As ciências humanas em questão

Por Weiny Freitas

Desde que surgiram, na segunda metade do Séc. XIX, as ciências humanas sempre estiveram submetidas às mais severas e diversas críticas. Na verdade, lá se vai mais de um século de existência e ainda nos dias de hoje as ciências humanas são objetos das mais variadas polêmicas: políticas, científicas, religiosas, filosóficas etc. Embora tenham se desenvolvido enormemente no Séc. XX – basta ver os significativos avanços nos campos da história, da psicologia, do estudos sociais e políticos, da linguagem, da cultura, da antropologia, da filosofia, entre outros –, e tenham modificado de forma radicalmente concreta e profunda o modo como hoje enxergamos a nós mesmos e o mundo, ainda assim, o olhar que paira sobre as ciências humanas é o velho olhar, quase totalmente moralizante, da desconfiança epistemológica presente desde a sua origem.

Nesse sentido, nenhum dos absurdos que hoje se ouve com tanta frequência no Brasil acerca das ciências humanas – de que são “improdutivas” “doutrinadoras”, “esquerdistas”, “comunistas”, outros “istas” – são novidades! Nem é preciso estudar muito, com pouco estudo já é possível saber que esse tipo de ataque às ciências humanas, além de ser o “arroz com feijão” de sua história, dizem muito menos a respeito delas que à certa mentalidade política medíocre que de tempos em tempos assola a história.

Com efeito, o que a breve história das ciências humanas mostra é que, apesar de sua evidente e decisiva importância para os vários processos de transformação pelos quais passamos no último século, elas, as ciências humanas, nem mesmo em seus momentos de maior prestígio social – Belle époque, na Europa do fim do Séc. XIX, início do Séc. XX, Modernismo, no Brasil, a partir da década de vinte, Estruturalismo dos anos sessenta –, jamais gozaram de qualquer espécie de unanimidade, estabilidade ou “conforto” epistemológicos, sempre estiveram na guilhotina do conhecimento científico, sempre foram, enfim, o “patinho feio” na família das ciências.

Quem de nós não conhece a primeira e talvez ainda a mais difundida crítica às ciências humanas: a de que o conhecimento por elas produzido não é confiável por não ser verdadeiramente científico? Quem nunca ouviu sobre o problema da incapacidade das ciências humanas de produzir conhecimento rigoroso em razão do aspecto subjetivo ou altamente interpretativo de seu método? Todas essas questões e outras ainda mais críticas acompanham as ciências humanas desde o seu surgimento até os dias de hoje.

Não que as próprias ciências humanas não as tenham respondido, vide o robusto desenvolvimento na segunda metade do Séc. XX do campo de pesquisa ou disciplina chamada “Epistemologia das ciências humanas”. Todavia, se há inclusive um campo de estudos e pesquisas acerca dos problemas e desafios específicos das ciências humanas, o que explica afinal a permanência tão viva de questões tão antigas sobre o estatuto epistemológico dessas ciências? Por que a desconfiança epistemológica em relação às ciências humanas é ainda tão marcante em nossos dias?

Resposta 1: Porque as ciências humanas, diferentemente talvez das outras ciências, jamais constituíram uma Mathesis universalis, isto é, um método único e geral capaz de explicar a totalidade dos fenômenos humanos. Ou seja, no caso específico das ciências humanas, não há “Método”, há “métodos” e é justamente essa diversidade metodológica que explica, ao menos em parte, a insistente permanência da interrogação por seu estatuto científico, já que esse estatuto, seja no fim do Séc. XIX, seja hoje, permanece sempre refém da diversidade de métodos por meio da qual as ciências humanas se constituem.

Resposta 2: A desconfiança epistemológica em relação às ciências humanas ainda é marcante em nossos dias porque ainda em nossos dias somos completamente mal informados, quase analfabetos, em relação ao que de fato é a ciência em geral. Nutrimos em nosso imaginário social a simples ideia de que a ciência produz conhecimento verdadeiro porque o conhecimento por ela produzido seria inteiramente exato – não é à toa que chamamos de “exatas” as ciências que não são “humanas”! –. Ora, nem mesmo os cientistas defendem mais essa concepção! Se no Séc. XIX, amparado por uma longa tradição de pensamento sobre o tema, o positivismo defendia ideia semelhante, é preciso ter em mente que também a teoria da ciência se desenvolve, se aprimora. Nenhuma filosofia da ciência, especialmente depois da segunda metade do Séc. XX, advogará a favor da ideia de que a verdade produzida pela ciência tem relação com a exatidão do conhecimento aí alcançado.

Método e ciência são, portanto, os dois termos sobre os quais deveríamos nos concentrar para melhor compreendermos, não só por que as ciências humanas estão, desde as suas origens sempre sendo postas em questão, mas também, e principalmente, qual a verdadeira questão das ciências humanas.

Para fins de uma discussão pública sobre esse tema, a Revista Badaró, generosamente, abriu espaço para esta série – As ciências humanas em questão – por meio da qual, mediante a publicação de três artigos, um a cada semana, a começar por esta semana e por este artigo, refletiremos sobre a situação geral das ciências humanas, bem como sobre as noções de método/objeto e de ciência/ideologia.

Hoje estamos refletindo sobre a situação geral das ciências humanas, respectivamente na próxima semana e na seguinte, André de Almeida apresentará uma reflexão acerca do objeto das ciências humanas segundo Michel Foucault (1926-1984), momento em que também a questão do método poderá ser pensada. Mateus do Prado refletirá sobre a ciência e sua relação com o tema da ideologia, seguindo de perto a análise de Paul Ricoeur (1913-2005). Dois trabalhos cuidadosamente supervisionados que resultaram da disciplina “Epistemologia das ciências sociais”, por mim ofertada neste semestre para o curso de Ciências Sociais da UFMS.

O curso tratou do problema epistemológico das ciências sociais no contexto bem mais amplo, significativo e urgente das ciências humanas em geral. De algum modo, as reflexões realizadas na disciplina significaram não apenas o aprofundamento de uma linha de pesquisa, a qual desenvolvo há alguns anos, mas também uma espécie de continuação de certas iniciativas e ideias que, junto a vários colegas e estudantes, tiveram curso no fim do ano de 2018 e durante os anos de 2019 e 2020: a iniciativa da criação de um Coletivo de filosofia e ciências humanas, uma organização local que pudesse reunir estudantes, pesquisadores e profissionais das várias disciplinas das ciências humanas em geral, em prol do aprofundamento de estudos, promoção das disciplinas e defesa do profissional da área; a ideia do Projeto Ágora, um projeto de popularização das ciências humanas, por meio da realização de aulas públicas, visitas a escolas e bairros com apresentação de cine debates e outras atividades culturais ; e, finalmente, o surgimento neste ano, em meio à pandemia da Covid-19, do Conjectura, um canal de lives, por meio do qual realizamos entrevistas e debates com pesquisadores das ciências humanas, difundindo, promovendo e defendendo as pesquisas da área diante da opinião pública.

Tudo isso, mais esta série de artigos, aqui na Badaró, representa todo o nosso empenho em abrir e manter aberto uma via diálogo direto com a cultura popular e não acadêmica contra a nefasta onda de populismo filosófico e anticientificista que infelizmente tem dominado grande parte da opinião pública geral.

Fruto de generalizada incompreensão cultural, reforçada pela mais alta e repulsiva ignorância ideológica de certos discursos e políticas oficiais do governo atual, a importância das ciências humanas tem sido não apenas frequentemente questionada, mas violentamente atacada: 1) profissionais das ciências humanas, em geral professores – mas, não exclusivamente! –, se veem publicamente humilhados na realização diária de seu já árduo ofício, sob a acusação depreciativa de serem “ideólogos”, 2) a transmissão das ciências humanas é constantemente ameaçada por políticas públicas educacionais que, em todos os níveis de ensino, sob os pseudoconceitos de “inovação”, “empreendedorismo” e outras artificialidades conceituais, estabelecem leis que restringem cada vez mais seu espaço curricular nas Escolas e Universidades, 3) a opinião pública, parte mal esclarecida, parte mal intencionada, pouco se preocupa em pautar e refletir criticamente o tema; enfim, o resultado mais concreto disso: censura em Bienais de livros, autoritarismo do poder estatal, que ordena recolher da lista escolar clássicos da literatura, considerados “conteúdo inadequado!”, cortes de recursos para as pesquisas da área, subfinanciamento de programas de pós-graduação e de iniciação científica; em uma palavra, obscurantismo generalizado: criacionismo, terraplanismo, outros “ismos”.

Diante de tal quadro, o que fazer? Penso que as ciências humanas, os pesquisadores, profissionais ou simplesmente os amantes da área, têm no momento três tarefas principais: 1) a tarefa epistemológica: é preciso fazer a lição de casa e estudar mais, investigar, pesquisar, confrontar com maior rigor metodológico os temas e problemas das ciências humanas, é preciso pautá-las cientificamente como campo de produção de conhecimento; 2) a tarefa cultural: é urgente difundir, promover, inserir no debate público os resultados dos mais diversos trabalhos e produções das ciências humanas. É preciso tomar as ruas, os bairros, os museus e os bares com saraus culturais, literários, com cafés filosóficos, oficinas de arte; é preciso estar presente na grande e pequena mídia com artigos de opinião, lives, produção de conteúdo digital; é preciso exercitar a prática crítica de “debater o bom debate” de ideias e dançar a boa música da argumentação racional; e, 3) a tarefa política: claro que as ciências humanas tem uma tarefa política, mas não somente a de construir e operar a grande crítica social, é preciso também realizar a pequena política, aquela de proteção das carreiras dos profissionais da área (professores, pesquisadores, artistas etc.), de construção e estímulo de políticas públicas culturais locais, de políticas educacionais que garantam a possibilidade de sua transmissão às gerações futuras, enfim, a realização de um trabalho de política que defenda, mantenha e atraia sujeitos para os vários campos de atuação da área.

A urgência da realização dessas três tarefas é seguramente um indicativo da necessidade de uma ampla, rigorosa e aprofundada discussão acerca do valor – aspecto moral –, e da validade – aspecto epistemológico –, das ciências humanas: qual a sua importância crítica para a constituição do nosso corpus social/cultural? Quais leis/regras lógicas operam sobre seu funcionamento? Quais critérios epistemológicos elas devem respeitar a fim de salvaguardar seu caráter propriamente científico face ao risco ideológico?

Eis aí todo um programa de estudo e de ação que deve ser levado adiante para que possamos estabelecer uma crítica aprofundada acerca das virtudes, dos problemas e dos desafios epistemológicos, culturais e políticos que as ciências humanas comportam e aos quais devem hoje responder.

Weiny Freitas

Colunista

Professor de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas.

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