A longa caminhada dos super-heróis negros

Até o sucesso de personagens como Pantera Negra e Super Choque, houve muitas batalhas por representatividade – e muitas ainda precisam ser travadas

Por Norberto Liberator
Artes por Fábio Faria e Marina Duarte

A morte prematura do ator Chadwick Boseman, aos 43 anos, no último dia 28, causou muita comoção nas redes sociais e em veículos de comunicação, com homenagens sobretudo ao personagem que o consagrou como um grande nome do cinema – o Pantera Negra. O príncipe de Wakanda costuma ser lembrado como um dos principais super-heróis negros da ficção, tanto nos cinemas quanto nos quadrinhos.
O Pantera Negra não foi o primeiro super-herói preto a ganhar um filme próprio – antes dele houve a sofrível adaptação do personagem Aço em “Steel – O Homem de Aço” (1997), interpretado pela lenda do basquete Shaquille O’Neil; “Spawn”, onde Michael J. White encarnou o macabro herói da Image; e a trilogia “Blade” (1998, 2002 e 2004), com ótima performance de Wesley Snipes, que inaugurou a era de investimentos da Marvel em filmes. No entanto, o wakandiano foi o primeiro deles a estar no primeiro escalão do cinema mundial, e não como uma produção menor. Portanto, sua importância histórica é inegável.
T’Challa também não foi o primeiro personagem negro fixo dos quadrinhos. O primeiro deles de que se tem registro é o Ébano (Ebony White), criado pelo folclórico Will Eisner na década de 1940, para ser parceiro de seu herói Spirit. Embora fosse um autor progressista, Eisner reproduziu diversos estereótipos racistas, como traços caricatos, lábios animalescos e inglês “mal falado”. Ébano costumava servir de alívio cômico nas histórias, encarnando o clichê do “neguinho engraçado”, que no Brasil era representado, sobretudo, por personagens interpretados por Grande Otelo e Tião Macalé .
O mestre dos quadrinhos fez uma autocrítica na introdução da novela gráfica “Fagin, O Judeu”, em que dá uma nova abordagem ao personagem do livro “Oliver Twist”, de Charles Dickens. No texto introdutório, Eisner – que era judeu – compara a reprodução de estereótipos racistas presente em sua obra com a de Dickens, e dedica dezenas de linhas a explicar as problemáticas envolvendo Ebony White.

“Naquele estágio de nossa história cultural, o uso deformado do inglês, com base na origem étnica, era considerado humor. Em 1945, depois de uma interrupção para prestar o serviço militar, voltei às histórias em quadrinhos. Durante esse intervalo tomei maior consciência das implicações sociais dos estereótipos de raça e passei a tratar Ébano com mais discernimento”.
(EISNER, 2003)

Cronologia dos super-heróis negros

O primeiro super-herói negro de que se tem registro foi o Little Zeng, um jovem rei africano criado pelo ilustrador e músico Chris Acemandese Hall em 1963. Zeng é creditado como o primeiro protagonista negro e também primeiro herói africano dos quadrinhos no livro “Os movimentos culturais/políticos do Harlem entre 1960 e 1970: de Malcolm X ao black is beautiful”, organizado por Klytus Smith. No entanto, o personagem não durou muito tempo, já que pouco depois Chris A. Hall passou a focar em sua carreira musical. O artista foi um dos fundadores do Estúdio e Sociedade Artística do Jazz Africano (Ajass) e chegou a trabalhar com Miles Davis.

Três anos depois da criação de Little Zeng, Stan Lee e Jack Kirby lançaram o Pantera Negra, primeiramente como coadjuvante da revista do Quarteto Fantástico. Curiosamente, o Partido dos Panteras Negras, ligado à luta pelos direitos civis, também foi fundado em 1966. Tanto Lee quanto Kirby eram judeus, o que também os colocava entre um grupo marginalizado e que sofria com o racismo, ainda que em menor grau. 

O Falcão foi criado em 1969, inicialmente como parceiro do Capitão América, por Stan Lee e Gene Colan. É o primeiro super-herói negro não nascido no continente africano de que se tem registro, além de ser também o primeiro personagem preto de quadrinhos a não ter sua cor de pele mencionada no próprio nome.

Entre as mulheres, a Tempestade estreou em 1975, criada por Len Wein e Dave Cockrum. Ororo Munroe é filha de uma princesa queniana e de um jornalista estadunidense. Vivendo boa parte de sua vida em Wakanda, casou-se com o príncipe T’Challa, vindo a se tornar rainha do país fictício. Na onda do cinema blaxploitation, ao longo da década de 1970, a Marvel apostou na criação de personagens como Luke Cage, Mercedes Misty Knight e Blade.

A rival DC Comics demorou um pouco mais. A série animada “SuperAmigos”, parceria com a Hanna-Barbera, incluiu a partir de sua terceira temporada (1975) alguns heróis de etnias variadas, para ter maior diversidade na produção. Assim, foram criados Vulcão Negro (afro-americano), Chefe Apache (indígena), Samurai (amarelo) e El Dorado (latino-americano). Mais uma vez, os personagens caíram no clichê, além de nunca saírem do segundo escalão, revezando aparições entre si nos episódios.

Em 1977, Raio Negro estreou como primeiro super-herói negro dos quadrinhos da DC, concebido por Tony Isabella e Trevor Von Eden. Em 1980, Marv Wolman e George Pérez criaram Cyborg. O jovem gênio Victor Stone faz parte dos Novos Titãs, comandados pelo Asa Noturna alter ego do Robin clássico Dick Grayson. A primeira heroína negra de HQs da DC Comics foi Vixen. Criação de Gerry Conway, Bob Oksner e Curt Swan, ela teve sua estreia em 1981.

Já na década de 1990, a DC fez um acordo e incorporou a então recém-criada editora Milestone, fundada por negros (Dwayne McDuffie, Derek Jingle e o criador de Blade, Denys Cowan) e focada em personagens não brancos. Seus principais heróis eram Hardware e a dupla Ícone & Audaz, mas o que posteriormente fez maior sucesso foi Static Shok, conhecido no Brasil como Super Choque. Transmitidas pelo SBT, as aventuras do adolescente Virgil Hawkins foram uma das principais atrações para os jovens brasileiros que cresceram durante os anos 2000.

Também na década de 2000, alguns personagens consagrados ganharam versões negras. Criação de Brian Michael Bendis e Sara Pichelli, Miles Morales é um adolescente afro-latino-estadunidense picado pela mesma aranha radioativa que deu poderes a Peter Parker, tornando-se assim o novo Homem-Aranha.

Outro já clássico é Nick Fury Jr., inicialmente versão do chefão da Shield num mundo paralelo (da linha “Ultimate”, encerrada em 2015), mas o sucesso da interpretação de Samuel L. Jackson na franquia “Vingadores” fez a editora incorporá-lo oficialmente como filho do primeiro Fury com uma mulher preta e substituto do pai. 

A mais recente dessa leva é Coração de Ferro, criada por Brian Michael Bendis, Eve Ewing e pelo brasileiro Mike Deodato. Na trama, a adolescente prodígio Riri Williams cria sua própria armadura do Homem de Ferro e é convocada por Tony Stark para ser sua parceira.

Pela DC, John Stewart é o maior exemplo nesse contexto. O arquiteto negro substituiu Hal Jordan no comando da Tropa dos Lanternas Verdes, e ganhou maior popularidade ao ser um dos protagonistas da série animada da Liga da Justiça, nos anos 2000.

Lutando por representatividade

Douglas Mendonça, que assina como Dougz, é um ilustrador brasileiro que busca a representatividade negra em seus trabalhos. Ele é criador do personagem Yasuke, um jovem de 20 anos morador da favela de Mesquita, no Rio de Janeiro, onde perdeu o pai e o irmão mais velho. O tio de Lucas, Mário, deixou o garoto aos cuidados de Hatori, um amigo de ascendência japonesa. Hatori ensinou técnicas samurais a Lucas, que, crescido, adotou o nome Yasuke e passou a combater injustiças na Baixada Fluminense.

Dougz explica que a ideia partiu da junção de algumas referências com sua própria vida. “O Yasuke foi inspirado no único samurai negro que existiu na história, que também carregava esse nome. E também nas vivências que eu tenho na baixada fluminense como background, e uma pitada de shonen japonês (risos)”. O artista pretende “criar uma versão única com uma história bem envolvente e dinâmica”, mas a trama ainda está em desenvolvimento e os planos são a longo prazo. 

O ilustrador também afirma que sua principal referência como personagem e uma das primeiras lições que teve de empoderamento preto vieram do Super Choque. “Não tem como não ser ele, foi o primeiro contato com um super-herói negro, que vem de uma área perigosa tomada por gangues e ainda tinha que ir pra escola. Pra mim que sou preto e morador de favela, foi algo imensurável se sentir representado dessa forma. Foi bem impactante pra mim”.

O youtuber Gil Santos, conhecido como Load, criou um dos principais canais de quadrinhos do Brasil e hoje comanda seu próprio programa no Omelete. Ele também teve no Super Choque uma de suas primeiras referências de representatividade. “O Super Choque, não preciso nem falar, ele foi o Peter Parker da minha geração. Eu cheguei a entrevistar o Denys Cowan e ele comentou que queria realmente levar essa essência que o Peter tinha nos quadrinhos, só que para um garoto negro”.

Load também destaca a importância do Homem-Aranha Miles Morales. “Acompanho ele [Miles] desde que ele começou a sair na revista do Homem-Aranha nos anos 2000; cresceu ainda mais a minha paixão por ele quando saiu o Aranhaverso. Conseguiram dar uma roupagem nova e uma profundidade melhor para o personagem. Na animação, você tem um puta orgulho do personagem”, ressalta.

O apresentador considera a abordagem em Pantera Negra diferente da que está presente em personagens como Virgil Hawkins e Miles Morales. “Mesmo eu lendo o Pantera Negra pra caramba e gostando, não rola aquela identificação, tipo puta, o cara é exatamente igual eu. O Miles eu já sinto mais essa proximidade, me faz gostar mais ainda dele exatamente por isso”.

Ambos concordam que esses personagens servem de exemplo e ajudam a criar autoestima em pessoas pretas. Para Dougz, “todos os pretos querem ser o Pantera Negra, toda criança negra queria ser o Super Choque. Ela não é mais um alienígena ou um figurante, ela começa a ser um personagem fundamental numa brincadeira”. Load afirma que “a importância do Pantera Negra é essa, que você é lindo do seu jeito, tem que ter orgulho de quem é e respeitar sua raiz”.

Entre a oportunidade e o oportunismo

Apesar da importância da representatividade, é necessário haver cuidado para que a abordagem não seja rasa e com objetivo de apenas conseguir dinheiro de pessoas pretas, estratégia conhecida como black money, ou seja, dinheiro negro.

Para Dougz, há muito mais interesse desse tipo por parte de editoras e produtoras do que sensibilidade real para com a questão étnica. “Acho que há muito mais black money do que comprometimento. Se houvesse um real comprometimento, fariam mais personagens negros, usariam mais atores negros em papéis de pessoas negras. Não um ‘vamos colocar esse ator negro pra interpretar esse ser de outro mundo ou místico’ ou simplesmente pegar um personagem branco e faz uma versão negra dele”.

O ilustrador acredita que mudar a cor de um personagem branco é uma forma de se aproveitar de um debate atual por oportunismo. “Daqui a 10 anos, esse personagem vai continuar sendo branco e a versão negra só irá ficar na memória, entende? Mas insistem em fazer ou utilizar cada vez mais personagens brancos, e usando o que tem de personagem negro pra ganhar dinheiro em cinema, quadrinho, animações etc”.

Dougz afirma que esse tipo de situação interfere no trabalho de ilustradores negros. “Há uma demanda enorme de personagens fictícios brancos, e quando ilustradores querem fazer uma fanart acabam tendo que recorrer ao uso da imaginação de como seria tal personagem se ele fosse negro”. 

De acordo com o artista, “uma criança ou um adolescente vê o Superman ou o Naruto negro numa ilustração e acha maneiro: ‘poxa, legal! Uma ilustra dele negro, e parece interessante. Vou assistir’. Aí quando vai ver, acaba dando visibilidade aos mesmos personagens brancos de sempre”.

Load acredita que, mesmo quando o black money é o objetivo maior, isso pode ser feito de uma forma que trabalhe a autoestima de pessoas negras e visibilize autores negros. “Atitudes como a Milestone voltando mostram como as editoras estão se preocupando com isso. A gente teve isso com Miles Morales, colocaram um cara negro pra escrever, o Pantera Negra também, e a Riri Williams, também, que está sendo escrita por uma mulher negra. Então acho que o black money ajuda dessa forma, quando você dá espaço para essas pessoas trabalharem com personagens que normalmente eram pessoas brancas que escreviam”.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

MARINA DUARTE

produtora-executiva

Ilustradora, acadêmica de psicopedagogia, estudou jornalismo. Militante feminista interessada na profunda transformação social.

Fábio Faria

Diretor de arte

Estudante de jornalismo e ilustrador. Interessado em artes, cultura e assuntos do espectro político.

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