Enquanto não houver feminismo, não haverá socialismo – e você já deveria ter notado isto

Por Marina Duarte
Colaborou Mylena Fraiha

A informação rápida, sem grandes filtros, é uma realidade dos dias de hoje. A partir do momento em que a mídia de massa mudou o personagem e ganhou uma vestimenta com “ares democráticos”, passamos por uma alteração de discurso: tivemos mais acesso a conteúdos que, antes, apareciam mais àqueles que os buscavam em bibliotecas, grupos de estudos ou outros espaços menos acessíveis. 

Um dos fenômenos que a internet facilitou e proporcionou foi a primavera feminista: vivemos, nos últimos anos, levantes de mulheres que passaram a se compreender melhor como classe e como detentoras de direitos que são, até hoje, negados aos montes – claro que há ressalvas quanto à rasura de certos debates, mas não há como negar o aumento de alcance do discurso. Não à toa, isso incomoda muita gente, chegando até a haver uma nova onda de discursos criminalizadores do feminismo e da liberdade feminina. Nenhuma novidade, já que é histórico o ódio à liberdade das mulheres, que culmina em políticas sociais misóginas, penalizadoras da condição feminina, às quais temos todo o tipo de exemplo desde a Antiguidade.

Em uma sociedade de desigualdade, a opressão se manifesta de forma violenta e hostil. Não seria diferente quando falamos de machismo, já que a cada uma hora e meia, morre uma mulher vítima dele no Brasil. Somos especialistas em violência contra as mulheres: casamentos infantis, estupros, violência doméstica e feminicídio são corriqueiros, chegando a nos colocar entre os líderes nos rankings mundiais destes crimes. E não há negacionismo que suporte a falácia de que o machismo é quase inexistente hoje em dia: os números e nossos costumes só atestam que somos uma sociedade que foi, desde a ascensão do patriarcado, ensinada a odiar as mulheres.

Isto significa que, antes mesmo de desenvolvermos relações de classe, desenvolvemos relações de desigualdade de gênero, o que coloca a figura feminina como subalterna. E também mostra que, para atingirmos uma sociedade igualitária, ainda há muito chão pela frente combatendo o patriarcado e suas manifestações opressoras da mesma forma que devemos combater o capitalismo. Não há saída e não há qualquer oferecimento de atraso nesta premissa: enquanto as mulheres continuarem ocupando papéis de subalternidade em todas as relações, não há como construir uma sociedade transformadora.

Ainda há certa questão em alguns grupos de esquerda, os quais alegam que a opressão de classe absorve a opressão de gênero, fazendo assim com que não seja uma prioridade combater o patriarcado. Essa premissa denota, além de desinteresse em consumir teoria feminista e de gênero, um vanguardismo acadêmico que não aceita atualizações, nem novas concepções e abordagens à obra de estudo. Caso consumissem material feminista, conseguiriam ter acesso à interseccionalidade e à consubstancialidade – e assim, superariam tal tese.

A dificuldade em colocar as pautas de movimentos lidos como identitários – que na verdade também são, quando não liberais e rasos, movimentos perseguidores da superação de subalternidade social – como necessárias na agenda de nosso debate revolucionário, só demonstra, ainda mais, o grande obstáculo que  os privilégios sociais – no plural – são para a superação da opressão objetiva e subjetiva. 

Neste sentido, o que encontramos no dia-a-dia da militância são atrasos práticos que se fazem por conta do machismo, como assédios morais e sexuais, subjugamento, preterimento, exclusão. Estes são alguns dos entraves que as mulheres enfrentam em todos os espaços sociais que ocupam – e não seria diferente dentro dos espaços revolucionários. Temos encontrado diferentes fórmulas de lidar com isso, estamos todos aprendendo a lidar com as novas formas de encarar as relações sociais, afinal. Mas tal problema só será superado a partir do momento em que deixarmos de combater o machismo apenas com políticas reativas e/ou punitivas, e passarmos a agir substancialmente – ou seja, educar e tocar no assunto, colocar como prioridade dentro de nossa pauta, ao lado da luta de classes. 

Enquanto os homens não entenderem sua posição de domínio social e não priorizarem também o consumo de material feminista, a leitura de autoras mulheres, bem como não pautarem e estimarem mulheres, enquanto não tentarem educar o olhar para a questão de gênero, considerarão o feminismo um entrave revolucionário. Mal imaginam o quão atrasado e cansativo consideramos ainda ter de parar tudo o que fazemos porque não conseguimos ser tratadas como seres humanos, tal qual os homens – o que se faz, isto sim, um atraso à revolução. 

Divisão do trabalho militante e outras reflexões

A mobilização feminina é, historicamente, fator definidor para a explosão de grandes transformações sociais. Não cabe repetir o padrão patriarcal de isolamento das mulheres dos espaços públicos até dentro dos espaços revolucionários, muito menos deixar essa transformação para depois. 

Alguns vão pedir exemplos de problemas que as mulheres encontram dentro dos espaços de militância, já que pode ser difícil de visualizar quando não somos a parte que passa por tais problemas – ou quando não damos muita importância mesmo. Faço então algum apanhado de crenças ou atitudes que ocorrem em espaços militantes.

A intenção aqui é colaborar para que alguns obstáculos possam ser superados, com o objetivo de não precisarmos enxergar o problema só quando dezenas de mulheres denunciarem um militante por atitudes predadoras.

Atitudes a ser evitadas na militância

1) Divisão desigual do trabalho militante: Mulher anota e trabalha, homem constrói, debate e articula. Designar tarefas de maneira sexista, deixando as tarefas mais centrais para os homens e de suporte para as mulheres.

 

2) Tática 2: Cooptar uma/um militante atraindo romanticamente e/ou sexualmente.

 

3) Preterimento feminino: Homens falam entre si, falam por cima de mulheres, dominam os debates e colocam homens para pautar os espaços. 

 

4) Mulher não é laranja para demonstrar falsa desconstrução: Tratar mulher como cota em espaços de militância, sem considerá-las como decisivas, e sem levar sua contribuição como importante. Não são chamadas para articular e construir internamente, mas para demonstrar um caráter “inclusivo” da organização.

 

5) Homens não participam dos debates: Homens evitam participar dos debates – e há alguns que participam, mas buscam falar mais que ouvem, de maneira leiga e desrespeitosa.

 

6) Mulher não embeleza a militância: Atitudes como colocar mulheres para agitação e propaganda para “cativar” homens ou fazer questão de comentar sobre aspectos físicos e aparência das mulheres, dizendo que elas embelezam o espaço.

 

7) “Você não entende nada sobre feminismo”: Questionar o domínio de uma mulher sobre a pauta feminista – acontece principalmente quando é confrontado com suas atitudes machistas e sem noção.

 

8) Questionar didática: Querer opinar sobre a emoção ou alteração da mulher quando denuncia alguma prática que pode ser traumática ou tirá-la do eixo. Logo se joga a carta da “falta de didática” da militante. Não preciso dizer que homens fazendo discursos inflamados não tem suas emoções pautadas ou consideradas “falta de didática”.

 

9) Não buscam pautar mulheres: Mulheres são menos pautadas em espaços mistos, onde os homens ainda são os principais contribuidores para literatura militante. É uma realidade que está mudando, mas ainda falta muito para que literatura produzida por mulheres ganhe o mesmo espaço.

 

10) Candidaturas laranja: Dentro da militância partidária, mesmo de esquerda, ainda encontramos muitas mulheres servindo apenas como possibilitadoras de candidaturas masculinas.

 

11) Subjugação das companheiras de militância e das pautas feministas: Acompanhadas por palpites leigos, são discursos que não consideram as feministas e a pauta dos direitos das mulheres como algo importante. “É coisa para mulheres”.

 

12) Palpite sem noção – e sem recorte: Não consomem literatura feminista, pescam um debate aqui, outro ali e ainda fazem questão de opinar em assuntos que são abordados dentro do feminismo – e que saberiam a resposta certa caso houvesse interesse ou, minimamente, levassem a sério.

 

13) Feminismo não é questão de opinião: Estude e, aí então, opine. Se você leva a sério a questão do lucro, da propriedade privada e tece estratégias para superar o capitalismo, por que não levar a sério a questão da cultura do estupro e do poder patriarcal, bem como tecer estratégias para superá-los? Afinal, o patriarcado e seus constituintes formam um pilar fundamental para manutenção da desigualdade, da opressão e da luta de classes.

MARINA DUARTE

Ilustradora e quadrinista pantaneira. Feminista antiproibicionista interessada pela profunda mudança social.

Mylena Fraiha

Jornalista e pesquisadora em Comunicação. Possui interesse nas áreas de meio ambiente, política e direitos humanos, além de produções audiovisuais.

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