Linda é a luta

Educadora, mulher trans e vereadora mais votada de Aracaju, Linda Brasil conversou com a Badaró sobre sua trajetória, militância política e a situação das pessoas LGBTQIA+ no Brasil

Por Carolina de Mendonça e Norberto Liberator
Ilustrações por Marina Duarte

Naquele primeiro semestre de 2013, o debate sobre questões de gênero e minorias sexuais, que até então engatinhava no Brasil, começava a dar seus primeiros passos de pé. Corria o terceiro ano do mandato da primeira mulher eleita presidenta do Brasil. A petista Dilma Rousseff saíra vitoriosa, em 2010, a despeito de campanhas de fake news que a relacionavam a um suposto “lobby gay”, o qual teria como ponta de lança um tal “kit gay” que, segundo os acusadores, levaria crianças a “se tornarem” homossexuais.

A campanha do tucano José Serra, no segundo turno daquela eleição, acenou aos setores mais reacionários da sociedade e incluiu, em seu horário eleitoral, uma fala do pastor Silas Malafaia, que à época se destacava como um ferrenho opositor dos direitos LGBTQIA+. Viralizavam, no Orkut e em caixas de e-mail, conteúdos que acusavam Dilma Rousseff, o PT e o então deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) de trabalhar em prol da “destruição da família tradicional”. 

Para acalmar o eleitorado conservador, sobretudo evangélico, Dilma buscou — e recebeu — apoio de figuras como o pastor e então deputado federal Robson Rodovalho, líder da Igreja Sara Nossa Terra; do então senador Magno Malta, pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (mesma denominação de Malafaia); e de representantes da Igreja Universal do Reino de Deus, como o bispo Edir Macedo e o então senador Marcelo Crivella. 

A então candidata se comprometeu em defender os tais “valores cristãos” e abriu mão de pautas como a legalização do aborto. No governo, em 2011, criticou o conteúdo do kit anti-homofobia, material didático sobre preconceito contra pessoas LGBTQIA+, apelidado de “kit gay” até mesmo por meios “sérios” como a revista Veja, e que não chegou a circular. Em 2012, a presidenta deu a Crivella o Ministério da Pesca. Já em 2013, devido a um conchavo governista com setores evangélicos reacionários, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados foi parar na chefia do pastor Marco Feliciano (PSC-SP), conhecido por declarações LGBTfóbicas, como a de que a Aids seria uma “doença gay”.

Nesse momento, a Universidade Federal de Sergipe (UFS) certamente não era a única hostil à presença de pessoas transgênero, ainda que as instituições de ensino superior públicas estivessem entre os poucos espaços onde os direitos desta população eram razoavelmente debatidos. No curso de Letras — Português/Francês, uma caloura teve seu nome social barrado. Para todos os fins oficiais, Linda Brasil de Azevedo Santos não existia. O que constaria nos registros seria seu nome morto, ou seja, a denominação masculina com a qual fora registrada ao nascer.

“A única forma que eu tinha para usar meu nome social era em cada semestre falar com os professores para eles colocarem de lápis [na chamada]. Uma média de sete, oito professores por semestre, mas como era muito importante, para mim, cursar o nível superior, eu acabei topando”, afirma Linda à Badaró. A acadêmica não desistiu, conseguiu utilizar o nome social em seu cadastro e, de quebra, fez a universidade mudar sua norma interna.

“O terceiro professor, quando eu fui conversar sobre o nome social, não estava preparado para lidar com essa situação e falou bem alto: ‘como é que eu vou usar seu nome se seu nome é esse aqui? Se vire, vá lá no departamento de letras e no DAA [Departamento de Administração Acadêmica] e veja lá com eles, não é comigo não’. Ele falou bem alto o meu nome de registro, uma coisa que me constrangeu muito”, conta. Linda recorreu a um processo administrativo na universidade e relatou o ocorrido em uma rede social.

Sua publicação viralizou e recebeu apoio de pessoas e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Ministério Público de Sergipe (MP-SE). O processo interno se tornou a portaria nº 2209, que regulamenta o uso de nome social de pessoas transexuais e travestis. Linda Brasil se tornou também a primeira mulher trans a se formar pela UFS.

Devido a sua militância, Linda foi convidada a se filiar ao PSOL. “Comecei a me envolver no Movimento Estudantil, conheci algumas meninas que militam no Coletivo de Mulheres de Aracaju, a gente começou a organizar vários atos. Nesses atos, eu comecei a pensar uma nova forma de fazer política”. Ela explica que, até então, tinha ojeriza à política partidária. “Sou de Santa Rosa de Lima,  berço do coronelismo e de indicação, de quem vem desses conchavos políticos. Mas vendo ações dessas meninas do coletivo, da mulherada fazendo ato nas ruas, denunciando esse sistema opressor, comecei a repensar a possibilidade”. 

Linda Brasil foi uma das criadoras do coletivo AmoSerTrans, ONG que promove educação sobre transexualidade e travestilidade. Em 2018, ajudou a criar a CasAmor, espaço de acolhimento e profissionalização a pessoas LGBT em situação de vulnerabilidade, que também funciona como centro cultural com realização de bazares, shows e eventos de cunho científico/informativo. 

A CasAmor surgiu em 2017, motivada, nas palavras de Linda, “por outras iniciativas no Brasil como a Casa1 em São Paulo e a Casa Nem no Rio de Janeiro”. Ela nos explicou a importância de um espaço dedicado não apenas ao acolhimento, mas à produção cultural. “Sempre tive vontade de fazer um local que não só acolhesse as pessoas e ajudasse em questões, principalmente quando vivem em situação de rua, de vulnerabilidade social, mas também que envolvesse a parte artística. A arte LGBT é uma arte  muito forte, é uma forma que nós da comunidade tentamos extravasar todo esse sofrimento, superar nossas dificuldades”.

A parlamentar eleita contou também que o objetivo inicial era diferente, mas que a iniciativa foi naturalmente tomando a forma atual. “Em 2017, eu tinha uma casa no Inácio (Barbosa, bairro da zona sul de Aracaju) e pensei em fazer algo lá, mas não sabia como. Um amigo meu que é advogado, Jean, viu um edital da Justiça criminal. Inicialmente, fizemos um projeto para fazer um mapeamento da população carcerária no estado de Sergipe. Acabamos não ganhando o edital. Mesmo assim, várias pessoas começaram a participar das reuniões”.

O projeto busca não ser uma ONG assistencialista, mas sim uma organização que “potencializa talentos”, nos contou Linda. “A casa começou dando uma visibilidade muito grande nesse sentido, a gente fez uma adequação na casa para poder fazer os atendimentos. No dia 29 de janeiro de 2018, fundamos a casa com alguns  serviços, como atendimento psicossocial, atendimento jurídico, no intuito também não só de acolhimento, moradia, mas de potencializar oportunidades a essas pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social”.

A casa, que possui uma média de 50 assistidos mensais, tem realizado campanhas de arrecadação para distribuir cestas básicas e kits de higiene pessoal, já que a população LGBT, por viver em grande parte da informalidade, foi uma das mais afetadas pelo surto de Covid-19. “Devido à pandemia, algumas de nossas atividades como mutirão de retificação de nome, oficinas de culinária, artesanatos, rodas de conversas, vivências momentos de compartilhamento de experiências que ajudam na autoestima das outras pessoas não puderam ocorrer”.

A CasAmor possui ligação com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) de Sergipe, especialmente com a Ocupação Beatriz Nascimento, em Aracaju, cujo nome é uma homenagem à professora, historiadora, poeta e militante negra morta em 1995. “A luta não é construída só por LGBTs, mas por pessoas cis e/ou heterossexuais. A parceria com o MTST se deu que desde o início da ocupação da Beatriz Nascimento existia uma rua na ocupação que a maioria dos moradores eram pessoas LGBTQIA+, e a maioria era de mulheres (lésbicas, trans). Isso fez com que estreitássemos a nossa ligação”, afirma Linda. 

De acordo com a vereadora eleita, a maior parte das pessoas atendidas pela CasAmor vive na ocupação sem-teto. “A grande maioria dos nossos assistidos, das nossas assistidas estão lá na ocupação, porque ali já acaba sendo um empoderamento dessas pessoas em relação à luta por uma moradia e uma denúncia, dentro da Prefeitura, em relação ao descaso com a população que não tem teto para morar. É de suma importância essa nossa ligação com o MTST, principalmente com a ocupação Beatriz Nascimento”.

A vereadora mais votada

Em 2016, Linda candidatou-se pela primeira vez ao cargo de vereadora em Aracaju. Naquela ocasião, não se elegeu, ficando na suplência. Quatro anos depois, foi eleita com a maior votação da cidade: 5.773 votos. Outra capital também teve uma mulher trans como candidata mais votada para a Câmara local. Em Belo Horizonte, Duda Salabert (PDT) foi escolhida por 37.313 eleitores. Junto a Linda e a Duda, mais 23 outras pessoas transexuais ou travestis foram escolhidas para ocupar vereanças pelo Brasil.

Sobre a campanha, que classifica como “muito, muito linda” e que se destacou pela forte presença nas redes sociais, a futura vereadora destaca a importância do trabalho de base. “Muitas pessoas estavam desacreditadas na política, diziam: ‘políticos são todos iguais’. Eu dizia: ‘todos iguais? Imagine uma travesti numa Câmara Municipal. Você acha que são todos iguais?’. Com isso, as pessoas desarmaram-se e começaram a dialogar, perguntar sobre meu projeto”. 

Ela também considera um diferencial a forma como dialogou com os eleitores, prezando as propostas e não o pedido por votos, além do trabalho contínuo nas redes sociais. “Desde o início, a gente não fez com intuito de conseguir voto. Apresentamos nossas propostas para que as pessoas vissem, analisassem e votassem conscientes. Então, além das redes sociais, o fato de conversarmos com as pessoas foi determinante para que a gente tivesse esse sucesso, não sendo só a primeira trans eleita, mas a pessoa mais votada, e a mulher mais bem votada para vereadora na história da política de Aracaju”.

Linda, que é entusiasta da arte, dedicou boa parte de sua campanha a fortalecer a conexão artística. Para isso, convidou a cantora Isis Broken, também uma mulher trans. “Com certeza, nossa forma de fazer campanha com muito amor, com muito brilho, com muita verdade, fez o diferencial. A música foi realizada por Isis Broken com uma pegada diferenciada, que falou de transformar, de educar. Teve um impacto positivo, o resultado tão simbólico e histórico para a política. Não usar a arte só para eleição, mas trazer a arte para o processo de construção da campanha, isso foi fundamental e eu acho que vai ser um novo ciclo de campanha e consequentemente de eleições aí para os cargos legislativos e executivos no Brasil inteiro”.

O país que mais mata

Quando Linda decidiu que iria lutar pelo seu reconhecimento como mulher na universidade e que não desistiria do curso, não estava em uma batalha pessoal. A marginalização da população T é um problema estrutural que necessita de exemplos de enfrentamento, que possam servir de inspiração. Ela nos explica que “o Brasil é o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo. No caso das pessoas trans, de acordo com a Antra [Associação Nacional de Transsexuais e Travestis], corresponde a 52% dos assassinatos no mundo. A expectativa de vida da população trans e travesti é de 35 anos no Brasil. E 90% das mulheres trans e travestis estão compulsoriamente na prostituição. Então são dados muito alarmantes em todo o Brasil que também reflete uma violência muito grande”. 

Além da violência explícita em casos de xingamento, estupro, espancamento e assassinato, a educadora lembra que as agressões também são “muitas vezes institucionais, como o que acontece nas salas de aula. Os professores, os gestores não estão preparados para lidar com a diversidade,  para respeitar o nome social, a identidade de gênero”.

Linda destaca, ainda, que a humilhação diária e o constrangimento público levam a população T à evasão escolar e à prostituição. “A questão do uso do banheiro, ainda é um problema para muitas pessoas trans, que acabam evadindo desses espaços. E consequentemente abandonando a educação. Muitos são expulsos do meio familiar. E isso faz [com] que a gente esteja compulsoriamente, a grande maioria, na prostituição. É preciso não só inclusão, mas a permanência dessas pessoas nos espaços escolares”. 

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

MARINA DUARTE

produtora-executiva

Ilustradora, acadêmica de psicopedagogia, estudou jornalismo. Militante feminista interessada na profunda transformação social.

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