Covardia avança, resistência contra-ataca

De Paris a Caldas Novas, enfrentamento a casos de racismo no futebol mostra que conivência histórica começa a desmoronar

Por Mateus Moreira, Gabriel Neri e Norberto Liberator
Arte por Fábio Faria

As competições futebolísticas, de maneira geral, foram por diversas vezes palco de preconceitos raciais. Em sua grande maioria, os insultos racistas partiam de torcedores, ou de jogadores de uma das equipes. No entanto, no decorrer de dezembro, a situação, que já era repugnante e inaceitável, ficou ainda pior. No início do mês, o racismo foi manifestado por um membro da arbitragem, ou seja, de uma autoridade em campo que supostamente zelaria pelo regulamento e pelos valores da federação à qual serve; e, mais recentemente, os insultos foram contra uma criança.

Na última quarta-feira (16), o alvo de agressões verbais racistas foi um garoto de apenas 11 anos. O menino Luiz Eduardo, que atua no time sub-11 do Uberlândia Academy, relatou ter sido por diversas vezes referido como “o preto” pelo treinador da equipe Set Esporte, Lázaro Caiana, durante um jogo válido pela Caldas Cup, em Caldas Novas, interior de Goiás.

Mesmo com seu time tendo ganhado a partida, Luiz deixou o campo chorando. Perguntado sobre o motivo, deu a resposta gravada em vídeo que viralizou nas redes sociais. O garoto prestou depoimento na sexta-feira (18) e um boletim de ocorrência foi registrado. Caiana foi afastado do clube. Luiz recebeu apoio de atletas como Gabriel Jesus, Hugo Souza, o salonista Arthur Guilherme e Neymar, que esteve presente na partida em que a manifestação racista de um árbitro provocou a retirada de ambas as equipes de campo.

No caso da partida do dia 8, o romeno Sebastien Coltescu foi o personagem central do lamentável episódio, no jogo entre Paris Saint-German (PSG) e Istanbul Basaksehir, deixando de lado as questões futebolísticas, como o aguardado brilhantismo de Neymar e a despedida do clube turco da temporada na UEFA Champions League. O quarto árbitro proferiu insultos racistas ao ex-jogador camaronês e membro da comissão técnica, Pierre Webó, que afirmou em entrevista à Rádio Onda Cero que Coltescu teria dito “retire esse negro” ao árbitro da partida. 

O caso Coltescu evidencia uma conduta hipócrita: UEFA, responsável por aquela que é considerada a maior competição de clubes do mundo, adota constantemente discursos contra o racismo, acrescentando faixas na entrada dos jogadores, dizeres nos uniformes, dentre outros. Mas como uma instituição que supostamente luta contra preconceitos raciais permite que uma autoridade de campo, teoricamente capacitada, se intitule no direito de se referir a um membro de comissão técnica, proferindo tais palavras?

Na teoria, uma entidade com tais posturas diante de câmeras e patrocínios, teria como dever realizar, internamente, um treinamento básico envolvendo suas consideradas ‘’autoridades de campo’’, visando a conscientização e reeducação de seus profissionais, mesmo tendo em vista que o ocorrido poderia ter sido evitado pelo simples ‘’bom senso’’.

O futebol, finalmente, vence o racismo

Por diversas vezes, quando futebol e racismo se encontraram, as acusações da vítima foram colocadas abaixo do esporte. Em diversos casos, jogadores, vítimas de insultos, eram expulsos de campo por suas reações, para que as partidas fossem normalmente retomadas. Por outras vezes, jogadores que sofreram insultos racistas tentaram se retirar de campo, mas não tiveram apoio e foram convencidos a seguir na partida. 

Entretanto, na noite em Paris, o Parc de Prince foi palco de uma revolta histórica. Ao perceberem o ocorrido, jogadores do PSG também saíram em defesa da vítima. Neymar, o capitão Marquinhos e a jovem promessa francesa Kylian Mbappé, foram os primeiros a cobrar um posicionamento da arbitragem. Os parisienses, inclusive, se recusaram a retomar a partida enquanto o quarto árbitro estivesse em campo. ‘’Não vamos jogar com esse cara aqui’’, disse Neymar que foi complementado por Mbappé: “Se esse cara não sair, nós não jogamos”. 

Pierre Webó também revelou ter recebido apoio, novamente, de jogadores do PSG, mas desta vez, fora de campo. ‘’ Leonardo (diretor do PSG), Mbappé e Neymar me encontraram depois no vestiário’’, afirmou. Percebendo a proporção da situação, a equipe do Istanbul Basaksehir se retirou de campo, acompanhada dos jogadores do PSG. A partida ficou suspensa, até que a UEFA enviou uma ordem para que a partida fosse retomada. Os parisienses até voltaram ao túnel de acesso, mas os jogadores do Istanbul sequer saíram do vestiário e a partida foi oficialmente adiada para quarta-feira (09). 

Até o momento da paralisação, a partida estava paralisada em 0 a 0, até que o atacante Demba Ba marcou um golaço. O senegalês se dirigiu ao quarto árbitro e o questionou: “Você nunca diz: ‘este cara branco’, você diz ‘este cara’. Então me ouça, por que quando você menciona um cara negro você diz ‘este cara negro?”

Fora dos gramados, outra vitória: o Conselho Anti-Discriminação Romeno, reconheceu a acusação feita ao quarto árbitro. “É racismo sem possibilidade de interpretação. Ele poderia ter identificado o jogador por tantos outros detalhes e ignorar sua cor”. Quando retomada, no dia seguinte, a partida contou com outro grande gesto diante da execução do hino da UEFA: jogadores e equipe de arbitragem – que foi completamente modificada – se colocaram de joelhos e cerraram os punhos em forma de protesto.

O 5 a 1 do Paris Saint-Germain, que contou com hat-trick de Neymar e doblete de Mbappé, foi apenas um complemento da noite em Paris. O clima pesado que possuiu o mundo do futebol e adentrou o Parc de Prince, após o lamentável episódio de injúria racial, deu lugar à ‘’pequenos’’ gestos, que no meio esportivo fazem grande diferença, diante de seu reflexo na sociedade. 

Pouco mais de uma semana após o ocorrido, juridicamente o caso ainda não teve um desfecho. Punições ainda não foram aplicadas ao quarto árbitro da partida, Sebastien Coltescu, e o escândalo parece cair no esquecimento. A expectativa é que tudo se resolva da forma mais justa possível, mas a atitude de se retirar de campo, assim como o B.O. e o afastamento de Caiana do time de base em que era técnico, simboliza algo que já deveria ser costume em nosso meio: racismo e futebol não podem ocupar o mesmo campo. A essência do esporte é muito maior que um simples jogo e o racismo jamais fará parte dela.

Mateus Moreira

Colunista

Estudante de jornalismo, apaixonado por futebol e amante de política.

Gabriel Neri

Repórter

Estudante de jornalismo, amante de futebol sul-americano e da América Latina.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

Fábio Faria

Diretor de arte

Estudante de jornalismo e ilustrador. Interessado em artes, cultura e assuntos do espectro político.

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