Graciliano Ramos vai ao cinema

Por Igor Nolasco

 “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita pra dizer”.

— Graciliano Ramos

A chegada da mensagem ao povo era uma das principais preocupações da chamada geração de 1930 do modernismo literário brasileiro. A frase de Graciliano Ramos que compara o ofício da escrita à lavagem da roupa não por acaso foi escolhida pelo Grupo Editorial Record quando este decidiu reeditar e relançar a obra do autor: trata-se da síntese de todo um pensamento, que tem suas origens no conceito de intelectual orgânico.

No caso de Graciliano, a objetividade era parte de seu método. “Vidas Secas“, sua obra mais conhecida, tem na edição mais recente da Record não mais do que enxutas 176 páginas de prosa escrita em discurso indireto livre e povoada por uma família desesperada pela sobrevivência dentro das condições excruciantes que lhes foram impostas. É uma das mais conhecidas obras da literatura brasileira, provando que talvez o autor tenha sido relativamente bem sucedido em suas aspirações de que suas palavras efetivamente alcançassem o povo de seu país. Leitura obrigatória clássica dos vestibulares universitários, “Vidas Secas” foi adaptado para o cinema em 1963 pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos.

Nelson Pereira dos Santos foi a figura que deu os primeiros passos para que o movimento cinematográfico conhecido como Cinema Novo se concretizasse. Paulistano, fez seu primeiro longa-metragem no Rio de Janeiro, cidade que se tornaria ambientação recorrente para seus filmes. “Rio, 40 Graus” foi lançado em 1955 após passar meses retido pelo Departamento de Polícia do estado do Rio de Janeiro, chefiado por Menezes Cortes. Essa tentativa abrupta de censura tinha motivo: o Rio de “Rio, 40 Graus” não se espelhava na imagem que era vendida acerca da cidade na época, sempre retratada com uma população majoritariamente branca e com enfoque nos bairros nobres. O Rio de Janeiro de Nelson Pereira dos Santos abarcava as disparidades inerentes à cidade. Dentre os personagens principais do filme, garotos que desciam do morro para vender amendoins no asfalto.

Quando foi liberado pela polícia do Rio de Janeiro, o filme deflagrou uma das mais importantes revoluções do cinema brasileiro. Foi por causa de “Rio, 40 Graus” que o jovem crítico de cinema Glauber Rocha veio ao Rio conhecer Nelson Pereira dos Santos, e acabou trabalhando como assistente no filme seguinte do cineasta, “Rio, Zona Norte“, que seria lançado em 1957. Nelson retribuiria o favor fazendo a montagem do primeiro longa-metragem de Glauber, “Barravento”, de 1962. Se hoje Glauber é a figura mais associada ao Cinema Novo (por ter assumido o papel de líder ideológico do movimento e porta-voz do mesmo para o mundo), foi Nelson Pereira dos Santos quem plantou a semente que iria germinar nos anos seguintes.

Tendo lido vastamente os autores do modernismo de 1930 durante a juventude, não é de se surpreender que Nelson e Graciliano tenham tido afinidades temáticas e formais em seus trabalhos. Se “Vidas Secas” retrata as dificuldades passadas durante os períodos de seca no Brasil profundo, “Rio, 40 Graus” é uma crônica do contraste entre os habitantes da periferia urbana e os moradores dos bairros nobres à beira das praias. Se no livro de Graciliano Ramos há uma objetividade no vocabulário que ainda assim não priva a obra de sua riqueza literária, no filme de Nelson Pereira dos Santos a linguagem é simples, porém criativa e efetiva; desde os créditos de abertura, que evocam os cinejornais que à época eram exibidos antes dos longa-metragens até as transições entre núcleos narrativos, que por vezes ocorrem num mesmo plano, quando esses personagens se cruzam, no giro de um eixo de câmera.

Quando Glauber Rocha lança em 1964 seu livro “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro“, fazendo um balanço geral sobre a história do cinema no Brasil até os primeiros anos do Cinema Novo, diz, ao falar de “Rio, 40 Graus“, que “era um filme popular, mas não populista. […] Suas ideias eram claras, sua linguagem simples, seu ritmo traduzia o complexo da grande metrópole. […] Sentia-se, pela primeira vez no cinema brasileiro, (e em nossa literatura só comparável a Graciliano Ramos […]) o desprezo pela retórica”.

Analisando “Vidas Secas” e “Rio, 40 Graus”, um encontro entre os dois autores parecia inevitável, quando na verdade já tinha acontecido antes das filmagens do primeiro longa-metragem de Nelson. Os dois haviam se conhecido em 1951, e discutido um plano que o cineasta tinha de adaptar o romance “S. Bernardo“, de Graciliano. Um roteiro chegou a ser feito, mas ele modificava a história do livro de forma que desagradava ao escritor, portanto o projeto foi descontinuado. Graciliano Ramos morre em 1953, e “S. Bernardo” é adaptado para o cinema em 1971 – em um filme de Leon Hirszman, não de Nelson Pereira dos Santos.

Nelson decide filmar “Vidas Secas” em 1961, porém tem seus planos interrompidos por uma surpresa desagradável: quando chega com a equipe de filmagem e os atores na locação escolhida para o filme, no sertão da Bahia, descobre que as condições climáticas recentes haviam causado uma período de chuvas no local, e agora a caatinga estava verde e florida, incompatível com a ambientação necessária. Para não perder a viagem, escreveu um roteiro novo, de improviso, e rodou de forma econômica um faroeste formal e narrativamente tradicional no qual ele mesmo estrela como ator principal, chamado “Mandacaru Vermelho”.

Vidas Secas” chegaria aos cinemas pelas mãos e lentes de Nelson Pereira dos Santos dois anos depois. Alguns meses antes, no mesmo ano, ele já havia lançado “Boca de Ouro“, adaptação da peça de teatro homônima escrita por outro Nelson, o Rodrigues. O protagonista do filme era ninguém menos que o cunhado do autor da peça, o ator e produtor de cinema Jece Valadão, que convidara Pereira dos Santos para filmar “Boca de Ouro” como um diretor contratado.

O filme fora realizado em um sistema de produção completamente diferente do que o que era comum ao Cinema Novo. Cineastas como Glauber Rocha e mesmo o próprio Nelson priorizavam filmar nas ruas, priorizando tomadas externas e buscando um realismo cinematográfico feito com orçamento limitado e câmera livre. Já o sistema de estúdios, comum às comédias musicais de produtoras como a Atlântida ou às produções endinheiradas da companhia paulista Vera Cruz, carregava um ar de artificialidade que era mal visto pelos companheiros cinemanovistas de Nelson.

En “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” (1964), quando Glauber Rocha comenta sobre o filme estrelado por Jece Valadão, limita-se a dizer que “‘Boca de Ouro’ é um filme de artesanato, onde o autor apenas articulou cinematograficamente o texto de Nelson Rodrigues, com o qual pouco se identifica. Uma forçada atividade profissional que, felizmente, encerra os primeiros e difíceis períodos de sua carreira”. Dentro do jargão glauberiano, o “artesão” seria um diretor que possui o domínio técnico para realizar filmes formalmente refinados, mas não imprime neles a profundidade temática e o interesse pessoal que seriam característicos do “autor”. 

Vidas Secas“, o filme, permanece como uma das obras mais conhecidas do Cinema Novo. Possui uma série de triunfos, não apenas na forma bem sucedida como transpôs para a tela o mesmo sentimento que Graciliano Ramos conseguira pôr no papel, mas no jeito como o fez: seguindo um caminho completamente próprio, sem buscar soluções fáceis. Em contrapartida ao discurso indireto livre na obra de Graciliano, o filme de Nelson tem uma abordagem crua, sem narrações em off e sem trilhas sonoras melodramáticas. Na verdade, há uma ausência completa de músicas, e a trilha do filme é composta unicamente por um som perene emitido pelo movimento das rodas dos carros de boi do sertão. A fotografia de Luiz Carlos Barreto, que preenche a imagem com a luz estourada refletida no chão seco, é um dos grandes triunfos estéticos do Cinema Novo, em oposição à luz polarizada e do contraste bem comportado em produções como os filmes da Vera Cruz.

Nelson Pereira dos Santos continuou filmando até os anos 2010. Sua obra é composta por uma variedade de projetos de diversidade temática invejável, que vão desde documentários sobre o músico Antonio Carlos Jobim até filmes policiais inspirados nas crenças afro-brasileiras. Na ocasião de seu falecimento em 2018, o cineasta deixou uma obra composta por mais de trinta produções, entre curtas, longa-metragens e minisséries, para além de um legado inestimável no cinema brasileiro. E talvez seja realmente o cineasta de nosso país que mais tenha se aproximado de um equivalente ao que Graciliano Ramos foi para nossa literatura.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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