"Política é o cotidiano das pessoas", diz Talíria Petrone

Por Leopoldo Neto
Colaboraram Adrian Albuquerque, Guilherme Correia, Marina Duarte, Mylena Fraiha e Norberto Liberator

Um dos significados da palavra horizonte é “a margem de visibilidade de uma pessoa, aquilo que alguém pode ver ao olhar para determinado local”. Com esta metáfora, a Badaró acredita que um projeto político de esquerda pode estar no campo de visão das pessoas como possibilidade concreta, desde que seja disputado e construído coletivamente.

Com o avanço da extrema-direita, é necessário pensar em uma organização de sociedade alternativa ao capitalismo  – este que, em sua expressão contemporânea, culmina no autoritarismo neoliberal. É importante refletir sobre como instituições e movimentos sociais devem articular saídas que visem construir um modelo de poder popular.

Diante deste cenário, a Badaró inicia hoje uma série de entrevistas que visam buscar pontos de interlocução com personalidades políticas para estimular a reflexão sobre problemas, estratégias e caminhos que podem ser encontrados para posicionar o campo da esquerda enquanto horizonte político real.

A entrevista de hoje será com Talíria Petrone. Professora de História formada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), foi a vereadora mais votada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)  na cidade de Niterói (RJ), em 2016, com cerca de cinco mil votos. Em 2018, foi eleita pelo mesmo partido como deputada federal, com 107.317 votos – sendo a nona mais votada do estado. Em um contexto de crescimento da representação política conservadora e fundamentalista no Congresso Nacional, Petrone busca reaproximar ideias da esquerda com o dia a dia da população, como também combater os retrocessos legislativo-institucionais que o Brasil tem enfrentado nos últimos anos. “Nesse momento acho que estamos reagindo mais do que sendo propositivos (…) a gente está reagindo para perder o menos possível, em um ano que teve congelamento do salário mínimo, o pacote anti-crime sendo aprovado”.

Ilustração: Marina Duarte 

Nesta conversa, a deputada discute táticas políticas, utilização da internet como campo de batalha na disputa ideológica, a crítica a uma visão identitária liberal das questões de gênero e de raça e relata as suas dificuldades enquanto mulher negra no Congresso Nacional – espaço historicamente ocupado por homens brancos representando interesses financeiros e religiosos. 

O projeto ultraconservador do bolsonarismo tem atacado diariamente direitos sociais, civis e políticos, assim como ameaça instituições que visam resguardar a frágil democracia brasileira. Dentro desta conjuntura, como você percebe a atuação da esquerda, enquanto campo político amplo, no combate à extrema-direita?

Olha, eu acho que em momentos de crise, que é um momento que a gente está vivendo, abre também um espaço para reorganização. E, sem dúvida, eu acho que a gente ainda não tem uma esquerda que tem conseguido construir instrumentos para essa reorganização e esse é um desafio que a gente não pode abrir mão.

Num momento de avanço da extrema-direita, a gente por um lado tem que ter formações amplas, alianças amplas para garantir uma democracia, mas há também um espaço para afirmar um projeto de esquerda socialista radical, ao meu ver. E, talvez, a gente precise apontar uma estratégia enquanto campo de esquerda para uma reformação estrutural da sociedade, coisa que a gente tem feito pouco. Então, é um desafio ainda nosso fazer isso e fazer isso com pé nos territórios porque a narrativa ela está, hoje, do lado da extrema-direita.

É a narrativa da necessidade da nova previdência, da necessidade de defender as crianças, da necessidade do povo se armar para se defender. Então também é preciso que a esquerda amplie uma comunicação com o povo e isso significa estar nos territórios, partir da escuta para produzir coisas. Então, é um desafio ainda distante, mas que a gente precisa persegui-lo.

Você acredita que na construção desse projeto de combate ao autoritarismo, existe uma fragmentação entre as diferentes vertentes da esquerda?

Eu acho que sim, mas acho que no último período tem havido uma tentativa de maior unidade entre esses setores da esquerda. É uma unidade importante que tem sido maior, em especial, nos últimos dois anos, depois do golpe institucional que abre um período de muito retrocesso democrático no Brasil. A partir daí, há uma tentativa de unidade maior da esquerda – ainda frágil, mas que hoje é mais possível, se evidencia mais necessária. O que eu acho que seja mais importante é a gente pensar com qual projeto essa esquerda precisa avançar. Qual é o programa para essa esquerda avançar. O que dá para ceder e o que não dá para ceder de jeito nenhum para se consolidar, de fato, um projeto de justiça social no país. Então, talvez seja o que faça mais falta nesse momento.

Ilustração: Norberto Liberator 

Em suas falas, você sempre ressalta a questão da política do afeto – fazer com que as pessoas passem a perceber política como algo que as afete no cotidiano e sejam autônomas em relação às suas próprias decisões. Situação diferente da qual nós vivemos hoje, em que uma elite política está em um pedestal e as pessoas estão afastadas. Como a podemos pensar em estratégias para a população perceber política como um problema que afeta o dia a dia?

Eu acho que há, não à toa e não é culpa do povo, um afastamento do povo da política, porque há uma negação da política. Tem a sua razão de ser. As pessoas negam a política porque não se veem representadas na política – não só representadas com sua cor, com sua origem… Mas a política hoje é lida como algo do político tradicional. Normalmente aquele homem rico, engravatado, que nada tem a ver com o povo. Uma política que é compreendida como apropriação dos bens públicos para os muito poderosos. E política não é isso, né. Política é o preço do pão, o preço do ônibus, se um jovem vai chegar vivo em casa ou não. Política tem tudo a ver com o cotidiano da vida. Com viver ou morrer, com ser feliz ou não ser, com a possibilidade de ter atendimento no SUS, de estudar. Só que para a população, a política não é isso porque há muito tempo a política foi roubada delas. O nosso desafio maior é desconstruir essa ideia de política e não se faz isso sem aproximação do território, sem de fato concretizar essa política cotidiana. Eu digo que um parlamento é apenas um instrumento, mas política não é o parlamento apenas. A política é o cotidiano de vida das pessoas. Então é o trabalho de base, seguindo o território e disputando as pessoas.

Eu uso muito o debate do aborto como um exemplo que abre muitas portas. O Brasil, que tem uma construção histórica cristã, descamba muitas vezes para o fundamentalismo. São temas que hoje a extrema-direita se apropria deles. Seja o tema da segurança pública ou o tema de gênero, que envolve a população transexual. O tema do aborto eu acho que é um tema que ainda é um dos maiores tabus e com maior dificuldade de construir algo com o povo, embora todo mundo conheça alguém que abortou, todo mundo conheça alguém que interrompeu uma gestação. Mesmo entre pessoas religiosas, evangélicas, cristãs, ou elas mesmas fizeram aborto e… esse tema é um tema que evidencia muito isso porque a gente tem várias formas de dialogar sobre isso. O que tem sido feito muitas vezes é: “Ah, não vamos falar sobre isso porque isso não dialoga com o público”, mas isso é uma pauta de saúde pública fundamental. Então, como dialogar com o povo? 

Se eu chego para uma senhorinha idosa da favela, cristã, que cresceu na igreja e falo pra ela: “Olha, vamos defender o aborto. Meu corpo, minhas regras”, é óbvio que ela vai rechaçar essa pauta, mas se eu concretizo isso na vida real e pergunto se ela conhece alguém que interrompeu uma gravidez, ela vai dizer que sim. Se eu pergunto se ela acha que a mulher tem que morrer, tenho certeza que ela vai dizer que não. Se avanço e pergunto se eu acho que ela tem que ser presa, a senhora vai dizer que não. [Se eu pergunto] Se o SUS tem que atender essa pessoa, se ela estiver sangrando, essa senhorinha vai dizer que sim. Essa senhorinha pode ser contra o aborto, mas ela é a favor da regulamentação dele. Ela pode ser a favor da regulamentação dele. Então, a forma que a gente procura o povo pra se comunicar, a forma como a gente se afasta do povo ou é povo, ela é talvez o que a gente tem que se preocupar neste momento para a gente enfrentar o avanço da extrema-direita.

Nessa questão de pensar no trabalho de base, fazer com que as pessoas reflitam sobre o cotidiano enquanto política, como podemos manter a discussão e a mobilização continuamente após o processo eleitoral. Para que não se torne algo de quatro em quatro anos?

Na verdade, a política já se realiza nos territórios. Em todas as favelas, há grupos de batalhas de rimas. Em toda periferia vai ter aquela juventude do funk. A gente vai ter nas comunidades, grupos de mulheres na igreja, que vão tratar da violência contra a mulher naquele local. Então essas coisas já acontecem todos os dias, independentemente da eleição. O que é preciso é que o processo eleitoral não seja algo apartado desse cotidiano da política. A ocupação de espaços institucionais precisa, ao contrário, ser instrumento dessas lutas, dessas resistências, dessas formas de fazer política que são contínuas no território. Se falta o dinheiro da passagem pra uma mulher, que vive na favela, vai ter um ratatá ali pra emprestar dinheiro pra ela conseguir trabalhar como trabalhadora doméstica. Vai ter uma vizinha que vai ficar com o filho dela, pra ela trabalhar. Para cesta básica, vai ter uma reunião de pessoas pra ajudar na cesta básica de uma delas. Isto é política. O desafio é como o processo eleitoral se aproxima desta política e, não o contrário, não se tornar algo apartado da política já feita no cotidiano. E aí, acho que é mesmo a gente ter espaços mais democráticos, mais participativos, como formatos que sejam acessíveis, com uma linguagem acessível… E não é fácil, é um desafio danado porque a política ainda é muito elitista, mas é um desafio que a gente tem que perseguir.

Dentro dessa disputa, entra a internet. É nas redes sociais que se articula uma disputa ideológica entre diferentes espectros políticos, disseminação de fake news, manobras de algoritmos e robôs. Como também potencialização de grupos de ódio e construção de coletivos de mídia mais democráticos. Na sua visão, como os diferentes setores da esquerda têm se portado em relação a esse campo de batalha que é a internet? Você acha que as estratégias de comunicação utilizadas pelos partidos e pelos políticos têm conseguido criar maneiras de enfrentamento?

Eu acho que ainda não. Eu acho que infelizmente a gente ainda também está perdendo nessa área, mas não é apenas saber como se comunicar. Tem um mercado, né. Tem um papel econômico muito grande, internacional, de disparo de WhatsApp, disparo de fake news. Então é preciso que a esquerda entenda, por exemplo, esses sinais… Como hoje um dos canais [WhatsApp] pelos quais as pessoas mais se informam, é… na verdade mais se desinformam, e se apropriem disso. Significa investimento orçamentário, mas também significa fortalecimento de grupos de comunicação popular, fortalecimento de um uso mais popular desses instrumentos. Não dá mais, inclusive este é um déficit do nosso mandato, não dá mais pra não fidelizar na comunicação por WhatsApp, neste momento em que as principais fake news vêm por meio de WhatsApp. Podem começar por robôs, mas chegam em pessoas reais. Então hoje a internet é um instrumento importante, os diferentes meios de comunicação, não só o Facebook e o Instagram, mas se a gente pensar, acho que o WhatsApp hoje precisa ser apropriado pela esquerda que ainda está passos atrás disso. Sem esquecer do papel do capital internacional em financiamento de algumas campanhas e de algumas disseminações de fake news.

A nossa série de entrevistas tem tentado refletir um pouco, além do papel das mídias e das tecnologias de maneira mais ampla, sobre a ideia de jornalismo alternativo, que não é recente, mas a internet, como temos debatido, também pode possibilitar novas plataformas para se fazer jornalismo, construir novas linguagens e ter contato com diferentes grupos. Como você percebe a questão do jornalismo enquanto instituição que potencialmente pode possuir um poder de politização?

Eu acho que infelizmente hoje a maior parte dos meios de comunicação hegemônicos são dominados por poucas famílias muito ricas, com muito poder econômico. E é óbvio que isso atrela a grande mídia a interesses que não são populares. É preciso que a gente tenha políticas públicas de democratização da comunicação. Infelizmente, mesmo nos últimos governos ditos de esquerda ou centro-esquerda, como cada um chamar melhor, não enfrentaram esse tema, que precisa ser enfrentado. Fortalecimento das rádios comunitárias, grupos de comunicação de favelas e periferias. É preciso que exista isto e é preciso também interromper um ciclo em que o dinheiro determina a informação. 

Dentro do projeto neoliberal vigente, a extrema desigualdade pesa muito mais para alguns setores sociais colocados em condição de subalternidade pelo sistema capitalista. Nesse sentido, a sua militância tem, também, um histórico de luta pelas minorias, pela superação do racismo e do patriarcado. O capitalismo vai criar novos consensos, vai se utilizar de ferramentas para humanizar o consumo, produzir uma falsa impressão de superação e diminuir essas mobilizações sociais, que se tratam de eixos estruturais de opressão do capitalismo, a movimentos identitários – ancorados em um discurso liberal. Você acha que o peso dado a essas pautas dentro da esquerda é suficiente? Qual tática pode ser adotada para transformar o público cativo dessa atuação liberal – via identitarismo – em base aliada à esquerda?

A classe trabalhadora ela não é algo etéreo. Ela ama, ela vive em um determinado território, ela tem cor, ela tem sua orientação sexual e sua identidade de gênero. Isso perpassa a classe. Pessoas negras e LGBTs comem, vivem, descansam, precisam de uma moradia. 

Eu digo isso porque a tarefa da esquerda não é abandonar a especificidade da classe, mas reconhecer que existem outras especificidades. É reconhecer que a classe trabalhadora é heterogênea. Ela não somente um operário do século XIX parado na porta da fábrica. E aí existe um desafio de unificar as pautas que envolvem as opressões, com a pauta da exploração e o debate de classes. Então nem por um lado abstrair a classe trabalhadora, que ser trabalhador é única coisa e sua identidade, ainda mais agora em momento de informalização do trabalho. Outras identidades desconstroem essa classe, enquanto mulher, favelada. Ao mesmo tempo é um desafio nosso concretizar essa classe, mas também não tratar das questões de gênero e de raça como questões secundárias, porque isso descola da vida real. Por exemplo, tem uma vertente do feminismo popular, que olha pela trabalhadora doméstica que é explorada. Se o feminismo não for popular ele não vai dialogar com a idosa, doméstica, que cresceu na igreja, que é contra a legalização do aborto, mas que também é essa trabalhadora explorada e que é parte da classe trabalhadora – ou seja, a maioria do povo brasileiro.  

Então o desafio que a gente tem é concretizar essa consciência de classe. É entender a classe trabalhadora como algo heterogêneo, complexo e concreto. Esse é o desafio para enfrentar o patriarcalismo e esse também é o desafio para poder enfrentar o crescimento de movimentos liberais que tratam essas questões como questões meramente identitárias e não como questões estruturais da própria classe. 

Ilustração: Marina Duarte 

Você se elegeu em 2018 como deputada federal e, juntamente à sua eleição, se articulou essa onda ultraconservadora, inclusive no Congresso – que foi impulsionada pelo bolsonarismo e pelo PSL. Como tem sido a experiência, tanto sua quanto do PSOL, em ocupar essa casa tão dominada por pautas conservadoras e muitos segmentadas em oligarquias e grupos de poderes ligados em última instância à classe dominante? 

Tem sido uma experiência para lá de desagradável. Lá não é um lugar para muitos de nós, em especial mulheres que são diaristas, negras, comunistas. A política ainda é um lugar que remete aos barões do café, os senhores de engenho. Ainda tem aqui um pensamento de latifundiários, donos de bancos, os representantes das empresas de ônibus. Então não é um desafio fácil, ainda mais em um momento em que essa lógica ultraliberal se junta ao autoritarismo, como é o caso desse governo autoritário e fundamentalista. Mas eu acredito que não está melhorando para o povo, sabe? A gente por um lado tenta superar o desemprego, a crescente informalização do trabalho, uma uberização do trabalho, além das pessoas que têm dificuldade de se aposentar; e o povo vai sentir tudo isso em algum momento. Por isso que ocupar os espaços institucionais é uma forma de fortalecer essa resistência para poder enfrentar esse inverno. Nesse momento acho que estamos reagindo mais do que sendo propositivos, esta é uma reflexão que precisamos fazer. Porque a gente está reagindo para perder o menos possível, em um ano que teve congelamento do salário mínimo, o pacote anti-crime sendo aprovado. É um ano em que temos que resistir para poder perder o menos possível, mas enquanto isso precisamos pensar o nosso projeto de Brasil?  Qual é o projeto da esquerda revolucionária? A esquerda que entende que é preciso derrubar o capitalismo para com que as pessoas sejam felizes.

Enquanto a gente desiste e repita que a nossa democracia está frágil, é preciso de projetos de justiça social e com propostas dentro do parlamento, que é o que temos feito. Como a proposta de uma reforma tributária mais justa, tentar construir projetos de redução de brutalidade policial e por aí, vai. Que também é um instrumento importante para enfrentar este momento em que a gente está vivendo.           

* A conversa com a deputada foi realizada por ligação de WhatsApp. As falas foram transcritas e alguns trechos foram modificados para melhorar a fluidez da leitura, sem modificações no conteúdo das respostas da entrevistada.

leopoldo neto

Editor-chefe

Jornalista e mestrando em Comunicação. Possui interesse em jornalismo político, científico e cultural. Busca explorar o formato podcast.

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