O neofascismo com "cara de esquerda"

Por Norberto Liberator
Colaborou Leopoldo Neto
Arte de capa por Guilherme Correia

Apoio à Reforma Agrária, oposição à privatização de empresas estatais, críticas ao domínio econômico dos Estados Unidos e da União Europeia sobre o resto do mundo. À primeira vista, a união destas pautas parece sugerir um posicionamento de esquerda, ou minimamente progressista. Nem sempre é assim.

Dois fenômenos surgidos na Rússia pós-soviética trazem uma abordagem confusa e perigosa a respeito de bandeiras históricas da esquerda. O primeiro deles é o nacional-bolchevismo, representado principalmente pelo ex-escritor beat Eduard Limonov. O russo criou seu partido em 1993, depois de voltar do exílio na França e de lutar ao lado de tropas sérvias na Bósnia. A seu lado, estavam o astro do xadrez Garry Kasparov e o filósofo Aleksandr Dugin.

Os nacional-bolcheviques – conhecidos como nazbols – buscam unir conceitos do socialismo soviético ao fascismo. Sua bandeira é inspirada no estandarte do Terceiro Reich: vermelha com um círculo branco ao meio, no qual, no lugar da suástica, aparecem a foice e o martelo.

Em 2001, Dugin rompeu com os nazbols, fundou o Partido da Eurásia e começou a desenvolver o que chamou de “Quarta Teoria Política”, ideologia que seria sintetizada em um livro homônimo, em 2009. Devido a seu caráter menos centrado na Rússia e mais espalhado mundo afora, é a ela que nos ateremos.

O que é a Quarta Teoria Política?

Dugin conceitua a “Quarta Teoria Política” (QTP, também chamada de ‘duginismo’) como superação ao que chama de “três teorias da modernidade”: liberalismo (primeira), socialismo (segunda) e fascismo (terceira). Das três, a única declarada por ele como inimiga é a primeira, que considera vencedora.

Baseado em autores como Martin HeideggerRené Guénon e Julius Evola, Dugin formulou sua salada ideológica que mistura fascismo, algumas ideias econômicas análogas à esquerda e uma pitada de misticismo. Antiiluminista, ele conclama o retorno à “tradição” e ao “povo”, como contraponto ao mote das três teorias anteriores: o indivíduo (liberalismo), a classe (socialismo) e a nação (fascismo). Dugin considera o fim da Segunda Guerra Mundial como derrota do fascismo e o colapso da União Soviética como vitória do liberalismo, a partir de onde acabaria a modernidade. Embora rejeite a pós-modernidade, a QTP acredita na existência dela, portanto é uma ideologia pós-moderna.

Enquanto os nazbols se opunham a Vladimir Putin, Dugin se tornou uma espécie de “guru” do governo russo, do qual chegou a ser conselheiro. Para o ideólogo da QTP, a Rússia não faz parte do mundo ocidental ou oriental, mas de um contexto próprio que chama de “eurasiano” – o qual estaria em conflito com os “atlantistas” dos Estados Unidos e União Europeia, supostamente interessados em dominar o restante do mundo.

Ao se opor ao domínio estadunidense e europeu, Dugin não costuma chamar tal fenômeno de “imperialismo”, como tradições teóricas de esquerda o fazem, e sim de “globalismo”. Os termos estão longe de ser sinônimos: enquanto a ideia de imperialismo pressupõe um domínio de potências sobre outros países em lógica análoga à de um império, o conceito de “globalismo” parte da paranoia reacionária de que haveria um complô de governo global.

Tal concepção é compartilhada com Olavo de Carvalho, com quem Dugin já debateu. A discordância pode ser resumida no fato de que, para Carvalho, tal conspiração seria liderada por banqueiros, muçulmanos e comunistas; já para Dugin, por banqueiros e “atlantistas”.

Outro expoente da chamada “direita alternativa” (alt-right) adepto da teoria do “globalismo” é Steve Bannon, fundador da agência Cambridge Analytica – centro das polêmicas envolvendo disparos de fake news para beneficiar campanhas de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Bannon também cultiva boas relações com Vladimir Putin, Matteo Salvini (ex-premiê de facto da Itália) e Viktor Orbán (premiê húngaro), todos apoiados por Aleksandr Dugin.

Antiliberalismo nem sempre é aliado

O duginismo parte da mesma visão esotérica de mundo que baseia o olavismo: rejeição ao legado racionalista deixado pela Revolução Francesa, seguido do clamor por um retorno às “tradições” e ao espiritualismo. As diferenças se dão em relação a quais tradições e formas de espiritualidade serviriam como guias. 

Portanto, o antiliberalismo da QTP vai na contramão do antiliberalismo socialista, ou de qualquer concepção de esquerda, seja moderada ou radical. O próprio Dugin, ao explicar o que considera erros do fascismo, afirma que este comete o equívoco de “se basear no iluminismo”, embora explicite que o considera “muito melhor do que as outras teorias modernas”. As divergências estão em mínimos detalhes teóricos, não sendo exagero considerar o duginismo uma nova vertente do fascismo, ou releitura dele.

A esquerda, em todo seu amplo espectro, não é antiiluminista, mas um conjunto de diversas ideologias que possuem, em maior ou menor grau, raiz iluminista. Mesmo os autores de esquerda mais críticos ao próprio iluminismo não o rejeitam, e sim apontam o que consideram falhas nele, como é o caso de Theodor Adorno e Max Horkheimer em “A Dialética do Esclarecimento”.

O apoio dos duginistas a governos e povos que se opõem direta ou indiretamente ao imperialismo estadunidense – como Palestina, Venezuela, Irã e Síria – não parte do conceito de autodeterminação dos povos frente a interesses econômicos, mas da defesa identitária da “tradição” contra o tal “globalismo”, que supostamente objetivaria destruí-la. Ainda que, à primeira vista, tais posturas pareçam convergir, o ponto de partida da QTP é essencialmente reacionário.

No discurso de fundação do Centro de Estudos Conservadores, dirigido por Dugin na Universidade Estadual de Moscou, o próprio afirmou que “é no conservadorismo que se deve buscar uma ideologia necessária para a Rússia atual” e que seu pensamento é “indubitavelmente conservador”.

A QTP no Brasil

No Brasil, o duginismo já possui seus representantes. A principal entidade adepta à QTP no País é a seção nacional da Nova Resistência (NR). O grupo se apresenta como uma união “com células do mundo todo”, formada por eurasianistas, nacional-bolcheviques, duginistas, “nacional-revolucionários”, “distributistas”, “anticapitalistas de direita” entre outros, contra a “agenda globalista”. 

Em seu site e suas páginas nas redes sociais, a NR já fez postagens em que apoia agressões a imigrantes venezuelanos; lamenta um suposto plano de “fim da masculinidade”, segundo eles, posto em prática atualmente; condena o feminismo; critica a inexistente “ideologia de gênero” e nega a existência do holocausto. A homofobia, segundo a NR, seria um conceito “inventado em academias e em ONGs” em prol de um suposto “lobby LGBT”, do qual também faria parte a legalização do aborto.

Formada por típicos adeptos de teorias de conspiração, a NR acusa George Soros de patrocinar o tal “lobby”, além de acreditarem em “cura gay” e que a AIDS seria uma “doença homossexual”. Seu líder, Raphael Machado, já usou seu perfil pessoal para atacar o que considera “choramingo gay da judiaria”, utilizando não só do termo “gay” como xingamento, mas também de uma palavra historicamente carregada de preconceito contra judeus (“judiaria”).

A NR espalha cartazes em apoio a Enéas Carneiro, notório político de extrema-direita fundador do Partido da Reedificação da Ordem Nacional (Prona), no qual havia inclusive adeptos do integralismo. No site da organização duginista, há um artigo favorável a Gustavo Barroso, segundo principal líder da Ação Integralista Brasileira (AIB). Barroso foi tradutor do “Protocolo dos Sábios de Sião” (panfleto antissemita que ajudou a basear o nazismo) e autor de “História Secreta do Brasil”, livro em que defende a tese paranoica de que os judeus manipulam o poder político-econômico nacional.

André Luiz dos Reis Constantor, membro da NR, diz em vídeo que o fascismo é, das “três teorias da modernidade”, a mais próxima à QTP. Na mesma postagem, ele critica integralistas que apoiaram Jair Bolsonaro, devido à agenda econômica neoliberal do bolsonarismo, além das relações com a Maçonaria e com Israel. “É esse pessoal que cita Gustavo Barroso”, diz ao apontar a incoerência dos citados, demonstrando simpatia pelas ideias do teórico integralista.

O integralismo é tão referenciado – e reverenciado – que até seu lema foi objeto de releitura por parte da Nova Resistência. O chavão “Deus, Pátria e Família” dos partidários de Plínio Salgado, Miguel Reale e do próprio Barroso tornou-se “Pátria, Socialismo e Família” no caldeirão ideológico do grupo.

A esquerda que não se atentou

Mesmo com todas as credenciais de movimento neofascista, a Quarta Teoria Política não é percebida como tal por setores da esquerda brasileira. Um caso recente foi o do historiador Jones Manoel da Silva, que em seu perfil do Facebook, afirmou que quem “considera nazbols e QTP como a maior ameaça atual” está descolado da realidade, embora não tenha apontado quem o faça. Ele concluiu o post pedindo preocupação com a extrema-direita.

De fato, a QTP e os nazbols não são a “maior ameaça” atual e não temos conhecimento de alguém que o afirme. Isso não exclui o fato de serem perigosos. Organizações que pregam ódio contra imigrantes, judeus, feministas e outros grupos não devem ser ignoradas quanto ao perigo que representam. Exemplo prático: os Carecas do Brasil não são uma ameaça estrutural. Ainda assim, têm poder para causar muitos estragos, como ataques físicos, atentados e mortes – e os causam.

No entanto, o mais sintomático de como parte da esquerda está fora de órbita no que diz respeito à QTP é que Jones pede para se preocuparem “com a extrema-direita”. Se os duginistas pensam, agem e se organizam como extrema-direita, o que seriam se não parte dela? E se tal movimento neofascista se infiltra no seio da própria esquerda, por que a esquerda deveria tratá-los como irrelevantes e desmerecer tal infiltração?

Outro episódio preocupante foi a presença de membros da Nova Resistência no Congresso Trabalhista de 2019, a convite da Frente Nacional Trabalhista, do vereador Leonel Brizola Neto (PSOL-RJ) e de Vivaldo Barbosa, ex-líder do PDT na Câmara dos Deputados. Na ocasião, o líder da organização, Raphael Machado – o mesmo que nega a existência do holocausto e que usa “gay” e “judiaria” como xingamento – fez um discurso.

relação entre militantes da Nova Resistência e setores do PDT não é nova. Aproveitando-se das contradições ideológicas do varguismo, que tem influência no programa do partido, alguns duginistas se aproximaram ou filiaram à legenda. Entre a mídia progressista, o Jornal GGN publicou texto de Alessandre Argolo que endossa posições de Dugin e o blog Diário do Centro do Mundo, por sua vez, chegou a republicar um texto da Nova Resistência, no qual Dugin pede uma “frente populista unificada” contra Bolsonaro.

O site da NR afirmou que alguns de seus membros estiveram presentes no evento de lançamento do livro “Carta no Coturno”, dos jornalistas André Ortega e Pedro Marin – ambos da Revista Opera. O livro é uma coletânea de artigos sobre o avanço do militarismo desde o golpe contra a presidente Dilma Rousseff. Tanto Ortega quanto Marin negaram vínculos com o grupo.

Não é nosso objetivo atacar os militantes, jornalistas e veículos aqui citados, dos quais reconhecemos a contribuição para divulgação de conteúdo contra-hegemônico e de esquerda, mas chamar a atenção para o problema. A Nova Resistência e outros movimentos de mesma matriz teórica já provaram por diversas vezes ser grupos reacionários, seguidores de uma ideologia abertamente simpática ao fascismo e análoga a este.

Enquanto os que se reivindicam de esquerda – independentemente de corrente teórica – não perceberem e não deixarem claro que grupos duginistas não são aliados, eles se fortalecerão e serão, a despeito de sua suposta “irrelevância”, cada vez mais expressivos. E o pior: este inimigo, ao contrário do bolsonarismo, tem “cara de esquerda”.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

leopoldo neto

Jornalista e doutorando em Comunicação. Possui interesse em jornalismo político, científico e cultural.

Guilherme Correia

Jornalista. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

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7 Comments

  • Sério que vocês consideram que Diarreia Crônica Mental, 247, Nassif, Opera Mundi, Jones Manoel, etc. como pessoas que contribuíram positivamente pra esquerda!? Pelo que eu saiba, eles contribuem positivamente pro MBL, pro bolsonarismo, etc.

    • Deve-se colocar todas as críticas as mídias de esquerda que são coniventes ao PCO e suas constantes ações reacionárias, ou coniventes com discursos liberais, mas não da pra ignorar que há comunicadores de valor até dentro dessas mídias, mesmo que sejam vacilantes (tirando o opera que tive pouco contato e até então me parecem bem posicionados) mas pelo que me parece ainda não são, em sua maioria, alinhados a ideais nem projetos de direita, o que não anula o fato de recorrerem em erros de esquerdismo imaturo e mau fundamentado; e tentar colocar um militante comunista orgânico como se ele corroborasse com a extrema direita, é no mínimo desonestidade. Quer criticar, vai lá, faz de maneira fundamentada que nem o texto aqui acima fez, não começa com essa atitude simplista e autofágica, isso só enfraquece o avanço da consciência política da nossa classe.

    • então sua concepção da realidade está distorcida e tem sério problema cognitivo Marwin. Brasil 247, Nassif e Opera Mundi sim, estão coerentes com a esquerda. Já quanto ao Jones, ele tem alguns problemas sim.

  • Texto importantíssimo e muito esclarecedor.

  • […] Via Revista Badaró […]

  • […] Teoria Política” do fascista russo Aleksandr Dugin (cujas ideias e atuação foram sintetizadas neste artigo de março de 2020), relação que não é discreta e é objeto de reportagens, exposições públicas e cobranças de […]

  • […] O neofascismo com "cara de esquerda" […]

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