O novo voo do condor

Editorial

Escaladas agressivas contra governos de esquerda na América Latina não são algo novo, nem somente coisa do século passado; podemos dizer que estamos rumo a uma Operação Condor 2.0 – se esta já não foi iniciada

A crise política que assola a Bolívia – e que levou Evo Morales a renunciar ao cargo de presidente – é o mais novo caso de ruptura institucional na América Latina. Tensões, governos fragilizados e golpes de Estado são tradições históricas da região. Embora haja particularidades em cada país, os interesses econômicos que baseiam desestabilizações e destituições de governos são os mesmos.

Evo Morales havia sido acusado de fraudar o resultado das eleições que lhe deram vitória há duas semanas. Após dias de impasse, aceitou a auditoria do processo, que foi realizada pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Neste domingo (10), Morales anunciou que convocaria novas eleições e trocaria a equipe do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE),  equivalente no Brasil ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Mesmo diante da postura do presidente em negociar, as alas mais radicais da oposição seguiram a clamar pela renúncia. O ápice da pressão foi quando o comando das Forças Armadas fez a “sugestão” – na verdade, intimação – de que Morales deixasse o cargo para “evitar sangue”.

Evo Morales e seu vice, Álvaro García Linera, renunciaram no fim da tarde, em transmissão ao vivo pela televisão e internet. Eles foram seguidos pelos presidentes do Senado, Adriana Salvatierra, e da Câmara, Victor Borda. A presidente do TSE, Maria Eugenia Choque Quispe, foi presa

Rumores de fraude eleitoral não são exclusividade latino-americana. O ex-presidente estadunidense George W. Bush já passou pelas mesmas acusações, mas na ocasião, a OEA e as instituições dos Estados Unidos não agiram com a rigidez e o pragmatismo utilizados contra o boliviano.

Escaladas agressivas contra governos de esquerda na América Latina não são algo novo, nem somente coisa do século passado. Em 2002, Hugo Chávez sofreu um golpe militar explícito que o tirou do poder por dois dias, mas que não resistiu à pressão popular em favor do líder democraticamente eleito. Na ocasião, o presidente foi redirecionado ao cargo.

Em 2009, o presidente hondurenho Manuel Zelaya foi surpreendido por militares que o intimaram, em sua casa, a deixar o cargo. Ele foi escoltado até o aeroporto e deixou o país rumo à Costa Rica, antes de receber asilo no Brasil. Em 2012, Fernando Lugo, presidente do Paraguai, foi destituído após um processo que durou cerca de 24 horas desde a abertura até a conclusão. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) lançou nota em que afirmava desconfiar da legitimidade do processo.

Em 2016, foi a vez do Brasil. Acusada de crime fiscal, Dilma Rousseff foi alvo do processo de impeachment que a tirou da presidência da República, e que foi seguido pela condenação (em 2017) e prisão (em 2018) do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, favorito nas pesquisas eleitorais – o que beneficiou diretamente o segundo colocado, Jair Bolsonaro.

Em todos os casos citados, entre muitos erros e acertos, os chefes de Estado representavam demandas populares e, também em todas as ocasiões listadas, o governo substituto praticou ou pratica políticas que atendem ao imperialismo estadunidense. A isto, o ex-presidente equatoriano Rafael Correa chamou de “restauração conservadora”.

O então chefe de Estado afirmou que “a integração na América Latina, com visão independente e digna, é uma preocupação aos Estados Unidos”. Não mais com tanques nas ruas, mas por meio de artifícios jurídicos ou brechas nas legislações, a maior potência do mundo segue impondo sua ideologia na região, com intuito de fazer desta o seu quintal – o chamado lawfare.

Durante a segunda metade do século XX, a Operação Condor foi a expressão máxima da colaboração entre políticos direitistas latino-americanos, mais especificamente do Cone Sul. Ela foi formada em 1975, pelos governos militares do Brasil, Chile, Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai para perseguir opositores dos seis regimes. As ditaduras trocavam informações sobre militantes, dificultando fugas e permanências. Ao identificá-los, praticavam sequestros, prisões, torturas e assassinatos.

Autores como o jornalista britânico Christopher Hitchens, que escreveu o livro “O Julgamento de Kissinger” – no qual investiga e denuncia crimes de Henry Kissinger, ex-secretário de Estado de Richard Nixon e Gerald Ford – afirmam que os Estados Unidos acompanharam o plano de perto, por meio da Agência Central de Inteligência (CIA) e do Departamento Federal de Investigações (FBI). Documentos divulgados neste ano mostram que a CIA sabia de detalhes sobre a operação e colocam, inclusive, o Brasil como país que buscava certa “liderança”, impossibilitada pela resistência por parte dos outros países. 

Com linha lógica semelhante à do período, 2019 tem sido um ano de desgastes políticos que caminham, lenta ou rapidamente, a possibilitar que o autoritarismo se instale novamente, com tons ditatoriais e uma pitada de lawfare. Por mais que muitas características sejam dissonantes entre os períodos históricos, a intenção pode ser classificada como semelhante ou a mesma: instauração do neoliberalismo e do neocolonialismo a todo custo. Podemos dizer que estamos rumo a uma Condor 2.0 – se esta já não foi iniciada.

Revista Badaró acredita que um novo processo eleitoral com presença de observadores internacionais – tal qual proposto pelo governo destituído – seria a saída para as acusações de fraude; repudia os acontecimentos recentes contra a institucionalidade na Bolívia; e, pelos motivos listados ao longo do texto, considera o afastamento de Morales e de García Linera não uma mera renúncia, mas um golpe, que visa frear e dar marcha-ré ao processo de desenvolvimento do país que mais cresce economicamente na América do Sul.

No que tange à conjuntura atual, a Badaró se posiciona contra as políticas neoliberais instituídas pelos governos de direita e de extrema-direita latino-americanos – responsáveis pela retirada de direitos trabalhistas e pela precarização do trabalho, cujo intuito é maximizar o lucro de grandes empresários, conglomerados industriais e bancos. A Revista também repudia o discurso ultraconservador, intolerante e extremista-religioso advindo de líderes políticos que visam barrar direitos sociais de trabalhadores, mulheres, pessoas negras, etnias indígenas, a comunidade LGBTQI+ e respaldar o discurso de ódio que legitima o ataque a tais grupos.

Defendemos a soberania política, econômica e cultural da América Latina, bem como apoiamos líderes políticos que visem resguardá-la. Por fim, respeitamos o direito civil existente nas regras do jogo democrático, no qual os representantes políticos eleitos com a maioria dos votos possuam o direito de cumprir seu mandato salvaguardado  e respeitem a Constituição de seus respectivos países.

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