Isabê e o ato sensível de pintar ideias

Artista de Campo Grande falou sobre a arte ser utilizada como instrumento de luta, bem como a angústia ocasionada pela pandemia e o descaso pela natureza

Por Vitória Regina

Em entrevista realizada na primeira semana de dezembro, conversei com Isabela Abreu, ou simplesmente Isabê. Estudante do curso de graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Isabê tem conquistado e intrigado pessoas com suas pinturas. Durante a conversa, falamos sobre a arte ser utilizada como instrumento de luta, bem como a angústia ocasionada pela pandemia e o descaso pela natureza. Ademais, conversamos sobre processo criativo, os estigmas sobre a vida de quem vive de arte e os planos para o futuro.

Como ocorreu seu primeiro contato e interesse pela arte? Considerando que estamos expostas diariamente às manifestações artísticas e culturais diversas, mas nem todas nos cativam e/ou prendem a nossa atenção.

A primeira vez que eu me vi atraída pela arte como uma possibilidade de vida, a faísca mesmo, foi pelo teatro e pela música. Aos 13 anos, eu entrei em um grupo de teatro em Campo Grande (MS) chamado Grupo Casa. Foi transformador ver o ambiente cultural, toda a dinâmica do espaço e das pessoas se movimentando para que fosse possível acontecer tudo. Ali eu vi bastante arte.

Legal. Você chegou a atuar em algum momento?

Atuei sim.

O que te fez sair da atuação e partir para pintura? Aproveitando, queria saber quais são suas referências e como elas se refletem em suas obras?

Acho que foi só um caminho pras coisas acontecerem. Não sei se “saí” da atuação mesmo, acho que foi só uma complementação. Hoje eu consigo ver todas essas experiências refletidas em meus trabalhos, sejam elas do teatro, da música ou da arte visual. Aí entram as referências. Tudo serve como bagagem, em tempos em que nos é cobrado especialidade, visto uma necessidade do capitalismo, entender o ser como multifacetado e cheio de possibilidades é revolucionário. A arte é revolucionária, né?!

Concordo, na minha opinião a arte deve ser utilizada como um instrumento de luta. Falando nisso, durante as queimadas no Pantanal, você produziu uma série de quadros expressando a angústia de observar a negligência com a natureza. Como as questões sociais atravessam o que você decide produzir?

Penso ser impossível não ser atravessado. O próprio silêncio é uma resposta, seja de omissão ou de aceitação da realidade. Acreditar numa existência ativa, na arte como ação e, portanto, agente transformador é acreditar na potência do coletivo. Talvez um dos papéis do artista seja ver coisas acontecendo e trazer o olhar das pessoas para essas coisas. Sabe quando alguém tá andando na rua e vê uma cena bonita acontecendo e chama a atenção pra isso? “Olha que bonita aquela árvore”, Acho que esse é o papel do artista. É a pessoa que vê coisas acontecendo e faz as pessoas pararem um ‘tiquinho’ do tempo para ver também.

Em 2019, você participou da 14ª Bienal de Curitiba. A participação ajudou na visibilidade do seu trabalho?

Ah, foi um trabalho interessante. A visibilidade na internet é muito difícil de tangenciar, né?! A gente nunca sabe em que lugares o nosso trabalho tá chegando e nem de que forma ele chega para as pessoas. Mas a participação no evento me trouxe uma experiência muito legal, conheci muita gente interessante.

Este ano você abriu o Ateliê Refazenda. Eu queria que você contasse um pouco de como está sendo a experiência de ter o próprio ateliê e, enquanto espaço cultural, o que você pretende realizar ali.

Considero que “ateliê” mesmo é qualquer lugar que a gente destine a trabalhar e experimentar. É muito importante ter o espaço em várias esferas mas principalmente entender o tempo que o quadro ou o desenho precisam ficar “na gaveta”. Leva um tempo pra que a obra signifique algo e ter um espaço físico propicia muitas coisas que o meu quarto antes não permitia, o próprio tamanho dos trabalhos mesmo. Além disso, ter um lugar em que as pessoas podem entrar e sair, somar, criar, isso tudo é muito legal. Criação é troca e é maravilhoso ver o espaço sendo utilizado em conjunto. A princípio eu abri o espaço pensando nas aulas e oficinas de pintura, que aos poucos vão sendo retomadas, mas eu queria que fosse mesmo uma casa de cultura em que existisse um espaço expositivo para novos artistas, feirinhas, saraus. Vários planos pro ano que vem [risos].

Você tem algum ritual durante a construção de uma obra? Por exemplo, pintar em um determinado turno; ouvir determinado gênero musical, etc.

Nossa, ótima pergunta. Eu adoro ficar sozinha. Quando a pintura vira trabalho você acaba tendo que pintar sempre e de qualquer jeito, com fome sem fome, feliz triste, de dia e de noite, com música ou sem. Mas algo que se mantém é o tempo de estar sozinha.

Você costuma dar espaço entre o fim de uma pintura e o início de outra? Digo isso no sentido do “esvaziamento”, do processo criativo e das referências.

Durante o processo de criação de uma série, por exemplo, a maior parte do tempo é utilizada para estudar e pesquisar técnicas, cores e materiais que me ajudam a chegar de uma melhor forma num objetivo visual. Desse jeito fica difícil pensar em um tempo entre o fim de uma pintura e o início de outra porque todas estão de alguma forma ligadas, seja pelas nuances da temática ou até mesmo partindo da lógica que uma leva a outra, ou seja, o quadro anterior permite a existência do próximo e assim vai. O que talvez vá se apresentando é a relação das antigas pinturas com as atuais, hoje vejo “fases” e momentos visuais que passei e hoje já trabalho de uma forma diferente. Mas ainda assim, cada trabalho conversa comigo então talvez por isso mesmo todos de alguma forma conversem entre si.

Estamos vivenciando a pior pandemia dos últimos cem anos. Milhares de pessoas estão em quarentena há meses e isso inevitavelmente afeta a saúde mental. Você buscou refúgio na arte durante esse período? Como está sendo produzir em um período histórico tão peculiar?

Acho que não foi uma questão de buscar refúgio, mas sim de compreender a situação e o meu momento também. Eu fiquei quase um mês e meio sem conseguir pintar e tive que lidar com esse vazio interno. Também no meio disso passei por alguns términos e isso contribuiu para entender o ciclo das coisas. Aprendi demais com esse tempo, acredito que isso agora entra naquela “bagagem” que falei antes.

Entendi. Esses dias entrevistei o vocalista de uma banda aqui de Campo Grande e perguntei qual a dificuldade em produzir em uma cidade onde tudo que foge do sertanejo tem dificuldade em ser reconhecido. Faço a mesma pergunta a você, qual a dificuldade em viver da arte em uma cidade como a nossa?

Essa pergunta tem várias respostas. Existem dificuldades financeiras, como conseguir vender o trabalho e justamente por isso muitos artistas acabam tendo que ter outros ganhos. Isso reflete uma cultura local de não reconhecimento de trabalhos emergentes e uma hiper valorização de uma arte “paisagística” que compreende apenas a decoração de ambientes e mostra um pantanal que agrada os olhares estrangeiros. Isso tem um significado e não necessariamente é ruim, mas reflete um bocado de coisa. Existem também outras dificuldades que vão pro campo mais subjetivo, da saúde mental. Há um pré-julgamento com a existência artística que automaticamente rotula os artistas como mau pagos, deprimidos, sem relações amorosas duradouras, etc. Muito pelo contrário, viver de arte é bem mais tangível e possível do que isso. Talvez esse mesmo preconceito seja uma ferramenta para afastar as pessoas do questionamento que a arte traz e da beleza que existe em lutar pelo que se acredita.

Achei importante a colocação. Pensando no futuro, quais os planos pós-pandemia? Você pretende mudar de cidade?

Não tenho a menor ideia. Estou deixando ir [risos].

Eu entendo. Isabê, gostei da conversa. Quando for seguro sair de casa, espero poder visitar seu ateliê e admirar suas pinturas pessoalmente. Em nome da Badaró, agradeço a disponibilidade de tempo. Obrigada!

Ai, Vic, que é isso! Adorei conversar com você. Temos ótimos amigos em comum, quero te conhecer pessoalmente. Obrigada pelo convite.

Confira o trabalho da artista no Instagram

Vitória Regina

Colunista

Marxista e psicóloga em formação. Debate política, psicologia e cultura.

Compartilhe:

Relacionadas

Leave a Reply