Não acabamos no #EleNão e o número expressivo de ministras é prova da resistência

Organização permanente das mulheres pode ser determinante na retomada da democracia em situações de fortalecimento do autoritarismo 

Por Tainá Jara
Arte: Marina Duarte

O grito de #EleNão, ecoado nas ruas durante as eleições de 2018, era o auge do desespero de um capítulo inaugurado com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Depois de quase cinco anos marcados pelo desmonte e enfraquecimento de políticas públicas, iniciamos um novo governo com um número recorde de mulheres chefiando ministérios. Prova de que resistência nunca é demais, apesar do aparente fracasso.

Apontado por alguns como fator determinante na vitória de Jair Bolsonaro, o movimento foi sem dúvidas mais uma demonstração de resistência das mulheres. Nas últimas duas décadas, intensificamos as mobilizações de rua, reivindicando direitos mesmo sob governos progressistas. Seguimos um fenômeno local-global de mobilizações, em que reivindicações ecoam mais longe mesmo aglutinando características locais. 

Além disso, a crítica à mobilização às vésperas da população ir às urnas coloca no nosso colo a responsabilidade pelos retrocessos do País, quando na verdade a escalada do autoritarismo é consequência de uma série de outros fatores, tanto em nível local, como em escala mundial. Não havia muito o que fazer naquelas circunstâncias. Ir às ruas era uma das poucas alternativas. Além disso, não precisamos carregar mais culpa nessa vida. 

A resistência não impediu os retrocessos, entretanto, deixou um núcleo articulado de mulheres a postos para reconstruir políticas públicas e avançar na conquista de direitos. Talvez até assimilamos mais o valor de estarmos organizadas agora.  Conquistamos no governo do Luiz Inácio Lula da Silva (PT), eleito para o terceiro mandato, a chefia de 11 dos 26 ministérios criados. O número está longe do ideal, porém, nunca foi tão significativo. 

Aparentemente, aumentamos nosso poder de barganha ao sermos decisivas no resultado das eleições. Portanto, nem mesmo a efemeridade característica das atuais mobilizações de rua são de eficácia nula. Revisitar reivindicações de séculos e mostrar que continuamos em luta são exercícios muito potentes e necessários.

 

Diversidade, militância pé no barro e alta formação técnica

O fato é que, apesar das intempéries, não deixamos de produzir grandes e inesperadas lideranças, nos 4 anos de governo Bolsonaro. Exemplo disso é a ascensão da professora e ativista Anielle Franco, irmã da ex-vereadora carioca, Marielle Franco, assassinada a tiros junto de seu motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes, Rio de Janeiro. Em janeiro de 2023, ela foi nomeada Ministra da Igualdade Racial.

A nomeação de Anielle é a concretização da frase “Quiseram nos enterrar, não sabiam que éramos semente”, estampada em muros e que circulou nas redes sociais na época do assassinato, em doce tom de ameaça aos conservadores. A repercussão do caso certamente influenciou na nomeação, no entanto, não queremos que alguém precise morrer para que nossa luta seja reconhecida. 

Mas a articulação entre as mulheres ligadas à vereadora, após o fato, foi decisiva para colocar a pauta racial como prioridade no novo governo e levar a ascensão meteórica da ativista. Uma legítima representante da sociedade civil e, de alguma forma, um exemplo de como novas mobilizações sociais podem operar na criação de lideranças. 

O lastro com a sociedade civil também é uma característica da ministras da Cultura, Margareth Menezes, artista de renome internacional e com atuação social no terceiro setor; Sônia Guajajara, do inédito Ministério dos Povos Indígenas; e da própria ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, que, apesar de ter sua trajetória ligada a criação de políticas públicas em favor das mulheres em governos estadual e federal, foi responsável pela fundação da Central dos Movimentos Populares no Brasil, além de ser escuta ativa de movimentos feministas tradicionais como a Marcha Mundial de Mulheres e das trabalhadoras do MST (Movimento Sem Terra). 

Apesar de já ter sido ministra do Meio Ambiente anteriormente, candidata à presidência em três eleições e hoje ser referência internacional em ativismo ambiental, Marina Silva, tem origem na militância dos povos da floresta e ajudou a liderar o movimento sindical no Acre, juntamente com Chico Mendes. Neste governo, ampliou a relevância de atuação ao expandir o ministério também para área da Mudança Climática.

Articulações de caráter político e formação técnica também renderam espaço às mulheres. Nísia Trindade, presidiu a Fundação Oswaldo Cruz, entre 2017 e 2022. Estar à frente da instituição durante a pandemia deu visibilidade ao seu trabalho, que já contava com impecável trajetória acadêmica como cientista social, e a tornou a primeira mulher a assumir o cargo mais alto do Ministério da Saúde. 

Mesmo pioneirismo foi alcançado pela ex-voleibolista e medalhista olímpica Ana Moser, cuja fundação da ONG Instituto Esporte e Educação inaugurou uma fase de caráter social na carreira de sucesso como atleta; e pela ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, a engenheira Luciana Santos. 

Assim como Guajajara, a economista Esther Dweck recebeu o desafio de chefiar uma nova pasta; O Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos é responsável pelas ações de reforma da máquina pública e pelo fomento à eficiência governamental.

A representatividade feminina não ficou imune às negociações de caráter meramente políticos. Simone Tebet assumiu o Ministério do Planejamento e Orçamento, após ficar em terceiro lugar no primeiro turno das eleições presidenciais e declarar apoio a Lula no segundo turno das eleições.  O comando da pasta é espécie de retribuição, embora a capacidade técnica da ex-senadora seja notória.

Já a nomeação de Daniela Carneiro, a Daniela do Waguinho, no comando do Ministério do Turismo, tem como objetivo maior aumentar a composição do governo no parlamento. Filiada ao União Brasil, a pedagoga é uma caminho para atrair os votos de um dos maiores partidos do Congresso Nacional. 

A relação entre movimentos de rua, como #EleNão, e a representatividade das mulheres em cargos de decisão pode não ser imediata e nem de ritmo diretamente proporcional. Conforme cálculo realizado pela professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Hannah Maruci, o Brasil pode levar 120 anos para ter equilíbrio entre homens e mulheres na política. A rua, no entanto, é o que retroalimenta nossa organização e é instrumento inquestionável de pressão a qualquer que seja o poderoso. 

Tainá Jara

Jornalista e pesquisadora em Comunicação. Interessada em mídia, estudos de gênero e direitos humanos. Na horas vagas vai de cinema, música e, sim, política.

MARINA DUARTE

Ilustradora e quadrinista pantaneira. Feminista antiproibicionista interessada pela profunda mudança social.

Compartilhe:

Relacionadas

Leave a Reply