Caso Moïse: dois meses de barbárie e apagamento de identidade

Escravidão, vilipêndio da memória, pedido de indenização e erros da imprensa: em que situação está o caso do garçom assassinado a pauladas em quiosque da Barra da Tijuca

Por Mylena Fraiha e Norberto Liberator

O assassinato do congolês Moïse Kabagambe, que completou dois meses no dia 24 de março, saiu das manchetes, manifestações de rua e destaque nas escaladas de telejornal para breves notas na mídia tradicional. Na Justiça, no entanto, a investigação segue com novas nuances sobre o caso. O Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ) entrou com uma ação civil pública contra os sócios dos quiosques Tropicália, onde ocorreu o homicídio, e Biruta, onde trabalhavam os homens que são vistos em vídeo espancando Moïse. 

Além do homicídio e da tortura registrados, os estabelecimentos são alvo de processo por empregar pessoas em condições análogas à escravidão (termo legal para “escravidão”). Em depoimento, foram relatadas rotinas exaustivas que chegavam a 12 horas de trabalho, além de repressão ao descanso dos funcionários. Os procuradores também denunciaram a Orla Rio, concessionária onde funcionavam os quiosques, após serem identificados ao menos 256 trabalhadores sem registro. A Prefeitura do Rio de Janeiro também foi denunciada por descaso na fiscalização.

Com base na idade e na expectativa de vida de 76 anos, o MPT pede 3,4 milhões de reais em pensão para a família; indenização de dois milhões de reais por dano moral individual; e 285,4 mil reais de indenização trabalhista, além de mais 11,5 milhões de reais a entidades sem fins lucrativos, pelos danos causados à coletividade, e um salário mínimo à mãe do garçom – Lotsove Lolo Lay Ivone – até o fim do processo.

O Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) havia apresentado denúncia contra Fábio Pirineus da Silva, o “Belo”; Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca, o “19”; e Brendon Alexander Luz da Silva, “o Totta”, que aparecem em vídeo agredindo Moïse Kabagambe em um quiosque na capital fluminense. Com a decisão da juíza Tula Corrêa de Mello, foi decretada a prisão preventiva dos acusados. A promotoria argumentou que, em liberdade, os indiciados poderiam colocar em risco a investigação criminal e, principalmente, a segurança da família do congolês.

Reprodução da não-existência 

Mais de dois meses depois do assassinato do jovem congolês, o caso continua evidenciando nuances do racismo para além da barbárie explícita do homicídio. Moïse enfrentou, postumamente, o vilipêndio de sua memória, por parte dos indiciados pela autoria do crime que o acusam de ser “um bêbado que incomodava” – como se esta fosse justificativa plausível –, além da exposição de imagens da tortura de seu corpo e, até mesmo, do direito de ser chamado pelo próprio nome. Os três fatores possuem cumplicidade ou autoria de grandes veículos de imprensa.

No caso da narrativa dos presos pelo crime, o jornal O Estado de S. Paulo dedicou a chamada de uma reportagem a destacar que, segundo o depoimento dos homens, Moïse teria causado confusão por querer bebida fiado. Com a repercussão negativa do título, o veículo mudou a chamada, mas o endereço do link continua com o mesmo texto. O vídeo do assassinato foi mostrado por veículos de tevê como Globo, SBT e Record. Já a negação do direito ao nome foi reproduzida por dezenas de veículos e até por organizações militantes, como CUT e MST.

Como já reproduzido por veículos de diversas partes do mundo, Moïse era um refugiado negro que veio viver no Brasil ainda criança, quando fugia, junto à família, da guerra civil no Congo Democrático. O sobrenome de Moïse, que é Kabagambe e não “Kabamgabe”, está grafado nos documentos divulgados pela própria imprensa e nas camisetas utilizadas por membros da família. No entanto, a grafia errada foi veiculada por portais como G1, R7, Band, Capricho, Congresso em Foco, CNN, BBC, Fórum, TV Cultura, Mídia Ninja e site oficial do PT, entre outros.

 

Embora à primeira vista possa parecer um detalhe menor, a falta de cuidado com a grafia do nome pode denotar dois fatores preocupantes que podem estar relacionados: um é a falta de apuração jornalística, ao se reproduzir sucessivamente a forma como foi registrado pelo primeiro meio de comunicação a noticiar o caso, sem checagem; o outro é a reprodução do pensamento colonial, persistente no jornalismo hegemônico.

A reprodução da não-existência é visível quando sua origem, simbolizada pelo seu sobrenome, é desconsiderada até mesmo por aqueles que se levantam contra a barbárie de sua morte. O descuido na apuração e a permanência no erro são sintomas sobre o lugar ocupado por pessoas de origem africana na sociedade brasileira. Não se trata apenas de equívoco jornalístico. É a evidência do não-reconhecimento de etnias, culturas e identidades que fogem do padrão branco-ocidental.

Pedro Aguiar, jornalista e professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que a perpetuação da grafia equivocada não ocorre à toa. “Se fosse um nome de origem europeia, alguém teria parado para olhar: ‘vamos ver a grafia certinha’. Como não é, estão reproduzindo e usando a desculpa de que saiu na mídia assim, então é assim. Com outros critérios de checagem. Eu não acho que o problema é só da imprensa. Tenho visto ativistas, inclusive de direitos negros, que não corrigiram”.

Para Aguiar, o que mais chama atenção não é o erro em si, passível de ocorrer na prática jornalística, mas o fato de não ter sido corrigido e continuar a ser reproduzido. “Parece ser um erro banal, mas erros banais são corrigíveis. O que está chamando a atenção nessa história toda é a perpetuação do erro. Não tiveram o cuidado de sequer olhar os documentos que foram reproduzidos e as camisetas da família”.

O professor também ressalta a falta de apuração ou de correção da escrita por parte de movimentos e pessoas que têm se solidarizado com Moïse e se posicionado contra a violência de cunho racista. “Não tiveram a atitude de checar: ‘será que é assim mesmo?’. Estou falando não só de jornalistas, mas do público em geral e de pessoas da sociedade civil que estão envolvidas com essa causa. Então me parece que, mesmo entre elas, está havendo um desleixo com o direito à memória do Moïse”.

Mylena Fraiha

Jornalista e pesquisadora em Comunicação. Possui interesse nas áreas de meio ambiente, política e direitos humanos, além de produções audiovisuais.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

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