Do analfabetismo ao país das bibliotecas

Revolução socialista tirou povo russo do analfabetismo e transformou União Soviética em referência educacional

Texto: Vitória Regina
Arte: Norberto Liberator

A União Soviética travou muitas batalhas ao longo do século XX, como a reconstrução de um país em ruína e construção de uma nova sociedade; a guerra civil (1918-1920) logo após a revolução e o combate direto contra a Alemanha nazista. Contudo, uma das batalhas que mais marcou aquele país foi a luta contra o analfabetismo. Para entender a série de políticas implementadas visando promover a educação em toda a pátria de Tolstoi, é relevante compreender o cenário anterior à revolução. 

A dinastia Romanov esteve à frente do imenso Império Russo de 1613 a 1917. A vitória da Revolução de Outubro marca o fim da Casa Romanov e da soberania da ditadura czarista. Sob tal regime, as condições de vida e de trabalho pouco se diferenciavam das existentes no século XVIII. A Rússia, mesmo antes de outubro de 1917, já tinha uma cultura rica e diversa. Era um país com uma história milenar em diferentes ramos, como a literatura, música, arte, religião e as tradições folclóricas. Entretanto, esse arsenal cultural não chegava à população. Azevedo e Teixeira (2020) ressaltam que 

culturalmente, os russos exportavam as óperas de Tchaikovsky entoadas pelas companhias de ballet, o teatro de Tchekhov, os versos de Pushkin, a prosa de Gógol, os romances de Górki, a literatura existencialista de Tolstoi e Dostoievski, a exibição do filmes dos irmãos Lumière, a arquitetura bizantina da Catedral de São Basílio e os retratos de Rokotov; no campo, a servidão dá espaço ao endividamento e fome; na cidade, nasce o proletariado russo que, antes de tomar a Rússia pelas próprias mãos, urge pelo direito a uma vida digna (p. 363).

Os bolcheviques se depararam com uma Rússia em estado de terra arrasada. Os problemas eram inúmeros assim como a desconfiança e os ataques. A busca pela consolidação do socialismo perpassaria também pelo enfrentamento a graves problemas sociais e políticos. Além disso, o país também teve de enfrentar o cerco imperialista – com o fechamento de suas fronteiras, bloqueio econômico e boicote político, que visavam sufocar a revolução e uma miséria abissal. O analfabetismo, crônico naquela sociedade, recebeu especial atenção de Lenin, Nadezhda Krupskaya, Moisey Pistrak, Anatoli Lunatcharski e da juventude do partido. Azevedo e Teixeira (2020) relembram que 

A tarefa de edificar o socialismo na Rússia sob as ruínas do czarismo demandava aos soviéticos o rompimento com as relações sociais capitalistas para dar existência a novas normas de produção e reprodução da vida, alinhadas com novas relações de trabalho e educação (p. 360).

Os revolucionários tinham desafios em várias frentes. Em relação à educação, o objetivo era superar o analfabetismo e o modo alienante de produção. Entre os séculos XIX e XX, sete a cada 10 pessoas não sabiam ler e nem escrever na Rússia czarista. O cenário era pior na Ásia Central, norte da Sibéria e demais regiões orientais do império: nove a cada 10 pessoas eram analfabetas (BITTAR & FERREIRA, 2011, p. 389). Outro dado interessante diz respeito ao número de pessoas formadas pelos institutos pedagógicos do país entre 1800 e 1913: seis mil pessoas. 

No ano de 1906, a revista Boletim de Educação, publicada pelo Ministério da Educação czarista, fez a suposição de que a região europeia da Rússia levaria aproximadamente 120 anos para que toda a população fosse alfabetizada; na Sibéria e no Cáucaso, somente após 430 anos; na Ásia Central, região renegada pelo regime, seriam necessários 4600 anos. Em 1913, a Rússia tinha uma população de 160 milhões de habitantes. O país possuía apenas 434 ginásios e 276 escolas, com um total de 160 mil crianças e adolescentes matriculados (BITTAR & FERREIRA, 2011, p. 390).

Para Krupskaya, a construção do socialismo não se resumia somente a alterar o modo de trabalho e o desenvolvimento da economia, mas também o desenvolvimento de um novo tecido social e de novas relações entre os sujeitos. Uma das defesas da militante marxista e educadora é de que o livre desenvolvimento de cada um será condição para o desenvolvimento de todos. Azevedo e Teixeira (2020) ressaltam que “a influência de Krupskaia na vida de Lenin e no modelo de educação soviética a coloca como uma das grandes intelectuais responsáveis pela tarefa do estudo e aplicação de um modelo socialista de educação” (p. 360).

A educação era vista como um dos instrumentos necessários para superação da dominação burguesa e o analfabetismo era uma mazela. Mudar esse cenário era a ordem do dia, mas não seria uma tarefa fácil. A realidade posta era desafiadora e, conforme citam Amboni et al (2013), “a juventude na Rússia revolucionária se esbarrava nas dificuldades encontradas na própria realidade, a saber: a falta de estrutura física, ou seja, de escolas e de pessoal qualificado para a sua efetivação“(p. 271).

Lenin via o processo de alfabetização como um dever da juventude e como uma necessidade para o desenvolvimento da jovem república soviética. Para o bolchevique, educar simboliza indispensavelmente contribuir para o projeto de transformação social e garantir o sucesso da revolução socialista. No VIII Congresso do Partido Bolchevique, que ocorreu em 1919, Lenin diligenciou para que fosse aprovada uma resolução garantindo que o acesso à educação para todas as crianças e adolescentes até 17 anos fosse obrigatória e que o ensino fosse livre de qualquer influência religiosa. 

Em outubro de 1920, durante um discurso no III Congresso da União Comunista da Juventude, Lenin destacou que seria impossível edificar a sociedade comunista em um país assombrado pelo analfabetismo. Apesar do cenário adverso, Lenin defendia que “era um dever imediato erradicá-lo [o analfabetismo], especialmente na população com até 35 anos de idade, quando se comemorasse o décimo ano da revolução” (BITTAR & FERREIRA, 2011, p. 386).

Em 1920 é criada a Comissão Extraordinária da Rússia de Combate ao Analfabetismo ou Comissão de Alfabetização. O objetivo da Comissão, liderada por Anatoli Lunatcharski, era erradicar o analfabetismo o mais rápido possível por meio da implementação de programas de alfabetização em larga escala. Com o compromisso de escritores, educadores e intelectuais, foi lançada a campanha nacional de alfabetização e mobilizou voluntários para ensinar a ler e escrever nas áreas urbanas e rurais. Os voluntários atuavam em uma ampla rede de escolas noturnas, clubes de leitura, bibliotecas públicas e cursos para formação de professores. Buscando atrair pessoas, os métodos adotados pela Comissão incluíam o uso de cartazes, pôsteres, músicas, filmes e peças teatrais. 

Lunatcharski reconhecia que os bolcheviques se depararam com um verdadeiro reino do analfabetismo. Além disso, o comissário constatava que, naquele momento, a escola era inacessível. Durante o I Congresso de Toda a Rússia para a Instrução Pública, de 1922, Anatoli identificou que nove a cada 10 pessoas não poderiam terminar o primeiro grau por falta de uma instituição qualificada. Ademais, a possibilidade de a população rural ter acesso à educação era remota. Na ocasião, Lunatcharski – assim como Lenin – defendeu que a escola deveria ser única e no mesmo nível de instrução para todas as pessoas que viviam na União Soviética.

Entre os objetivos fundamentais do plano educacional pós-revolução destacava-se o seguinte: a nova escola não poderia parecer-se com a antiga. Isso significa que diferentemente do obscurantismo sustentado pelo regime czarista, a nova escola deveria ser gratuita, obrigatória, geral e politécnica para todas as crianças até os 17 anos. Neste projeto, além de fomentar a superação da escola antiga, focava-se também nas condições necessárias para a emancipação das mulheres inicialmente de modo  embrionário, pois consideravam que tal emancipação seria facilitada a partir das instruções dos filhos.

Na busca por um ensino ecumênico, que valorizasse o conhecimento cultural, artístico e científico, foram abertos os

anfiteatros das universidades a todos aqueles que têm o desejo de aprender qualquer coisa, e em primeiro lugar os trabalhadores, permitindo a todos que têm capacidade de acesso ao ensino universitário. Abolir todas as barreiras artificiais entre as novas forças científicas e a cátedra; assegurar a manutenção material àqueles que estudam para dar aos proletários e aos membros do campesinato a possibilidade real de frequentar a universidade (AZEVEDO e TEIXEIRA, 2020, p. 367 apud OYAMA, 2014, p. 147. Grifos nossos)

Os primeiros efeitos foram notados ainda na primeira década. Bittar e Ferreira (2011) salientam que de 1920 a 1926, a população alfabetizada aumentou em 8%. Além disso, “nas aldeias funcionam mais de 22 mil salas de aulas; o rádio e o cinema começaram a incorporar-se aos hábitos dos camponeses“ (p. 380). Em 1929 foi lançada a Campanha da Grande Virada, que objetivava levar educação básica às pessoas que viviam nas aldeias. A Campanha da Grande Virada foi fundamental no desenvolvimento de uma base educacional mais ampla e na superação do analfabetismo em todo o país. Entre 1923 e 1939, em todo território soviético, mais de 50 milhões de analfabetos e aproximadamente 40 milhões de semi-analfabetos aprenderam a ler e a escrever.

A URSS deu um salto de país com analfabetismo crônico para o país das bibliotecas. Na realidade, o consumo da cultura de modo geral foi bastante alimentado. Para além da literatura, a população soviética também frequentava de forma assídua teatros e cinemas. O interesse da população e as publicações não se resumiam à literatura russa e soviética. Jorge Amado foi recepcionado e acolhido pela sociedade soviética e até hoje é um marco na cultura russa. 

A história da União Soviética, como qualquer outra, é permeada de ressalvas e contradições. Entretanto, em nenhum outro momento da história foi registrado tamanho esforço para retirar da escuridão do analfabetismo. Ressalto, para finalizar, que tal esforço foi realizado com pouco recurso e em meio a conflitos nacionais e mundiais. Se hoje a Rússia possui um dos níveis de analfabetismo mais baixos do mundo (0,3%) é consequência direta da relevância dada por Lênin, Krupskaya e executada pela juventude na aniquilação deste problema. Aqueles que tomaram o Palácio de Inverno e vislumbraram uma nova organização da sociedade conseguiram carimbar para sempre o passaporte da História.

É difícil pensar que tamanho esforço seja realizado novamente em qualquer país sob a égide do capital. No século XX ocorreram algumas mudanças parciais em relação ao acesso às escolas públicas no centro do capitalismo. Todavia, na periferia do sistema, entramos no século XXI sem conseguir garantir princípios fundamentais. De forma lúcida, Azevedo e Teixeira (2020) pontuam que a escola da atualidade é organizada por oligopólios capitalistas e, por meio dos think thanks, atuam visando disseminar a ideologia neoliberal e advogar em prol das mudanças educacionais tendo em vista seus interesses financeiros. Desta forma, a superação do analfabetismo que ocorreu na União Soviética só foi possível porque naquele país houve uma revolução de cunho socialista.

Referências

AMBONI, V. et al. Trabalho e educação na construção da Rússia socialista. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 51, p. 266-278, 2013.

AZEVEDO, V., TEIXEIRA, L. A educação na Rússia dos sovietes: contribuições de Vladimir Lenin para refletir “o fim da escola“ no capitalismo. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 12, n. 2, p. 359-371, 2020. 

BITTAR, M., FERREIRA, A. A educação na Rússia de Lenin. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, número especial, p. 377-396, 2011. 

Vitória Regina

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente, artes e esportes.

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