Por dentro da revolta de entregadores contra a exploração dos apps

Por Adrian Albuquerque, Guilherme Correia e Marina Duarte

O relato de um motoentregador (26) pelo Uber Eats, que preferiu não se identificar por medo de represálias, justifica os constantes pedidos de melhores condições trabalhistas para a categoria, que cresceu exponencialmente com a popularização dos aplicativos de entrega, como iFood, Uber Eats ou Rappi, no Brasil.

A situação se agrava ao considerar a pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. O trabalho aumentou, mas a remuneração não.

Segundo ele, uma corrida de 11,7 quilômetros (km) por volta do meio-dia de 10 de junho, gerou R$ 9,15. Em 13 de março, uma corrida de 11,5 km, no mesmo horário, o recompensou com R$ 14,64.

O Ministério Público do Trabalho (MPT), no dia 10 de março, considerou a rotina dos motoboys como “exploratória”. No dia 21, foi emitida nota técnica recomendando que as empresas distribuíssem gratuitamente álcool em gel, lavatórios com água, sabão e papel toalha, higienização para os veículos e água potável para consumo.

Em informações divulgadas no jornal Yahoo! Notícias, a assessoria de comunicação dos aplicativos Uber Eats e iFood dizem apoiar os profissionais durante a pandemia, com a opção de “deixar o pedido na porta”, por exemplo. A Uber afirmou que qualquer profissional parceiro diagnosticado com a Covid-19 recebe assistência financeira por até 14 dias. O iFood disse que destinou R$ 1 milhão a um fundo de solidariedade para entregadores afetados pela doença. A Rappi alegou que instaurou protocolo para que sintomas sejam reportados à empresa.

Histórico

 

Não é a primeira vez que a jornada de trabalho de entregadores de aplicativo ganha repercussão nacional. Em julho do ano passado, o entregador Thiago de Jesus Dias, de 33 anos, morreu após sofrer de um acidente vascular cerebral (AVC) enquanto trabalhava, na capital paulista.

Dias trabalhava como Micro Empreendedor Individual (MEI) e atendia pedidos de diversos aplicativos. A advogada Ana Luísa Pinto Leia,  que havia realizado o pedido, disse, em entrevista à revista Veja São Paulo, que Thiago passava mal quando chegou com a entrega em sua casa. Ela contatou a empresa do aplicativo, que a orientou a “dar baixa no pedido para que eles conseguissem avisar, aos próximos clientes, que não receberiam seus produtos no horário previsto.”

Thiago aguardou socorro por duas horas e morreu na UTI do hospital devido a um aneurisma cerebral. A morte de Dias gerou debates em relação à chamada uberização do trabalho, em que o trabalhador atua por si só. Não é empregado do estabelecimento de onde coleta a entrega, nem do aplicativo em que se cadastrou, ficando desamparado em caso de problemas súbitos de saúde, acidentes, assaltos e outras eventualidades em horário de trabalho.

Ainda que alguns aplicativos possuam uma espécie de Seguro Acidente, não há qualquer legislação em vigor que os obrigue a auxiliar os entregadores. O senador Fabiano Contarato (REDE/ES) apresentou em fevereiro deste ano o Projeto de Lei nº 391, que dispõe sobre a obrigatoriedade de as empresas de aplicativos de entrega oferecerem seguro de acidentes pessoais aos entregadores. O projeto ainda está em tramitação.

A Uberização: novo método, antigas ferramentas de domínio

 

Com o desenvolvimento tecnológico e o avanço capitalista, novas relações de trabalho foram sendo estabelecidas, como é o caso da modalidade de gestão empresarial representado pelas desenvolvedoras de aplicativo que oferecem serviços. A esse modelo, dá-se o nome de uberização. O termo é advindo de um aplicativo – e também empresa – em especial, que é a Uber, mas é adotado pelas diversas áreas do conhecimento que se dedicam a estudar o fenômeno para caracterizar também outros que conhecemos, como Ifood e Rappi, que se valem da mesma lógica.

A uberização é resultado de adoção da retórica liberal na abordagem trabalhista, representada pela falácia do “empreendedorismo”.

Renato Lima dos Anjos é economista, pesquisador vinculado ao CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) e explica melhor como isso ocorre, ele pontua que é muito comum, por parte das empresas de aplicativo, discursos como “seja seu próprio chefe” e “determine sua própria renda”. “Em alguns casos, essa ideia é aceita pelos trabalhadores, que se veem nessa relação não como empregados, mas como parceiros de negócios”, destaca, “essa ideia, que se manifesta na ausência de vínculo empregatício, resulta numa série de problemas enfrentados por esses trabalhadores, que se encontram numa posição extremamente desfavorável”, elucida o pesquisador. 

Tal posição de desvantagem é caracterizada, principalmente, pela informalidade, como descrito pelo juiz do Trabalho Christian Estadulho: “Um dos problemas mais graves que encontramos é a ausência de proteção previdenciária compulsória para os trabalhadores por aplicativos, levando a ausência total de remuneração quando esse trabalhador encontra-se impedido de trabalhar. Por exemplo, se ele ficar doente e não puder trabalhar, não terá como sobreviver, diferente do registrado, que tem direito à auxílio do empregador e do INSS”. 

“Eles não são regidos pela CLT, tal como observamos no emprego formal e sim em atividades não regulamentadas pelo Estado”, explica o economista Renato, “desaparece, então, a figura do “chefe”, como a gente está acostumado e aparece a figura da plataforma digital. Para essas empresas, não há relação de trabalho e sim, de “parceria”, quando o trabalhador utiliza a tecnologia desenvolvida e paga uma taxa pela utilização do serviço. Essa relação de subordinação é difícil de identificar e mapear”.

Essa falta de vínculo empregatício específico, na qual a empresa facilita o serviço, mas não arca com seus custos – e ainda recebe por isso -, reproduz, ainda, outra lógica do Capitalismo industrial, que é a demanda ‘just in time’. Renato explica que os entregadores são denominados também como trabalhadores ‘just in time’, ou seja, “aquele trabalhador que permanece disponível ao trabalho, assume os riscos e custos da atividade, está desprovido de direitos associado ao trabalho e que enfrenta total ausência de garantias sobre sua remuneração e carga de trabalho.”

As decorrências dessa relação, em tese, ferem princípios trabalhistas e a própria legislação trabalhista. Porém, como nova realidade, ainda se discute muito acerca dessa modalidade de “vinculação” empregatícia, inclusive dentro dos tribunais trabalhistas. Estadulho, que é também presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 24ª Região, pontua que “essa forma de contratação é relativamente nova no mundo jurídico, carecendo de legislação que trate especificamente dela”.

Ele explica que, para eventuais procedimentos legais, ainda não se encontram pacificações nos tribunais acerca da questão, já que se trata de um fenômeno recente: “já existem decisões da Justiça do Trabalho em alguns casos que consideraram os trabalhadores por aplicativos como empregados das plataformas digitais, porém, sem trânsito julgado. Como a matéria não é pacífica e aqueles que ajuizarem ação devem estar cientes que, perdendo a causa, poderão ter que pagar honorários advocatícios. Esses trabalhadores têm de estar cientes das possíveis ganhas e possíveis perdas.”

Greve nacional

 

Motoboys e entregadores por aplicativos de entrega como iFood, Uber Eats, Rappi, entre outros, preparam greve nacional em favor de melhores condições de trabalho. A paralisação nacional está marcada para o dia 1º de julho. Outros protestos já foram feitos no passado, como um “buzinaço” em abril e uma carreata na Avenida Paulista, em São Paulo. A categoria exige maior apoio por parte das empresas de delivery, principalmente em meio à pandemia de Covid-19.

O grupo “Treta no Trampo” surgiu para dar visibilidade à causa e reúne profissionais de diversas áreas. A Badaró entrou em contato com o grupo para saber um pouco mais sobre os objetivos e a organização do movimento:

Reivindicações como aumento da taxa mínima de pagamento, seguro de vida contra acidentes de trabalho e voucher para comprar equipamentos de proteção individual (EPIs) são o assunto principal do atual movimento. Outras solicitações são pedidas, como o fim do sistema de pontuação, que determina como os pedidos de delivery dos restaurantes são partilhados entre os entregadores disponíveis numa mesma área.

Os profissionais pedem que os usuários não façam pedidos pelos aplicativos de comida e afins no dia 1º de julho, e que atribuam notas baixas a eles nas lojas de apps do Android e do iOS, como forma de apoiar o protesto dos entregadores.

Adrian Albuquerque

Repórter e diretor de audiovisual

Jornalista, editor de vídeo, sucinto e entusiasta de alguns filmes. Interessado em artes, cultura e política. Diretor do documentário “Isto não é uma entrevista”.

Fábio Faria

Diretor de arte

Estudante de jornalismo e ilustrador. Interessado em artes, cultura e assuntos do espectro político.

Guilherme Correia

Repórter e Subdiretor de arte

Estudante de jornalismo. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

MARINA DUARTE

produtora-executiva

Ilustradora, acadêmica de psicopedagogia, estudou jornalismo. Militante feminista interessada na profunda transformação social.

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1 Comment

  • Excelente matéria e importantíssima reflexão.

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