O inimigo político enquanto “louco”

O debate sobre explanações danosas de um líder político não pode ser feito individualizando e patologizando o emissor

Por Carolina de Mendonça
Colaborou Norberto Liberator

“Loucura” é um termo polissêmico. Seus significados dependem do local, tempo e contexto em que a palavra é empregada. Historicamente os loucos são segregados dos espaços sociais, sendo nos últimos séculos a loucura na sociedade ocidental vista como antagônica à razão.

A insanidade tende a ser definida como atitudes de um sujeito que fogem da lógica vigente em comportamentos ou discurso. Contudo, tal significado é raso e bastante tênue pela dificuldade de definir, de forma precisa, o aceito como correto e o que foge a esta norma. Por muitas vezes, a classificação de psicopatológico é utilizada como forma de controle aos que vão contra as normas sociais e não necessariamente aos que possuem um sofrimento psíquico.

Nos últimos séculos, a construção do louco perpassa por uma associação ao crime. Diversos produtos de mídia de massa como filmes e séries de ficção criam vilões perversos com histórico de transtornos mentais. Há espetacularização de assassinos em série e a avaliação psicológica destes, que se mal apresentada, pode gerar no público leigo uma ideia de associação direta de psicopatologias e traumas à realização de atos criminosos. A problemática também é reforçada pela mídia policialesca brasileira, que por muitas vezes utiliza de termos como “psicopata”¹ como sinônimo de hediondo, distorcendo o significado da palavra.

Na política nos últimos anos, houve significativa intensificação de críticas ao discurso adversário de “louco”, com a ascensão da figura de Donald Trump, atual presidente estadunidense, que possui tendências fascistas. O discurso de Trump explana sua política de extrema-direita, ataca pilares da democracia e distorce informações, gerando narrativas incertas a população. O discurso “insano” serve a uma política que independe da saúde mental de quem o profere.

O debate sobre explanações danosas de um líder político não pode ser feito individualizando e patologizando o emissor. No Brasil, alegação de insanidade não é considerada para processos de impeachment, sendo de baixa utilidade política conhecer possíveis transtornos de um governante. Além disso, pessoas com transtornos psíquicos no Brasil não podem ser responsabilizadas de forma completa por atos criminosos. Contudo, responsabilização no país têm raça e classe. Pessoas pobres e negras são a maioria entre as depositadas em institutos de psiquiatria forense, híbrido de manicômio e prisão, enquanto pessoas com poder social utilizam de diagnósticos como forma de não responder por atos, mesmo que não ligados necessariamente a patologia referida.

No Brasil, em 2018, intensificaram-se os debates sobre possíveis diagnósticos psicopatológicos de figuras políticas. Um exemplo é o que ocorreu em relação à ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e com o presidente da República Jair Messias Bolsonaro.

Pouco após o anúncio dos ministros de Bolsonaro, circulou na internet um vídeo de uma pregação de Damares Alves, no qual a ministra contava uma manifestação religiosa em que Jesus teria surgido em uma goiabeira. O episódio teria ocorrido durante sua infância e tinha relação com a culpabilização sentida por ela após ter sofrido abuso durante anos.

Houve, na internet, a reação de chamar o discurso da política de psicótico², baseando-se nos estereótipos acerca do termo. O discurso inflamado da pastora era adaptado ao contexto ao qual estava inserido e tinha utilidade política. A comoção causada pelo triste relato logo se tornou identificação e medo. Diferente do sugerido por profissionais que trabalham com crianças em situação de vulnerabilidade, a pastora sugere que a resolução para as problemáticas estaria apenas nas instituições religiosas. A solução para a problemática de abusos contra crianças é colocada na instituição religiosa

No início de 2019, pouco depois de assumir o cargo como ministra, viralizou um novo vídeo de Damares com dizeres que foram considerados novamente psicóticos. Com a bandeira do Estado de Israel ao fundo, a ministra gritava sobre uma “nova era”, na qual “menino veste azul e menina veste rosa”. A política havia afirmado anteriormente que na sua gestão meninas iriam se tornar “princesas” e meninos, “príncipes”.

O seu discurso aparentemente “lunático” é tido por parte do espectro da esquerda como “cortina de fumaça”. Contudo, ao manipular o medo das pessoas de um “demônio” que destruirá as famílias, Damares conquista e aliena parte significativa do eleitorado bolsonarista.

A ministra, em suas falas, reforça a cis-heteronormatividade como única possibilidade. A pastora, em diversas ocasiões, relacionou a comunidade LGBT+ a um projeto “do diabo” que destruirá a família. O discurso absurdo da política acaba por, na prática, reforçar violências contra minorias de gênero e sexuais.

Apesar do novo nome do ministério trazer o termo “mulher”, a política empregada pela ministra dificultou acesso desta categoria a direitos como o aborto legal nos contextos de estupro, risco à vida e anencefalia. O obstáculo imposto se fez explícito quando a ministra agiu contra a interrupção de gravidez de uma criança que corria risco de vida. O discurso fragmentado da ministra não pode ser interpretado apenas como um “surto psicótico” ou cortina de fumaça. Seu uso tem importante papel de dominação e consequências trágicas e palpáveis em grupos marginalizados.

“Psicótico” e “psicopata” são dois termos comumente atribuídos ao atual presidente da República, pelo fato de seu discurso ser desorganizado e vil. O veículo de imprensa Aos Fatos organizou as declarações falsas de Jair Bolsonaro desde que tomou posse da presidência, que são milhares. As distorções tendem a desqualificar trabalho de instituições, perseguir veículos de imprensa e instigar o medo da “ameaça vermelha” vinda da esquerda – entendendo como esquerda todos aqueles que se posicionam contra a gestão do presidente, incluindo antigos apoiadores.

No carnaval de 2019, em diversos pontos do país, houve gritos e fantasias críticas ao governo. Como forma de depreciar a festa popular o governante compartilhou um vídeo obsceno como a “verdade sobre blocos de rua”. O presidente também fez, à época, um tuíte viral no qual questionou o que seria “golden shower”, prática sexual presente no vídeo compartilhado.

A série de publicações aparentava falta de noção e até mesmo a possibilidade de um transtorno mental. Contudo, seu discurso busca a desvalorização moral dos que vão a uma festa popular, gerando pânico aos grupos mais conservadores. Bolsonaro definiu aqueles que criaram oposição a ele nas ruas como depravados perigosos, a aparente “insanidade” do estadista se dá como estratégia de desmerecer seus adversários políticos – no caso, a própria população.

Em outro episódio infame, o Bolsonaro provocou de forma pessoal o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, ao criticar a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pelo desfecho do processo de Adélio Bispo, que o agrediu durante campanha eleitoral. O presidente afirmou que contaria um dia o que houve com o pai de Felipe o militante do movimento estudantil Fernando Santa Cruz, que foi dado como desaparecido durante a ditadura civil-militar brasileira.

A fala hedionda foi associada, por opositores do presidente, a um diagnóstico de psicopatia. Não é possível definir se há ou não uma patologia sem uma avaliação psíquica de Bolsonaro, contudo, é possível avaliar seu discurso no contexto político. Na provocação do atual presidente da República há uma ameaça, a qual explicita um projeto de governo fascista que tem em seus pilares o desmonte das instituições democráticas e o aniquilamento dos opositores.

Com a chegada da pandemia de Covid-19, os discursos de Jair Bolsonaro se tornaram mais fragmentados e mais perversos. As informações sobre a infecção eram constantemente distorcidas, travando diversos embates com órgãos de saúde como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e cientistas. O presidente chegou até mesmo a estimular seus eleitores a invadir hospitais e filmar o estado dos leitos. Após a sugestão, grupos invadiram hospitais utilizando de violência e com gritos de que a pandemia se tratava de uma “mentira”.

“Inconsequente, irresponsável e insano” foram os três adjetivos usados para descrever o presidente na capa da edição nº 2653 da Revista IstoÉ, em referência ao personagem Coringa, da DC Comics. Bolsonaro, nesta semana, fez mais uma declaração sádica sobre a pandemia que vitimou mais de 170 mil pessoas no Brasil.

O clássico personagem cultura pop na capa é inspirado no filme “Coringa” (Todd Phillips, 2019). O longa-metragem a uma adaptação sobre a origem de um dos vilões mais famosos dos quadrinhos, nesse filme Arthur Fleck é um homem com problema neurológico e alguns transtornos psíquicos que aspira a carreira de comediante em Gotham City. Arthur é constantemente humilhado na inóspita cidade e, ao utilizar da violência como resposta às agressões que sofre de forma constante, se transforma no Coringa, instigando uma rebelião generalizada e desorganizada.

O Coringa é um sintoma de uma sociedade extremamente desigual e violenta que o oprime. Já Bolsonaro no contexto brasileiro não é um sintoma da violência estrutural, mas elemento central da selvageria. O presidente não reage às opressões, mas explicita uma proposta de extrema-direita que acirra a desproporção da distribuição de renda e naturaliza a brutalidade do sistema.

O discurso presente na capa dessa revista é nocivo. Ao despolitizar o discurso do governante, a problemática do neofascismo é deslocada a um sujeito, colocado como “incapaz”, e não ao projeto apoiado anteriormente pela mídia e por algumas figuras políticas que, para parte da imprensa hegemônica, formam uma “frente democrática” como os ex-ministros Sergio Moro e Luiz Henrique Mandetta, ou o governador de São Paulo, João Doria, que hoje se colocam como críticos ao governo.

Os debates travados sobre a possibilidade de transtornos psíquicos dessas figuras são também preconceituosos. Ao associar discursos extremamente nocivos à figura do “louco”, reforça-se a ideia de que o insano traz riscos aos que convivem com ele e, portanto, precisa ser excluído da sociedade — procedimento comum à estrutura capitalista que elimina os diferentes, de forma oposta ao que propõem setores à esquerda, que vislumbram a emancipação de todos os sujeitos.

A esquerda brasileira precisa se atentar aos problemas de tal combate ao adversário político. Grupos de esquerda radical sofrem constantes invalidação de suas lutas e tentativas de criminalização no país. É construído no imaginário popular que apenas um louco acredita na utopia de uma sociedade com justiça social, o que faz militantes de esquerda serem deslegitimados e, por vezes, segregados.

Perturbações psíquicas precisam adentrar na política para o acolhimento e inserção social daqueles que sofrem com elas. Usar delas para desmerecer o discurso de adversários políticos acaba por desviar das problemáticas de falas e atitudes de governantes perigosos, além de reforçar preconceitos sobre a loucura que facilmente se voltam contra a esquerda.

Notas:

¹Psicopatia: transtorno de personalidade caracterizado por altos níveis de desinibição, insociabilidade e audácia. São sujeitos bastante impulsivos e com dificuldades em manter relações.

²Transtorno psicótico: categoria de transtornos psíquicos prevista no CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) caracterizados pela fragmentação da psique que resulta em falas e atitudes em desacordo com o contexto vivido.

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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