Adiós, compañero, adiós

Morte do cartunista argentino Quino é o adeus de um símbolo dos quadrinhos latinoamericanos, cuja trajetória foi marcada pela militância política

O dia 30 de setembro de 2020 começou com uma notícia devastadora aos apreciadores dos quadrinhos ou para os que acreditam na arte como forma de se buscar um mundo melhor. Joaquín Lavado Tejón, o Quino, morreu aos 88 anos de idade por consequência de um acidente vascular-cerebral (AVC), ocorrido na semana passada.

O argentino de Mendoza ficou mundialmente famoso pela personagem Mafalda, uma menina curiosa e com senso crítico aguçado, inspirada na avó do autor, uma espanhola “comunista, muito simpática e com grande senso de humor”. As tirinhas com a personagem são as mais vendidas da história da América Latina e formam a obra em língua espanhola mais traduzida no mundo, com sua primeira aparição em 29 de setembro de 1964.

A militância política esteve presente na vida de Quino desde pequeno. O cartunista era filho de espanhóis e escutava, em casa, comentários sobre a guerra civil que varreu o país de 1936 a 1939, e que terminou com a vitória do general fascista Francisco Franco – o qual governaria a Espanha até 1975. A estreia da Mafalda foi publicada quase dois anos antes do golpe militar liderado por Juan Carlos Onganía, que estabeleceria uma ditadura de direita na Argentina; e já durante a gestão do ditador Humberto Castello Branco no vizinho Brasil.

Apesar de sua convicção, o artista também teve seus momentos de relutância. “Depois de 1973, com o golpe no Chile, parei de desenhar a Mafalda por causa da situação na América Latina. Ela ficou muito ensanguentada. A menina não parava de falar sobre o que estava acontecendo. E se eu falasse sobre o que estava acontecendo, eu teria que deixar a Argentina. Não me deixariam ou teriam atirado em mim”, declarou sobre a “aposentadoria” da personagem.

Com o passar do tempo e com a piora da situação política argentina, culminando com o novo golpe que, em 1976, estabeleceu um regime ainda mais repressor e sanguinário sob o comando do general Rafael Videla, os temores de Quino se comprovaram. Seu colega Héctor Oesterheld, criador dos personagens Mort Cinder e Eternauta, considerado por muitos o maior roteirista de quadrinhos de todos os tempos, desapareceu junto à esposa e às quatro filhas em 1977. 

Seus corpos nunca foram encontrados. Somaram-se ao que Videla, cinicamente, chamaria de “nem vivos, nem mortos”. Afinal, “desaparecidos são desaparecidos”, segundo o ditador. Naquele mesmo ano, foi criada a Associação das Avós da Praça de Maio, movimento de mulheres que tiveram seus filhos mortos e netos roubados pela ditadura militar argentina. De cerca de 500 bebês, 130 (já adultos) foram reencontrados pelas famílias biológicas e as buscas continuam.

As ditaduras de extrema-direita da América do Sul passaram, Mafalda ficou. A popularidade da garotinha é tão grande que, em 2005, foi criada a Praça Mafalda, em Buenos Aires, onde há estátuas, murais, quadros, jogos e quadrinhos. Foi o primeiro espaço turístico infantil da cidade. A personagem se tornou, ao redor do mundo, um sinônimo de Argentina, como os dribles e gols de Maradona, ou como o tango de Carlos Gardel. Dentro de seu país, a popularidade só é comparável à do Eternauta. A Videla, que morreu na prisão por seus crimes contra a humanidade, sobrou a lata de lixo da história. Quino venceu. Oesterheld venceu. As avós da Praça de Maio venceram.

O artista deixa o mundo num momento de poucas perspectivas e de muita angústia, em meio a uma pandemia global e ao recrudescimento do populismo de direita. Por outro lado, a Argentina vive a retomada da hegemonia de esquerda, sob o governo de Alberto Fernández. Ironicamente, é ele quem pretende concretizar um dos últimos objetivos de Quino: em 2018, o quadrinista entrou na Justiça para impedir que movimentos contrários à legalização do aborto usassem a Mafalda como símbolo. 

“Não as autorizei, não refletem minha posição e peço que sejam removidas. Sempre acompanhei as causas dos direitos humanos em geral, e a dos direitos humanos das mulheres em particular, a quem desejo sucesso em suas reivindicações”, declarou Quino em um comunicado, à época, no qual negava a autoria de tiras cujo conteúdo, com a personagem, era contrário ao direito de mulheres abortarem. Caso o projeto de Fernández seja aprovado, será mais uma vitória de Mafalda, que sempre representou a luta pela liberdade.

A Badaró, que tem em Quino uma de suas principais inspirações, presta suas condolências aos familiares, amigos e fãs. Relembramos a frase de Henfil, outro grande cartunista, militante político e representante da imprensa alternativa na América Latina: “morro, mas meu desenho fica”. Como toda obra transcende o autor, a mensagem de Quino continua viva. E continuará, enquanto houver quem sonhe com um mundo mais justo, onde a arte prevaleça sobre a estupidez.

Revista Badaró

Jornalismo em quadrinhos e outras narrativas híbridas.

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