De burca ou de shortinho todos vão me respeitar?

Seja no Oriente ou Ocidente, tratar o corpo feminino como algo público, sobre o qual todos podem opinar, não é exclusividade de fundamentalistas

Por Tainá Jara
Arte por Guilherme Correia

A frequência das palavras pode até ter reduzido na fase adulta, mas frases como “fecha as pernas” ou “esse short tá curto demais” ecoam na minha cabeça até hoje, na hora de me vestir. A patrulha sobre corpos femininos começa cedo extrapolando o desconforto e consolidando um verdadeiro trauma. Ferida que limita a liberdade e se torna parte da gente, mesmo com todos os esforços para ressignificar nossos corpos na sociedade.

Debate sobre as vestimentas femininas ganhou maior evidência com a volta do Talibã ao poder no Afeganistão, após 20 anos de dominação estadunidense. Fundamentalista, o grupo é considerado uma ameaça aos direitos humanos e especialmente às mulheres. A imposição do uso da burca, que cobre até mesmo os olhos, é a expressão estética máxima desta dominação – ainda que determinados tipos de véu, em diferentes contextos de países muçulmanos, sejam utilizados como forma de resistência cultural.

O uso de roupas como o Niqab, que deixa apenas os olhos à mostra, imposto pelo grupo, representa, no entanto, apenas parte da opressão sofrida. O açoite e a execução de mulheres era prática comum no país sob o comando do Talibã, e devem voltar a ocorrer. Sem chances de estudar ou ter qualquer autonomia financeira, muitas tiveram de se submeter ao regime para sobreviver. 

Algumas tentaram resistir, como é o caso emblemático da estudante Malala Yousafzai, baleada aos 15 anos por membros do grupo extremista, na cidade de Mingora, no Paquistão, por defender o direito das mulheres estudarem. Ela sobreviveu, foi a pessoa mais jovem a ganhar o Prêmio Nobel da Paz e tornou-se porta-voz da causa em todo mundo. 

A narrativa sobre o contexto vivido em países ocidentais comandados por fundamentalistas religiosos, especialmente as feitas pela imprensa, possuem tom de indignação e denúncia. Os comportamentos são encarados com certo distanciamento. O tom de estranhamento predomina.

Mas misoginia não é exclusividade na cultura oriental ou entre mulçumanos. A pergunta que me vem à cabeça ao analisar estas coberturas é: nos países ocidentais, as mulheres podem vestir-se como querem? A lei geralmente não impede. Porém, há um pacto social informal que diz que não. 

Açoites ou execuções de mulheres são tão cruéis quanto os casos de violência em razão de gênero registrados no Brasil. Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, a cada 8 minutos uma mulher é estuprada. A quantidade de feminicídios também cresceu no último ano. São mais 7,1% em relação aos casos de 2019, sendo mulheres negras 66,6% das vítimas e 56,2% das vítimas tinham entre 20 e 39 anos, em sua maioria elas foram assassinadas por companheiros ou ex-companheiros, somando 89,9% dos casos.

Cometidos com requintes de crueldade, os crimes contra a mulher envolvem de desfigurações a mutilações. Portanto, não menos chocantes e violentos do que as “punições” aplicadas em territórios dominados pelo grupo extremista.

Ao mesmo tempo que falamos de intolerância em países mulçumanos, há menos de 10 anos, mulheres de vários países saiam às ruas na Marcha das Vadias, para se manifestar contra a culpabilização das vítimas de estupro pelas roupas que usavam. 

Os protestos, iniciados no Canadá, tomaram o mundo, e foram realizados em vários países. Marcados pela performance, com as manifestantes de roupas íntimas e corpos amostra. A motivação foram os diversos casos de abuso sexual em mulheres da Universidade de Toronto, ocorridos em janeiro de 2011. Na ocasião, o policial Michael Sanguinetti fez uma observação para que “as mulheres evitassem se vestir como vadias, para não serem vítimas”.

Apesar da reação, em 2019, o deputado estadual Jessé Lopes, de Santa Catarina, revelou posicionamento semelhante ao proferir voto contrário a projeto de lei contra a cultura do estupro da deputada Luciane Carminatti (PT). Em discurso na Assembleia Legislativa, ele disse: “Se você quer andar de sainha, decote, ótimo. Se você quer chamar a atenção dos estupradores, você sabe o risco que está correndo. Se você se deparar com essa situação, lamento”. Mesmo assim, a proposta foi aprovada. 

É preciso um olhar interseccional sobre os casos 

Não podemos desconsiderar a situação menos desfavorável das canadenses e de outros países ocidentais em relação a direitos. Apesar da violência ainda ser recorrente, sair às ruas em protesto, sem grande repressão, é privilégio de democracias minimamente constituídas. 

A origem da reivindicação também facilita: parte de mulheres universitárias. Certamente, na sua maioria, de classe média. Possivelmente, branca. De qualquer forma, mobilizações pelo direitos das mulheres continuam a confrontar tabus, mesmo em contexto de efervescência e de facilidade em mobilizações em rede, como o da quarta onda feminista.

Considerar tais fatores também é importante para entender a situação vivida por parte das mulheres orientais. Porém, não podemos relativizar a extrema submissão imposta de forma violenta, em pleno século XXI, e que as práticas muçulmanas favorecem a perpetuação do patriarcado e das opressões. Mas, também é preciso reconhecer o olhar colonizado pelo qual analisamos o Oriente.

O debate sobre o uso da burca também ganhou notoriedade em outros momentos. Em 2010, países europeus cogitaram proibir o uso da vestimenta. A ideia surgiu em momento de intensas intervenções militares de países ocidentais em territórios árabes.

Na ocasião, o comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa, Thomas Hammarberg, criticou a proibição dos véus, usados por mulheres islâmicas, porque essa imposição “atenta contra a vida privada”. A exigência chegou a ser considerada islamofóbica, pois várias mulheres utilizam a vestimenta como forma de evitar ações violentas e também como ato de resistência cultural. 

De acordo com a feminista argelina, Wassyla Tamzali, as tensões entre Ocidente e Oriente, seja através das intervenções militares no Oriente, seja da presença de migrantes ocidentais na Europa, frequentemente são analisadas tomando o lugar das mulheres como eixo de problematização dessas sociedades.

Segundo ela, por trás de um discurso sobre as mulheres e não das mulheres se esconde um rearranjo do sistema patriarcal do que maior igualdade em direitos, economia e políticas sobre nós. A condição das mulheres muçulmanas acaba sendo utilizada em favor de um discurso colonizador, especialmente após a tensão mundial instaurada ou reatualizada pelos acontecimentos do 11 de Setembro, ocorrido em 2001.

A burca representa apenas parte superficial de um debate muito profundo. Apenas o direito de deixar o corpo à mostra não impede mortes violentas pelo fato de ser mulher. A liberdade deve ser o objetivo alcançado e os meios para tal não podem se utilizar de imposições igualmente opressoras. 

 

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