Batalha por Campo Grande

Batalhas de rima ocorrem pela cidade como forma de resistência cultural, apesar dos diversos esforços – sobretudo do poder público – para que sejam invisibilizadas

Por Felipe Lourenço
Arte: Iara Cardoso

Mato Grosso do Sul é historicamente marcado por conflitos, desde antes da sua formação como estado, ou da incorporação das terras paraguaias ao território brasileiro. Também há conflitos na formação demográfica da capital. Um dos que mais me intriga é sobre a disputa de terras entre a parte da comunidade nipônica da capital e quilombolas, mas essa não é a história que eu quero me aprofundar agora, afinal, meu interesse está no presente, ou pelo menos, num passado muito recente.

Disputas por território ainda acontecem na nossa cidade, mas o confronto não é mais entre duas etnias (não abertamente, pelo menos) pelo controle de terras férteis. A batalha por Campo Grande agora é entre o poder público e artistas da cidade.

Em vários pontos da região central, é possível ver a troca e a ocupação de tais espaços pela Guarda Municipal. Por exemplo: na praça do Rádio Clube, onde antes havia uma loja para venda de artesanato, hoje há uma base da Guarda; apenas algumas quadras abaixo, na praça Ary Coelho, cercada por grades, também há uma base da corporação; na avenida Calógeras, próximo aos trilhos da antiga ferrovia, também uma base da mesma Guarda Municipal, e esta em especial, para mim, tem um valor muito maior que as outras já citadas.

 A Calógeras é o lugar onde acontece o carnaval de rua da cidade e onde ocorria a Batalha da Orla, embaixo da “Maria Fumaça”.  As batalhas de rima ocorrem por todas as regiões da cidade. A repressão policial que expulsou a Batalha da Orla do seu lugar de nascença é um dos motivos pelos quais tais encontros sempre trocam de endereço, dificultando a consolidação de um movimento coeso e o acesso a quem vai ao evento, além da falta de estrutura desses espaços a céu aberto. 

No mês passado, a Batalha da Pista – na pista de skate da Orla Morena – teve uma de suas edições canceladas, devido à falta de recursos estrutural e logístico para realizar o evento daquela quarta-feira. Os organizadores tiram dinheiro do próprio bolso para se locomoverem pela cidade, bancar estrutura, cones e faixas de contenção. Tudo isso para ainda correrem o risco de serem dispersos pela polícia ou pela Guarda Municipal. Mas mesmo quando o poder público parece contribuir com a realização dos eventos, isso tem um preço.

No caso do Sarau de Segunda, o preço foi não poder se manifestar. No ano passado, o evento passou por várias dificuldades relacionadas ao fornecimento de energia da praça, disponibilização de tenda e equipamento de som, todos os itens previstos em ofício enviados pela associação que organiza o sarau ao órgão gestor do espaço.

Quando os suprimentos para o evento foram cobrados, após inúmeros atrasos e descumprimentos do ofício vigente, a presidenta da associação foi advertida que teria seu evento cancelado permanentemente, caso tornasse público os fatos do ocorrido. Bem, o Sarau existe até hoje.

Quem “manda” na cidade gosta de cultura e arte, mas a pergunta a ser feita é: quem está fazendo essa arte? Recentemente, fui até a casa Manoel de Barros, que opera como museu, mas eu estava lá para assistir a uma apresentação musical. O espaço era uma garagem, porém cuidadosamente organizada com cadeiras, que não foram o suficiente para todo o público presente, fazendo-os assim ocupar a rua e a calçada. O lugar vendia bebidas na sua área externa, junto à calçada. Em momento algum a Guarda Municipal ou a Polícia Militar foi até o lugar dispersar os presentes na rua ou na calçada, pois logo ao lado há uma escola e nenhum órgão de vigilância multou o museu (!) por vender bebidas. 

O movimento de ocupação dos espaços feitos pelas batalhas de rima, da cidade e pelo Brasil afora, é um símbolo fortíssimo de contracultura e resistência às tentativas de supressão da cultura e da arte erroneamente tratadas como cultura periférica. O futuro é preto e vermelho, negro e indígena. Alguns legisladores e representantes do poder público sabem disso e tentam abrir diálogo com esses segmentos, mas não se confundam, nós não seremos assimilados.

Felipe Lourenço

Músico, ator, roteirista, produtor, agente cultural, faixa preta de karatê e Doutor Honoris Causa.

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