Não se cale: do #MeToo a João de Deus

Potência e limites das vozes feministas nas denúncias em massa de assédio sexual

Por Tainá Jara
Arte por Marina Duarte

A roupagem de celebração e o tom de data dedicada ao consumo até colou por um bom tempo, mas não convenceu diante de evidências cruéis. Retomar o caráter político do 8 Março, conhecido como Dia Internacional da Mulher, é tarefa diária. De alguma forma, sabe-se que a luta deve ser a tônica do debate sempre, especialmente neste mês. 

Ser mulher exige enfrentar batalhas diárias e situações inimagináveis de determinados pontos de vista. A tecnologia, aliada às redes sociais da internet, tornou-se ferramenta quase indispensável na articulação dos movimentos feministas contemporâneos. Ajuda a dar potência às reivindicações, permite o cruzamento de histórias, dá a relatos individuais caráter coletivo, permite que acontecimentos locais se tornem bandeiras de lutas globais. 

O resultado pleno destas articulações costuma se mostrar nas ruas. É ali onde os movimentos se materializam. Embora as lutas feministas sejam constantes, há momentos na história considerados marcos dessas reivindicações, o que é chamado por alguns pesquisadores de ondas feministas, sendo o direito ao voto responsável por inaugurar esta contextualização de forma emblemática.

Na última década, as novas formas de mobilização, a diversificação de pautas e de protagonistas abriram debate para consolidação de uma pretensa quarta onda feminista. Movimentos como o Slutwalk, – surgido no Canadá em 2011, e chamado de Marcha das Vadias no Brasil criticando a culpabilização das vítimas em casos de estupro- ; e #NiUnaMenos – campanha contra o feminicídio iniciada na América Latina em 2017 – ganharam versões em diversos idiomas e são alguns dos exemplos de mais uma “Primavera Feminista”. 

O balanço das mobilizações dos últimos anos permite avaliar a repercussão de denúncias em massa de casos de assédio moral e sexual. Unir forças e encontrar coletividade em casos individuais deram sustentação para comprovar crimes praticados há décadas e cujas vozes que ousaram se levantar acabaram silenciadas numa sociedade estruturalmente machista. 

De Hollywood a Abadiânia – O aparente leve magnetismo cinematográfico e a aparente tranquilidade do alento espiritual serviram para esconder um contexto de horror crônico. Em lugares talvez improváveis, mulheres foram subjugadas, sabotadas e estupradas. O sonho e a cura desejados tinham um preço alto cobrado por poderosos criminosos sexuais.

Revelados pelo movimento #MeToo e Time’sUp e pela série de denúncias envolvendo o médium João de Deus, os escândalos balançaram estruturas sólidas, obrigaram a Justiça se mexer e, de alguma forma, resultaram na penalidade dos responsáveis.

A luta contra a cultura de assédios que há tempos era travada nos bastidores do cinema é o estopim para o  #MeToo  e  Time’sUp. A enxurrada de acusações contou com carta aberta publicada em jornal, depoimento nas redes sociais, além de declarações em entrevistas e envolviam atores e diretores.

O caso mais emblemático foi do produtor de cinema Harvey Weinsten. Algumas denúncias de agressão sexual datavam de 2006, apesar de ganharem repercussão apenas em 2017. A série de relatos mostrou que os crimes eram praticados de forma recorrente há décadas. 

Weinstein chegou a ser sentenciado a 23 anos de prisão, depois de ser considerado culpado de duas das cinco acusações de má conduta sexual às quais respondia na Justiça americana. O produtor, no entanto, foi inocentado de acusações de estupro se livrando da possibilidade de prisão perpétua. 

O impacto internacional pode não ter sido o mesmo, mas o número de denúncias choca. No ano seguinte a eclosão do #MeToo, mais de 300 acusações contra João Texeira de Faria, o médium João de Deus, foram feitas à Justiça.

Já eram boatos os casos de assédio ocorridos para além dos muros da Casa Dom Inácio de Loyola, no interior do Goiás, onde eram conduzidos os trabalhos espirituais, quando reportagem e entrevista com uma das vítimas foi exibido no programa “Conversa com Bial”, da Rede Globo.

Na ocasião, a holandesa Zahira Lieneke Mous foi a única das vítimas que topou mostrar o rosto. Tempos antes, ela já havia relatado o caso em uma rede social. O escândalo pegou seguidores do médium, incluindo grandes celebridades nacionais e internacionais, de surpresa.

Na época das denúncias, cheguei a ouvir de um editor do jornal onde trabalhava que a orientação era não reproduzir notícias sobre o assunto. A justificativa era tornar o caso “uma nova Escola Base”. A comparação de supostos depoimentos de crianças numa investigação conduzida de forma desastrosa, nos anos 90, aos depoimentos de, até aquele momento, pelo menos 30 mulheres adultas, demonstra a situação de desconfiança a que as vítimas são submetidas. 

Ao final de três dias, as denúncias encaminhadas à força-tarefa do Ministério Público já passavam de 300 e incluíam relato da  própria filha de João Teixeira.

Pensar que são necessárias dezenas e até centenas de acusações para comprovar crimes sexuais, sem deixar margem para dúvida, dá a dimensão do lugar de descrédito a que as mulheres são muitas vezes colocadas na sociedade. 

Como sensação ruim, a invisibilização é velha conhecida das mulheres. O contexto de levante coletivo traz alguma concretude aos traumas. A parte boa é que, talvez mais do que nunca, sabemos que não estamos sozinhas. Será mesmo?

Apesar do avanço importante desta mobilizações, precisamos considerar o lugar de onde partem tais denúncias. Se até atrizes bem sucedidas de Hollywood precisam se unir para serem ouvidas, o que fazem aquelas cuja invisibilidade é companheira quase diária, agravada pela pobreza, o racismo, a deficiência e outras complexidades? 

As vítimas de João de Deus, apesar do aparente caráter filantrópico de seus trabalhos, também possuíam alguma condição financeira. Algumas vieram de fora do Brasil. O grupo que conseguiu mostrar o rosto e falar sobre o assunto revela a preferência fenotípica padrão do criminoso. Em comum, todas tinham a situação de vulnerabilidade emocional ao procurar pelo médium.

Apesar da amplitude, as denúncias de assédio sexual em massa estão longe de serem viáveis e abarcar todas as vítimas. Trata-se de instrumentos, em alguma medida, eficiente, mas traz consigo os limites decorrentes de desigualdades históricas. Portanto, a necessidade de se refletir enquanto se faz ainda acompanha o movimento feminista – se não for justamente uma das características vitais a sua existência.


Para quem quer continuar no assunto, fica a dica:

Tainá Jara

Jornalista e pesquisadora em comunicação. Interessada em mídia, estudos de gênero e direitos humanos. Na horas vagas vai de cinema, música e, sim, política.

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