narrativas e os rituais da religião, a terra é uma entidade viva de troca de poder, magia e energia. Nesse sentido, a terra é uma grande mãe que dá vida aos seus filhos. Ao olhar para ancestralidade, se encontra um feminino místico e forte.

A referência da Santería na obra de Ana Mendieta também se faz presente pelo uso do sangue e do sacrifício animal. Como no caso da obra Chicken Movie na qual a artista recria um ritual religioso. Nua, Ana sacrifica uma galinha que tem a cabeça decepada, o sangue respinga no cômodo e no corpo de Mendieta. É uma situação vulnerável para ambas, contudo quando a galinha perde suas forças o sangue que escoa pelo seu pescoço dá à artista o axé do animal. A performance traz uma força vital da natureza, apesar da presença da morte é feita em busca da vida.

 

A efemeridade, a luta pela memória e a dominação masculina: esferas do social inseridas no mundo da Arte

Assim como a obra, a vida de Ana Mendieta foi marcante e efêmera. A artista morreu aos 36 anos, no dia 8 de setembro de 1985, após despencar da janela do apartamento onde vivia com o seu marido, o escultor Carl Andre. Vizinhos testemunharam ouvir uma briga violenta do casal, até mesmo ouvir gritos de “não” por volta das 5h30min da manhã, pouco antes da morte da artista. Na ligação para emergência, Andre diz que é casado com uma artista e, também, é um artista; mas, ele era mais conhecido que ela, que ela foi ao quarto, ele foi atrás e então ela se jogou pela janela. Não há dúvidas de que houve briga, o quarto do casal estava bagunçado e Carl Andre tinha marcas de arranhão. Ele é preso e acusado posteriormente de assassinato.

A morte de Ana Mendieta gera comoção e alvoroço entre os amigos e familiares da cubana, entre comunidade artística de Nova Iorque, cidade onde o casal vivia, e grupos feministas. Apenas duas pessoas sabiam ao certo o que aconteceu naquele apartamento na madrugada e uma delas estava morta. Pessoas próximas desconfiavam da tese de suicídio, afirmando que ela estava no auge de sua carreira, não aparentava sentimentos depressivos e não pareceria um comportamento da artista se jogar seminua da janela de seu quarto de madrugada; mas isto também não era conclusivo.

O julgamento do viúvo de Mendieta foi misógino e racista. Se não havia comprovação de um suposto suicído, tampouco se poderia negar a possibilidade de assassinato. O homem branco e estadunidense tinha sua palavra contra uma artista latina que em suas obras trazia a questão da morte. Em um julgamento apenas com juiz por escolha do advogado pela ausência de um júri, por escolha do advogado do réu visando evitar mulheres que poderiam ter contato com feminismo entre juradas. A aproximação com a Santería, uso abusivo de álcool e temperamento de Ana foram suficientes para absolver Carl Andre da acusação de homicídio a partir de uma conclusão arbitrária do  suposto suicídio da artista.

O escultor minimalista após o julgamento retorna à comunidade artística e é exposto em grandes museus. A artista performática é lembrada como uma mulher problemática e suas obras não são recordadas. Em meados de 1992, durante abertura do Museu Guggenheim em Nova Iorque, há protestos que questionam a presença de Carl Andre e ausência de Ana Mendieta do acervo do museu. Cartazes de manifestantes traziam os dizeres: “Carl Andre está no Guggenheim! Onde está Ana Mendieta?”. A pergunta retórica buscava compreender o ostracismo que uma artista mulher latina sofria, em paralelo ao reconhecimento de um homem branco, mesmo esse sendo potencialmente seu assassino. A ausência de Ana Mendieta nos espaços e presença de Carl Andre ilustra uma dominação de gênero que perpassa os ambientes artísticos.

Resumir a trajetória e o legado de Mendieta se trata de uma tarefa que dificilmente conseguirá ser realizada em somente um texto. Gênero e etnia são temas que perpassam suas obras, mas não a reduzem – as performances e esculturas, assim como a artista não tinham uma fronteira. Estavam para além do espaço físico, para além das categorias, classificações e estruturas que a oprimiam. Também não se é possível lembrar de Ana apenas por sua morte trágica, que se aproxima e se afasta da arte que a cubana criou em vida. Qualquer rótulo é pequeno demais para descrever a existência de Mendieta.

 

Referências

SILVA, Isabela Tozini. Os Deslocamentos De Ana Mendieta: Rastros, Intervalos E Fronteiras. 2018. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual De Campinas Instituto De Artes, 2018.

SILVA, Isabella Rechecham da; BONILHA, Caroline Lea. Provocações De Ana Mendieta: O Corpo E A Natureza Como Objetos De Arte. Revista Seminário De História Da Arte, 2018.

WANDERLEY, Olga da Costa Lima. “Nem aqui nem lá”: rastros do feminino nas fotoperformances de Ana Mendieta. Comunicação e Sociedade,  v. 37, 2017.

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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