Entre o desprezo e o fetiche: como sofre meu Nordeste

Embora o preconceito contra o Nordeste seja muitas vezes explícito, ele pode se manifestar de forma sutil: o desdém também se dá na exaltação exacerbada

Por Carolina de Mendonça
Arte por Fábio Faria
A vida aqui só é ruim,
Quando não chove no chão,
Mas se chover dá de tudo,
Fartura tem de porção.
(Último Pau-de-Arara – Fagner)

O Nordeste conta com nove estados (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia). Por sua enorme extensão e população, a região dificilmente pode ser uniformizada, mesmo de forma didática, sem que isso gere perdas grandes para a compreensão dela. Contudo, de forma frequente se resume o Nordeste em dois: a “terra miserável” e o “lugar exótico”.

A carência constantemente associada à região se dá por conta de um dos biomas presentes no território, a Caatinga (termo derivado do Tupi significa Mata Branca), região dividida em Agreste e Sertão, que é associada à seca. Apesar da aparência infrutífera da região, a Caatinga é riquíssima em biodiversidade,  contando com várias espécies de plantas xerófilas. Muitas dessas perdem as folhas em período de estiagem e, nos períodos chuvosos, se enchem em folhas e flores.

A miséria presente no Nordeste é histórica e não biológica. A região foi a primeira a sofrer com a colonização portuguesa e todas as mazelas que esta trouxe. O extrativismo predatório do Pau-Brasil na Mata Atlântica iniciou a devastação desse bioma. atualmente restam apenas 12,4% da mata nativa) e escravizou a população indígena que vivia na região. O solo de Massapé, típico do litoral nordestino, foi explorado para a agricultura de cana-de-açúcar.

O ciclo econômico da cana durou séculos e enriqueceu Portugal. No Nordeste isso se reflete com a fundação de diversas cidades. Também se iniciaram as grandes propriedades de terra pertencentes a famílias previamente escolhidas pela Coroa portuguesa. Nas cidades se esbanjava ouro nas construções em estilo barroco e rococó, como em Salvador (atualmente Bahia) e São Cristóvão (atualmente Sergipe), especialmente em lugares voltados ao catolicismo, enquanto a população originária era jogada para o interior do país e se traficavam humanos do continente africano para trabalho forçado nas plantações. O poeta barroco Gregório de Matos descreveu, em sua poesia “À Cidade Da Bahia”, a miséria e a riqueza do estado no século XVII. Em 1972, o músico Caetano Veloso cantou trechos da poesia na faixa “Triste Bahia” do álbum “Transa”. Mesmo com séculos de diferença, as antíteses da sociedade baiana permanecem.

Com tantas contradições, a região também foi palco de diversos movimentos de resistência, como Confederação dos Cariris, Quilombo dos Palmares, Cabanada, Revolta dos Malês, Balaiada e Revolução Praieira, protagonizadas principalmente por indígenas e negros que tiveram seu direito à terra, seus cultos religiosos e até mesmo a liberdade de ir e vir negados. No início da República brasileira, houve uma das mais intrigantes lutas: a  guerra na aldeia de Canudos.

Antônio Conselheiro chegou ao arraial de Canudos, no sertão da Bahia, um lugar paupérrimo em meio a latifúndio iniciou pregações contrárias ao modelo político vigente e, com promessas de libertação por meio da religião, instigou o não pagamento de impostos e a criação de uma comunidade autossustentável. O líder religioso e político deu novo nome ao local e “Arraial de Belo Monte” se tornou uma comunidade igualitária onde a população, até então miserável, passou a não sofrer com a fome. Devido a isto, Antônio Conselheiro tornou-se inimigo dos latifundiários locais e da República, o que fez eclodir uma guerra.

A Guerra de Canudos foi sangrenta. O Exército brasileiro foi enviado para exterminar o arraial. Contudo, a população de Canudos resistiu bravamente a três de quatro expedições enviadas pelo governo. Só na última, com contingente reforçado, foi que as Forças Armadas republicanas conseguiram cumprir o genocídio encomendado. 

O jornalista fluminense Euclides da Cunha, enviado para realizar a cobertura do conflito, narra em seu livro “Os Sertões” (1902) a terra, o homem e a luta. O escritor afirma que, por conta do ambiente vivido, “o sertanejo é antes de tudo um forte”. É inegável a força da população do interior nordestino, mas esta vem como forma a sobreviver às injustiças sociais que massacram cotidianamente esse povo.

O lugar onde houve o conflito foi inundado durante a ditadura militar, reprimindo uma memória coletiva de luta por dignidade. Ironicamente, um povo que morreu, dentre as problemáticas, de sede, tem sua história afogada. Sede ainda é um grande problema na região,que tem os piores índices de abastecimento de água do Brasil. A miséria é um projeto político. Durante a pandemia foi votado um projeto que privatiza a água no território nacional, o que piorará a situação dos que já têm esse direito básico negado.

Em consequência dessas negligências, o Nordeste tem um histórico de emigrações alto. A população sertaneja foi proletária nas primeiras indústrias no Sudeste, participou do extrativismo de látex no Norte, construiu Brasília no Centro-Oeste e foi negada ao direito de viver na cidade. A população que fugiu da miséria encontrou no subemprego uma forma de sobreviver em um lugar ao qual não pertencia, por muitas vezes sem familiares.

De tão cotidiana, a emigração é comum na arte produzida pela população do Nordeste. A escritora ucraniana naturalizada como pernambucana Clarice Lispector conta, em “A Hora da Estrela” (1977), a história de uma alagoana que vive no Rio de Janeiro. O músico Luiz Gonzaga tem diversas composições sobre o tema, como a música “Asa Branca” (1947). O diretor Marcelo Gomes em “Cinema, Aspirinas e Urubus” conta a história de dois homens que fogem dos horrores de sua terra, do nazismo e da seca.

O desprezo para com a região foi amenizado apenas durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 – 2010), o qual assinou projetos como o Bolsa Família, que garante distribuição de renda. Atualmente, em seis estados da região, o número de beneficiários do programa supera o de trabalhadores formais. A necessidade de programas assistenciais gera constantes ataques xenofóbicos para com a região, especialmente em épocas de eleições presidenciais, nas quais o Nordeste costuma ter predomínio de votos nos candidatos petistas.

No acirrado segundo turno da última eleição presidencial, o candidato do PSL levou a melhor, porém não ganhou em nenhum dos nove estados nordestinos. Isso gerou um mito do “Nordeste Antifascista” reforçado pelas alas mais liberais de esquerda. A negação do discurso fascista pela região, no entanto, não se dá por uma organização política forte: muito mais intensa acaba por ser a proximidade com os horrores da necropolítica, que utiliza de fatores como a própria água como moeda de troca para votos e favores políticos.

“Ai, como sofre o meu Nordeste!”, frase que dá título a este texto, está presente no filme “Tocaia no Asfalto” (1962) do baiano Roberto Pires. O cineasta em questão, apesar de grande qualidade e importância na história do cinema brasileiro, costuma ser pouco lembrado em meios acadêmicos, ofuscado pelo movimento cinema-novista liderado por Glauber Rocha.

O grupo de cineastas que formou o chamado “Cinema Novo” seguia a ideologia comunista e pretendia mostrar um Brasil mais próximo à realidade, em todas suas mazelas. Apesar da produção concentrada no Rio de Janeiro, o Nordeste se tornou um importante plano de fundo para alguns célebres filmes do grupo. Seja pelo paulista Nelson Pereira dos Santos, que levou a memorável obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, ao cinema em 1963, ou pelo baiano Glauber Rocha que em seu primeiro longa-metragem, “Barravento”, mostra a relação de exploração do trabalho de pescadores alienados pela religiosidade. 

No cinema, o Nordeste passou a ser representado de forma mais efetiva para além da miséria apenas a partir da Retomada, que se iniciou em 1995. A produção audiovisual brasileira passou a sair do eixo sudestino e adentrar  em outros pontos do Brasil. No Nordeste, o cinema passou a narrar novas histórias, para além do povo sofrido e oprimido. 

As narrativas se diversificaram desde então. Por exemplo, “Baile Perfumado” (Lírio Ferreira e Pedro Caldas, 1997) traz uma história peculiar do bando do cangaceiro Lampião; “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (Karim Aïnouze e Marcelo Gomes, 2009) é narrada por um geógrafo do litoral que desbrava a Caatinga  e se percebe mais próximo que imaginava daquela população; ou a investigação policial da morte de uma turista estrangeira durante o carnaval recifense “em Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019). Todas narrativas são recortes. Felizmente, há mais histórias que falam da região sem um olhar estrangeiro – mesmo dentro do mesmo país.

Apesar de os estados formarem uma mesma região, não há unidades claras no Nordeste. O sotaque nordestino, por exemplo, não existe. Nem ao menos existe um sotaque pernambucano, baiano ou até mesmo sergipano (menor estado da região e do Brasil). O surgimento do sotaque se dá por uma interação complexa de diferentes culturas e línguas, em espaços e tempos específicos. 

Os sotaques da região são constantes alvos de chacota e exaltação. Foi o caso do filme “Bacurau” (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) alvo de piadas por ter versão legendada, além de diversos relatos de sessões nas regiões Sul e Sudeste em que houve risadas por conta da maneira de falar dos personagens. O desdém também se dá na exaltação exacerbada. Muitas vezes, enaltece-se tanto o sotaque, que se menospreza o discurso do interlocutor. Mesmo o aparente elogio pode ser uma forma de xenofobia. 

Entre sagrado e profano, tradicional e moderno, segregado e público, a região se destaca nas festas populares. Carnaval, bumba-meu-boi e festejos juninos são algumas das festas com maior destaque. Além dessas, mantêm-se vivas tradições como Bacamarteiros, Reisados, Maracatu (atômicos ou não), romarias católicas, festas para Iemanjá. E mesmo entre o que se repete em diferentes localidades, há sempre peculiaridades.

O Nordeste é quase impossível de se generalizar. A região não é só praia, tampouco só sertão. Temos a Mata Atlântica, as restingas e os manguezais, a Caatinga (que inclui o agreste e o sertão), Cerrado, Floresta Equatorial Amazônica. 

Em cada um desses espaços também houve suas diferentes formas de economia. Apesar de grande destaque histórico à exploração de cana-de-açúcar (regiões com solo Massapé), a região também teve marcos na pecuária (sertão, em destaque o do Piauí), produção de cacau (Bahia) e extrativismo coco babaçu (Maranhão) como exemplos. Práticas econômicas que modificam, além das relações, também a cultura como inserção de componentes culinários, a exemplo da cachaça da cana-de-açúcar, ou vestuários, como chapéu feito de couro.

Uma complexa história, em um gigante território, o Nordeste tem suas belezas e suas carências. É preciso um olhar que não fetichize ou despreze a região, compreendendo a profundidade de sua heterogeneidade.

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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