Contrastes urbanos no cinema de Neville D’Almeida

Por Igor Nolasco

“— Aqui, ó, na Grécia antiga eles cortavam as línguas dos escravos. Os gregos é que eram sábios!

— Era no Egito, ô…

— Como é que é?

— Era no Egito que eles cortavam. Onde é que você aprendeu isso, no camarote de alguma exposição agropecuária?”

Diálogo do filme “A Frente Fria que a Chuva Traz” (2016).

Neville D’Almeida talvez seja um dos cineastas que mais se debruçou sobre o Rio de Janeiro enquanto ambientação para seus filmes. Desde seu primeiro longa, “Jardim de Guerra” (1968) — censurado pela ditadura militar e nunca exibido comercialmente, como tantos na carreira do diretor — até seu mais recente, “A Frente Fria que a Chuva Traz” (2016), D’Almeida sempre pareceu encontrar nas terras cariocas o pano de fundo ideal para os temas que procurava desenvolver. Não por acaso, uma de suas realizações mais conhecidas até hoje leva o nome da cidade em seu título: “Rio Babilônia” (1984).

Apesar de tudo isso, seria reducionista colocar o cinema de Neville D’Almeida como um cinema essencialmente carioca. D’Almeida explora o Rio de Janeiro como uma maquete do mundo, como se tivesse acabado de desembarcar no aeroporto Galeão de manhã cedo e estivesse desbravando cada esquina, cada viela da cidade, com um olhar animado porém aguçado, entusiasmado porém crítico. O cineasta se utiliza do espaço do Rio de Janeiro para explorar questões universais, e talvez uma das questões que apareça de forma mais recorrente ao longo de seus filmes seja uma apresentação de forma crua dos contrastes urbanos cariocas, de pensar o Rio de Janeiro como uma cidade onde classes sociais muitas vezes dissidentes compartilham o mesmo espaço, se cruzam, se reconhecem, se engalfinham, se combatem.

Tudo isso é materializado, de forma mais clara, em “Rio Babilônia”. O filme abre com tomadas aéreas paradisíacas da cidade, mas logo desce para o Galeão para acompanhar a chegada de Mr. Gold, empresário que está sendo acusado pela imprensa de ser um traficante internacional de ouro. A beleza natural do Rio de Janeiro é logo contrastada com a corrupção profundamente enraizada em sua terra.

Marciano, homem de negócios que é o protagonista de “Rio Babilônia”, transita entre os estratos sociais da cidade. De início, é contatado pela agência de viagens para a qual trabalha para se tornar acompanhante de Mr. Gold e reapresentá-lo ao Rio de Janeiro. Conhece os escritórios opulentos na Zona Sul da cidade onde os destinos de negócios milionários são selados, para além das orgias dionisíacas povoadas por políticos e demais figuras da alta sociedade. Posteriormente, ainda entre os mais ricos, chega até mesmo a conhecer e trabalhar uma atriz estadunidense, hospedada no luxuoso Copacabana Palace.

O contraste com o outro lado do Rio de Janeiro vem em momentos como o do surto que a atriz tem ao não conseguir cocaína na cidade. Marciano é designado para subir ao topo de um morro, o que faz acompanhado de uma amiga, e adquirir uma quantidade vasta da droga diretamente do principal traficante da comunidade. A negociação, entretanto, é interrompida quando uma emboscada para matar o traficante vem à luz e culmina em um tiroteio no local. Na fuga, Marciano e sua amiga são rendidos por dois dos participantes da emboscada, que os rendem e roubam a cocaína.

Ainda no morro, um momento tocante ocorre quando um caminhão que transporta um carregamento de feijão, para em meio à comunidade e os moradores sobem a caçamba para distribuir a carga entre si. Jogando os grãos para cima, Marciano exclama: “Feijão para o povo!”. Posteriormente, quando uma festa da alta sociedade carioca sedia a apresentação de uma roda de capoeira, a atriz estadunidense, sob protestos de seu agente, acaba se enamorando do mestre da roda. Os dois fogem rumo à praia mais próxima, para uma noite de intimidade nas águas noturnas. “Rio Babilônia” é uma trajetória com muitas voltas por esses contrastes urbanos inerentes ao Rio de Janeiro, que servem como representação imagética para a desigualdade social imperante no Brasil como um todo. Isso aparece, com as nuances necessárias, em outros filmes da carreira de Neville D’Almeida.

Em “A Dama do Lotação” (1978), a protagonista, Solange, é uma jovem de classe média alta que, após anos com seu primeiro namorado, casa-se ele em uma cerimônia luxuosa e chamativa. Estimulado pela perspectiva do sexo, que a ele fora prometido apenas depois do casamento, o noivo, bêbado e irritado, se exalta na noite de núpcias, que acaba sendo extremamente desagradável para Solange. Como vingança, após algum tempo ela seduz e se relaciona sexualmente com um amigo de seu marido. A sede de vingança se desdobra em outros encontros com pessoas de diversas classes sociais, que culmina quando, ao esperar um ônibus, Solange é desejada pelo motorista a ponto dele expulsar todos os passageiros do veículo, incluindo o cobrador, para poder transportá-la exclusivamente na perspectiva dos dois terem uma relação. O sexo de Solange não vê rosto, não vê classe e não vê ideologia, vê apenas a satisfação de seu desejo, a exploração e o desenvolvimento de sua sexualidade e o objetivo de concretizar sua vingança.

Dentro dos estratos da classe média, os intelectuais e militantes políticos de esquerdas são explorados no primeiro longa de D’Almeida, “Jardim de Guerra”. O protagonista, um jovem chamado Edson, apaixona-se por uma cineasta de esquerda que grava filmetes em Super-8. Juntos, os dois condenam o nazismo, o capitalismo e o governo militar então vigente no Brasil. Em festas que passa a frequentar quando é inserido no meio social de sua namorada, Edson vê pessoas discursando em prol do movimento negro e do movimento feminista, grupos utilizando-se da cannabis sativa de forma criativa e se relacionando sexualmente de forma livre e sem tabus. Tendo o filme sido gravado em 1967, enquanto tudo isso explodia no exterior, em revoluções culturais que culminaram em movimentos como o maio de 1968 na França, no Brasil esses assuntos eram sufocados pela ditadura militar que vivia seus anos de chumbo. Ao retratar os círculos da intelectualidade esquerdista que reunia-se em apartamentos da zona sul carioca, D’Almeida põe em tela uma crônica crítica e interessada da classe média que se opunha ideologicamente à ditadura.

Ainda no contexto da ditadura, Neville D’Almeida retrata os integrantes do chamado “desbunde”, jovens que, em meio à ditadura, refugiavam-se longe dos grandes centros urbanos, vivendo em conjunto, usando drogas de forma recreativa, relacionando-se sexualmente entre si sem amarras e fazendo o possível para viver em paz em meio ao caos. E, “Mangue-Bangue” (1971), os “desbundados” se refugiam no manguezal que serve como distrito da luz vermelha do Rio de Janeiro. Estafado do mercado financeiro, um contador tem um colapso no meio da Bolsa de Valores do Rio e, despindo-se de suas roupas, encontra refúgio no mangue.

Se através de seus filmes o cinema de D’Almeida explora uma série de veredas dentro da configuração urbana do Brasil da segunda metade do século XX, isso tudo culmina no século XXI em “A Frente Fria que a Chuva Traz”, até agora único filme de ficção do cineasta produzido e lançado comercialmente no século XXI. Adaptação de uma peça teatral de Mario Bortolotto, a narrativa retrata um grupo de ricos jovens da burguesia carioca que fetichizam o ambiente dos morros e promovem festas em uma laje que lhes é alugada pelo morador de uma comunidade. O locador é sempre tratado como um animal, desumanizado, chamado de avarento e de monstro. O homem que é chamado pelos jovens para fazer a segurança da festa também é ridicularizado por seus contratadores: é acusado de preguiçoso, de feio, de fedido. O locador é negro, o segurança branco. Mesmo que de formas diferentes, ambos são vistos com desprezo pelo grupo de jovens brancos endinheirados que se apropria daquele ambiente por um elemento em comum: a classe.

A única personagem que consegue, de certa forma, atravessar esse limite é Amsterdã, jovem viciada que se prostitui por dinheiro ou doses de droga. Diferentemente dos outros jovens, não vêm de uma família rica, e na verdade está socialmente mais próxima do locador e do segurança do que das pessoas que estão festejando no morro como se ele fosse um ambiente exótico e pertencente a outra realidade, quando em verdade está a apenas alguns quilômetros de distância de suas luxuosas residências. Sendo a pessoa que atravessa a linha que divide os ricos dos pobres, por ser pobre, mas aceita entre os ricos, Amsterdã não por acaso é quem move os grandes conflitos do filme.

Ao longo de sua filmografia, que começa em 1968 e ainda não foi concluída, D’Almeida, que figura entre os cineastas mais importantes, mas ao mesmo tempo menos comentados da cinematografia brasileira, descortina para o nosso cinema os contrastes urbanos entre estratos sociais do Rio de Janeiro, do Brasil, do mundo. O faz de forma particular e memorável. Entender sua obra é entender uma parcela importante da evolução estética e temática do cinema nacional.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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1 Comment

  • Excelente texto cher ami!
    Resumo coeso de uma obra importante que a vergonha na cara um dia me permitirá assistir em sua íntegra.
    Pelo cinema niteróicentrico e a pulsão de uma liberdade perdida na porrinha da barca seguimos adiante.
    Que o Abraxás quixotesco dessa Guanabara nos proteja da desgraça pau-molescente dessa pátria sob as garras do caipirofascimo!
    Por novos grandes como Neville!

    Abraço!

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