Confissão é resultado de ameaça, avalia biógrafo de Battisti

Por Norberto Liberator
Ilustrações por Fábio Faria

Itália, anos 70 do século XX. Três décadas se passaram desde o fim da Segunda Guerra Mundial, período que ainda deixa feridas abertas. Grupos neofascistas praticam atentados com bombas em grandes cidades como Roma e Milão. No sul, cresce a influência política e econômica de facções mafiosas como a Cosa Nostra (Sicília), a Camorra (Nápoles) e a ‘Ndrangheta (Calábria).

A cooperação entre setores da Igreja Católica, políticos de direita e o crime organizado é cada vez mais forte e evidente. Para evitar a possibilidade de subida dos neofascistas ao poder, o Partito Comunista Italiano (PCI) – fundado por Antonio Gramsci e Amadeo Bordiga em 1921 – firma aliança com a Democracia Cristã (centro-direita), formando a chapa Aldo Moro/Enrico Berlinguer, que governa o país entre 1963 e 1968, e posteriormente em 1974-1976.

A conciliazione não é vista com bons olhos por jovens de extrema-esquerda que sonham com a Revolução. Para eles, o Partido Comunista cometeu uma traição histórica. A tensão se agrava quando, em 1977, o estudante Guido Bellachioma é ferido gravemente no pescoço, após um atentado da extrema-direita na Universidade de Roma. Em resposta, milhares de manifestantes ocupam o prédio da Faculdade de Letras, onde Bellachioma estuda.  O PCI se posiciona contra os protestos. Garotos e garotas veem na luta armada a única solução. Entre eles, está Cesare Battisti.

Battisti é membro dos “Proletários Armados pelo Comunismo” (PAC), grupo que distribui panfletos, edita a revista Senza Galere e pratica assaltos a bancos e lojas para se manter. Os PAC são uma das inúmeras organizações armadas da Itália. Entre outras, há as “Brigadas Vermelhas” (Brigati Rossi), que em 1978 sequestram o ex-primeiro-ministro e presidente da Democracia Cristã, Aldo Moro. Ele estava a caminho do Parlamento, onde assinaria o chamado “Compromisso Histórico” com lideranças do PCI – um conjunto de propostas convergentes que visam fortalecer a aliança entre os partidos. Diante da postura do governo em não negociar, Moro é assassinado e seu corpo, deixado em uma movimentada rua de Roma.

Ilustração mostra Aldo Moro em cativeiro. Ele segura o jornal

A partir de então, a repressão contra a guerrilha de esquerda se torna ainda mais forte. No ano seguinte, é descoberta a sede dos PAC – o apartamento da colaboradora Silvana Marelli. Na ocasião, são encontradas duas pistolas de 9mm, dois revólveres (um 38 e um 357), duas granadas e um fuzil. Battisti, que estava no local, é detido por posse das sete armas e formação de bando armado.

Cai sobre outros membros do grupo a acusação por quatro assassinatos – do carcereiro Antonio Santoro, do policial Andrea Campagna e de dois militantes neofascistas: o joalheiro Pierluigi Torregiani e o açougueiro Lino Sabbadin. Battisti não é citado como autor ou cúmplice, mas a partir de 1983, em delação premiada, o réu confesso Pietro Mutti o acusa de autoria em dois deles e de ser mentor intelectual nos outros dois. Battisti estava exilado, em primeiro momento na França e, posteriormente, no México.

Os fatos narrados estão em arquivos de veículos da imprensa italiana e em processos judiciais que compõem o livro “Os Cenários Ocultos do Caso Battisti”, de Carlos Lungarzo. Pós-doutor em sociologia matemática, o argentino radicado no Brasil é professor aposentado da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), mantém o blog A Luz Protegida e dedicou parte de sua vida a investigar uma das tramas jurídicas de maior apelo midiático dos últimos anos. Lungarzo falou com exclusividade à Badaró sobre o caso Battisti e sobre os contextos que o envolvem.

No livro, você cita a chamada “estratégia de tensão”, uma tática de grupos neofascistas que tinha como objetivo realizar atentados, culpar a esquerda e preparar o cenário para um golpe. São listados 11 eventos que somam mais de 150 mortes e cerca de 700 mutilados. Comente sobre eles.

Há 11 eventos maiores e várias dúzias de atos menores que produziram, sobretudo, ondas de pânico e alguns feridos, porém poucos mortos. Os 11 principais foram verdadeiras catástrofes humanitárias. Esses atos são chamados stragi (“estragos”), e seus realizadores são popularmente conhecidos como stragisti (algo como “estraguistas”).

Após a guerra, os fascistas continuaram atuando por partidos com outros nomes, como Movimento Social Italiano (MSI), Nova Ordem e outros menores. A Maçonaria também tinha interesse em evitar que o país se inclinasse ao socialismo. Houve uma cumplicidade discreta, porém indubitável do Vaticano com os empresários, financistas, militares e altos chefes policiais para criar terror. Os Estados Unidos queriam aproveitar a direita italiana como colaboradores na Guerra Fria.

A magistratura era o único setor possível para que a esquerda tivesse algum papel importante, pois eles eram mantidos afastados do governo e sua possibilidade de triunfo nas eleições de pós-guerra, na chapa dos partidos Comunista (PCI) e Socialista (PS) foi sabotada com as fake news da época. A Igreja Católica e a CIA colaboraram no envio de 10 milhões de cartas aos eleitores, contando as desgraças que aconteceriam “se a esquerda ganhasse as eleições”. A chapa PCI/PS fez uma excelente votação, mas não a suficiente para ganhar o governo.

Na magistratura, o PCI e o PS – durante os anos imediatos ao pós-guerra – e os Movimentos Autonomistas, que formavam a esquerda mais radical durante os anos 60, conseguiram ganhar muitos postos de juízes e procuradores, mas aos poucos a direita recuperou quase todas as posições na magistratura. Entre 1974 e 1975, os magistrados de esquerda, chamados de togas vermelhas, passaram a ser uma minoria muito pequena no Judiciário.

Os culpados pelos atentados, em geral, foram investigados? E se sim, chegaram a ser condenados?

Em dezembro de 1969, na Piazza Fontana, em Milão, começou a fase dura da estratégia da tensão. Foi colocada uma bomba no Banco Nacional de Agricultura. Magistrados e policiais disseram investigar, mas todos seus suspeitos foram sindicalistas de esquerda, quase sempre anarquistas.

Há um consenso geral, mesmo entre a mídia de centro e alguns setores oficiais, de que o atentado era neofascista, e seu objetivo era criar o pânico para justificar um golpe de Estado. Apesar disso, Luigi Calabresi, delegado de confiança da direita, deteve o anarquista Giuseppe Pinelli, que foi torturado durante três dias e finalmente “caiu” por uma janela do quarto piso da delegacia.

Após este caso, foi preso o artista Pietro Valpreda, também anarquista. Nos anos seguintes, foram denunciados pelo MP vários membros do partido Nova Ordem e outros grupos de direita. Todos foram absolvidos sem julgamento. Durante os 40 anos seguintes continuaram as investigações, cada vez com menos intensidade. Um dos fascistas, Carlos Digilio, confessou no ano 2000 ter preparado o crime, mas os juízes declararam a causa prescrita. Por sinal, no caso da esquerda, poucas foram as causas prescritas. A de Cesare Battisti é um caso claro.

Em 2005, a Suprema Corte absolveu os neofascistas Delfo Zorzi, Carlo Maggi e Giancarlo Rognoni. Zorzi se refugiou no Japão, onde virou cidadão japonês. A Itália pediu sua extradição uma única vez e, ante a primeira negativa, desistiu sem fazer qualquer esforço. Na época, o fato foi muito criticado, mas depois foi esquecido.

Nos outros atentados, foram processados alguns dos atores materiais, como os que colocavam bombas, mas nunca os mandantes. Sabe-se que os explosivos eram fornecidos pelo Exército e Marinha, e que havia figuras importantes envolvidas, mas esses fatos nunca tiveram publicidade. Um deles foi Giulio Andreotti, numerosas vezes primeiro-ministro.

Entre idealizadores, mandantes e organizadores, figuram serviços de inteligência, mafiosos, políticos e empresários. Nenhum deles foi oficialmente culpado. Quanto ao pior desses ataques – o da estação ferroviária de Bolonha, com 85 mortos – foram condenados três executores, entre eles Giuseppe Fioravante e Francesca Mambro. Eles cumpriram prisão, mas foram soltos após grandes reduções de pena.

Que eu saiba, até hoje, há um único preso da direita, que atacou uma viatura com policiais em Veneza. É Vincenzo Vinciguerra, mas segundo ele próprio, o motivo é que quando foi detido denunciou todos seus superiores no governo, na polícia e nas Forças Armadas.

A conciliação entre o Partido Comunista, liderado por Enrico Berlinguer, e a Democracia Cristã, representada sobretudo pelo premiê Aldo Moro, ocorre quando a Itália beira a guerra civil. A postura do PCI durante os “Anos de Chumbo” contribuiu para a radicalização de grupos de esquerda, como o que viria a assassinar Moro?

Sem dúvida. Após o final da guerra, esperava-se muito do PCI. Apesar da posição stalinista de Togliatti [Palmiro Togliatti, secretário-geral do Partido], havia setores muito progressistas e democráticos, como os que seguiam a linha do falecido Antonio Gramsci. A decepção foi lenta. No final dos anos 60, muitos desses setores entenderam que era preciso uma nova esquerda. Entretanto, houve uma diferença entre o grupo que assassinou Moro – as Brigadas Vermelhas – e os movimentos de massa, como “Autonomia Operária” e “Luta Contínua”, que colocavam ênfase em ações coletivas, ideologia e, eventualmente, ações armadas defensivas.

Em sua recente Carta aos Companheiros, Battisti faz a distinção entre os Movimentos Autonomistas e a luta armada. Os Movimentos não eram propriamente partidos e sua ideologia vinha do antigo anarquismo italiano, um dos mais fortes da Europa; já as Brigadas se inspiravam na guerrilha urbana. Mas todos consideravam que o PCI, que teve nos anos 70 muito sucesso eleitoral, estava virando à direita. O mesmo vale para o Partido Socialista, cujos dirigentes renegaram abertamente o marxismo e o socialismo.

Mariano Rumor, ex-ministro do Interior, foi vítima de atentado da extrema-direita por não decretar Estado de sítio. Ele saiu ileso, mas quatro pessoas morreram e 45 ficaram feridas. O que aconteceu com o autor do ataque?

Gianfranco Bertoli era um agente do serviço de inteligência com fortes relações junto à polícia e aos setores golpistas da Itália. Foi preso depois desse ataque e condenado à prisão perpétua, mas morreu de maneira não conhecida em 2000. Desde o final dos anos 80, os Estados Unidos haviam renunciado à ideia de apoiar o terrorismo de Estado na Itália. Não se sabe se sua morte foi uma “queima de arquivo” ou se houve outras razões.

Retrato ilustrado de Carlos Lungarzo. Texto: Era habitual acusar o mais difícil de ser atingido. Mutti sabia que Cesare estava no México e colocou a culpa nele.

Em 1979, Battisti é condenado a 13 anos de prisão por formação de quadrilha e pelo porte de armas que, segundo a perícia, jamais foram usadas. Como a pena foi alterada para perpétua? 

O fato é muito complexo e os detalhes talvez nunca sejam bem conhecidos. Mas uma reconstrução cuidadosa mostra como aconteceu uma alteração da pena de maneira tão radical. Pietro Mutti, principal delator no caso Battisti no Tribunal do Assize (Júri) de Milão, era considerado pela Polícia Civil (Digos) e pela PM (Carabinieri) como um dos autores da morte de Antonio Santoro, o carcereiro acusado de tortura. Battisti fugiu da prisão no começo dos anos 80, para a França e, pouco depois, para o México. Nessa época, Mutti estava duramente engajado num movimento chamado Prima Linea, que era semelhante às Brigadas. Foi capturado em 1983 e sofreu fortes torturas. Finalmente aceitou colaborar com o Judiciário. Eles queriam alguém a quem atribuir a morte de Santoro, que foi um ato colaborativo entre várias pessoas, mas faltavam algumas peças para explicar o fato completo. Também precisavam de alguém, além de Giuseppe Memeo, para acusar da morte do motorista policial Andrea Campagna.

Battisti disse que nunca guardou rancor de Mutti, pois imaginava como era impossível aguentar a tortura. Quanto aos magistrados, em especial Armando Spataro [responsável pela sentença], queriam um bode expiatório para mostrar que haviam derrotado a esquerda e levantaram a acusação em 1988. Battisti nem sabia o que estava acontecendo na Itália. Houve um recurso simulado, para o qual foram usados advogados que os mesmos juízes nomearam e, no novo julgamento de 1990, a pena combinada foi de duas prisões perpétuas – uma por Santoro e outra por Campagna. No último recurso fake, em 1993, a pena foi confirmada.

Detalhe importante: a decisão da Itália de continuar a perseguição a Battisti com uma pena truculenta aconteceu quando ele já havia adquirido fama de escritor, que começou no México. Em Paris, Cesare virou ídolo de setores progressistas e seus livros foram grandes sucessos. Um deles vendeu 250 mil exemplares. Era muito requerido para dar palestras, onde contava detalhes da repressão italiana. Isto explica, talvez mais que outros dados, a enorme sede de vingança.

O advogado Gabriele Fuga, escolhido por Battisti para fazer sua defesa no caso inicial, foi preso antes que pudesse atuar. Qual a justificativa para a prisão?

Os motivos dados pelos promotores foram que Gabriele era cúmplice de atos subversivos de seus clientes. Na época não eram necessários muitos argumentos para condenar alguém. Aliás, a prisão preventiva de um suspeito poderia durar anos, com base nas leis de exceção.

 A primeira acusação de homicídio ocorre quando Battisti já havia fugido da prisão por crimes menores e estava fora da Itália. Você acredita que Pietro Mutti o acusou por pensar que ele não seria pego?

Nunca conheci Mutti, mas o próprio Battisti acredita nisso. Eles haviam sido muito amigos, e Battisti fazia muita questão de nunca renegar seus amigos. Sua pergunta é realmente muito oportuna. Aliás, Battisti, que nunca foi torturado, imaginava que era impossível a pessoa se manter neutra em torturas muito complicadas. Os italianos usavam injeções de psicofármacos em doses gigantescas, criando uma condição psíquica que ninguém aguentava. Era habitual que, quando alguém não conseguia resistir à tortura, acusasse aquele mais difícil de ser atingido. Mutti sabia que Cesare estava no México e colocou a culpa nele.

No contexto de enfrentamento político dos “Anos de Chumbo”, o que motivou os PAC a escolher as quatro pessoas que foram mortas? Qual era o papel de Torregiani, Sabbadin, Santoro e Campagna no período de tensão ideológica que a Itália atravessava?

Pierluigi Torregiani, na época com 39 anos, era um abastado atacadista de joias. Ele pertencia a uma agrupação chamada “Maioria Silenciosa” (Maggioranza Silenziosa), formada por pessoas de classe média e alta, cujo objetivo era “limpar” o norte da Itália de retirantes do sul, pequenos infratores, gente em condição de rua. Eventualmente atacavam passeatas de estudantes e operários. Torregiani tinha três filhos adotivos. Um deles é Alberto, que agora está com mais de 50 anos e ficou paraplégico quando seu pai o atingiu com um tiro, por engano.

Ele [Pierluigi Torregiani] andava, segundo o caso, com duas ou três armas e colete blindado, mas não colocava em seu filho. Era campeão de tiro. Semanas antes de sua morte, ele estava num restaurante de luxo, que ainda existe, quando entraram três pequenos ladrões mal armados e começaram a tirar joias e dinheiro das pessoas. Todos acataram, exceto ele e um amigo, que revidaram. Um assaltante morreu, mas também morreu um cliente que nada tinha a ver, com uma bala de Torregiani. Dois frequentadores do local ficaram gravemente feridos. Mesmo a mídia de centro-direita criticou a reação e o qualificou como xerife, matador, jagunço etc.

Lino Sabbadin era membro do partido neofascista MSI e, sendo assaltado em seu açougue, matou um assaltante e feriu outro, mesmo sem aparente necessidade. Isto foi em Veneza. Os PAC escolheram esses dois alvos como para dar uma “lição” ao que eles chamavam prepotência burguesa.

Já Antonio Santoro, que tinha cerca de 50 anos, era o chefe da prisão de Udine e havia torturado vários membros dos PAC algum tempo antes, quando sequer o grupo existia. Uma das vítimas foi Arrigo Cavallina.

O quarto, até onde pude apurar, foi uma morte desproporcionada. Andrea Campagna tinha 22 anos, era um calabrês recém-chegado que nunca teve contato com a polícia, mas quando chegou a Milão, encontrou emprego de motorista de viatura. Os PAC o acusaram de colaborar na tortura, mas isso não está claro. Aliás, na época, estar na polícia era sempre um fato complicado, do qual ninguém saía limpo – como ser da polícia do Rio hoje. O autor foi Memeo.

Sabe-se com certeza que Battisti era contrário ao ataque contra Torregiani, e por isso se retirou dos PAC. Sobre Santoro, a situação é confusa. Também se sabe, por amigos dele que ainda estão na Itália, que Battisti era contrário a qualquer ato letal. No entanto esteve de acordo, segundo parece, em atirar na perna de um torturador de uma prisão de Milão. Nunca perguntei diretamente a Cesare para evitar constrangimento.

A partir de sua prisão, Mutti se tornou o principal delator dos PAC. No caso da morte de Antonio Santoro, a testemunha Rosana Trentin afirmou tê-lo visto, mas não foi convocada a depor. O objetivo era que ela não contradissesse a narrativa?

Foi sim. Supõe-se até que foi ameaçada pelos magistrados. Foi aí que ela disse que retirava a denúncia porque não tinha certeza de reconhecer o rosto de Mutti. Ela nunca foi procurada pelos membros da rede de proteção a Battisti. Nós pensamos que não havia por que comprometer a vida de pessoas comuns; ademais, não teria adiantado nada. O plano estava muito bem elaborado.

No mesmo processo, falaram as testemunhas Arrigo Cavallina e Maria Cecilia Barbetta, cujos depoimentos não mencionam Battisti, mas o relator interpreta que Cesare foi citado indiretamente. Comente.

Arrigo não foi considerado delator premiado, apenas um colaborador da Justiça. Ele não estava obrigado a denunciar ninguém. Quanto a Maria Cecilia, posso imaginar que era como muitos outros jovens fascinados pela luta armada e provavelmente acreditava que Battisti era um herói. Ela é hoje professora da Universidade de Pádova, sempre se recusou a dar entrevistas. Quanto à interpretação do relator, era parte do Estado de exceção da época. Nós temos hoje um bom exemplo na Lava Jato. Não precisam de prova nem confissão, apenas do que o acusador acredita.

Mutti e Enrica Miglioratti foram condenados em 1980 pela morte de Santoro. O nome de Battisti não aparece até que firmem acordo de delação e, a partir daí, o processo muda de rumo. Quais foram as vantagens dos delatores?

A vantagem de Mutti foi a redução da pena, de prisão perpétua para oito anos. A de Enrica foi também uma redução substantiva. Não lembro exatamente quanto tempo serviu em prisão, mas foi relativamente pouco.

Pela morte de Pierluigi Torregiani, inicialmente são presos Sisinnio Bitti, Marco Masala, Umberto Lucarelli, Roberto Villa e Fabio Zoppi. Bitti afirmou que, devido à tortura, confessou e delatou crimes de que não participou. A Anistia Internacional denunciou prisões sem julgamento naquele caso. Ainda assim, as sentenças foram mantidas?

Só no caso de Sisinnio Bitti. Bob Villa e Zoppi foram soltos alguns dias depois. Era muito evidente que eles não tinham nada a ver. Sisinnio e Marco foram mantidos presos e torturados. Sisinnio cumpriu três anos e meio de prisão. 

No processo sobre a morte de Lino Sabbadin, testemunhas afirmam que os autores estavam mascarados; mesmo assim há o suposto reconhecimento de Battisti. Há algum trecho no processo que justifique essa contradição?

Não há, não. Na parte do processo à qual tivemos acesso há pelos menos cinco contradições em diversas partes do texto, referidas a horários, dias da semana, quem atirou e quem escoltou, entre outras várias. Em realidade, ninguém entre os magistrados era totalmente neutro. Então, não havia problemas. Quando o filho de Lino Sabbadin foi trazido pela mídia ao Brasil, para reforçar a campanha contra Battisti, ele duvidou muito, entrou em contradições e confusões. Sua fala passou pela TV Bandeirantes. Finalmente disse que acreditava, sim, que Battisti era o culpado porque os delatores tinham dito isso. A esposa de Sabbadin disse que tinha reconhecido os autores, mas sempre se recusou a falar. A mídia justifica isso dizendo que ela tinha medo de retaliações, mas na época aquele grupo armado já não existia.

Sobre a morte de Campagna, o depoimento de Mutti também é o argumento para a condenação. Você diz, no livro, que há citação a um tal Bruni, de quem nada se sabe. Não há qualquer informação sobre essa testemunha ou mesmo sobre ela ser real?

Não. Esse dado nunca mais foi analisado. Em todo o processo de Battisti, a quase totalidade das testemunhas é citada apenas pelo sobrenome, sem dar profissão, domicílio, nem qualquer outro dado. Esse tal de Bruni deve ter sido um cidadão qualquer que passava pelo local no momento em que começou o tiroteio.

Você menciona que Sante Fatone, também delator, apenas confirmou o que Mutti disse às autoridades. Fatone teve acesso ao depoimento de Mutti antes de prestar o seu?

Esta é uma pergunta chave. Realmente, nunca se soube. O mais provável, que se pode deduzir vagamente de uma das páginas do processo, é que os magistrados perguntavam a Fatone de maneira genérica: “você confirma o que disse seu camarada Mutti sobre tal e qual coisa?”.

Diego Giacomin, réu pela morte de Sabbadin, fala em um “companheiro” que o auxiliou, mas não cita o nome. A Procuradoria sabia que não se tratava de Battisti e por isso não perguntou quem era?

Eu acredito exatamente nisso, sim. Se o Diego tivesse dito “Foi João da Silva”, ou qualquer outro, teria estragado a armação da Procuradoria. Diego sempre disse que após ter atirado em Sabbadin teve crises de culpa, transtornos mentais, remorso, enfim, essas coisas que acontecem muito em situações de violência. Ele foi liberado oito anos depois, por causa de sua saúde comprometida.

Ilustração mostra Battisti, jovem, preso na presença de um policial e outros dois homens.

Quais as semelhanças entre os casos de Battisti e do ex-presidente Lula, e quais fatores te levam a concluir que a Itália não vivia uma conjuntura democrática?

Ambos os casos são parecidos, porém o de Lula possui uma dimensão política enorme, como mostra a atual situação do Brasil. Cesare nunca foi relevante politicamente. Era um garoto entusiasmado com a ideia de acabar com o fascismo no mundo, mas sequer foi chefe ou coordenador de qualquer grupo dentro dos PAC.

A resposta depende do que entendemos por ditadura. Na Itália da época havia um Parlamento funcionando, não era como na Argentina ou Chile, e o presidente era eleito. Isso a diferencia do Brasil, onde os militares escolhiam o presidente. Mas o verdadeiro controle do Estado estava em mãos de forças nada democráticas: a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), os militares italianos, os grandes magnatas, a Igreja etc. Os juízes tinham um poder praticamente absoluto. Numerosos assassinatos de estudantes nunca foram apurados. A comparação com o Brasil é muito oportuna. É difícil dizer que o Brasil de hoje seja uma democracia. Algo análogo aconteceu na Itália, talvez com mais sutileza.

Em 2009 e 2011, a revista italiana Panorama publicou supostas entrevistas com Pietro Mutti. À época, você escreveu um artigo no qual põe em xeque a veracidade delas. Explique por que considera a possibilidade de farsa e qual pode ser o paradeiro de Mutti.

Uma coisa que me chamou a atenção é que o jornalista Amadori, na primeira das duas entrevistas, não tirou foto de Mutti. Ele era figura chave no maior assunto judicial da época, e parece esquisito que um jornalista não tire uma foto de uma figura chave. Houve alguns protestos dos leitores e, na entrevista seguinte, Amadori publicou uma foto antiga, da época em que Mutti estava preso. Além disso, amigos do norte da Itália comprometidos com o caso de Battisti dizem jamais ter localizado o trabalho ou o domicílio de Mutti, apesar de Pietro ser figurinha muito conhecida. Não se sabe seu paradeiro. Alguns ativistas de direitos humanos na Itália pensam que ele está trabalhando, possivelmente fora do país, sob proteção de militares ou da Embaixada para evitar que faça revelações.

Em março deste ano, houve a notícia de que Battisti teria confessado a autoria dos homicídios, o que foi confirmado pelo advogado Davide Steccanella. O que pode haver por trás da confissão?

Na carta de Battisti aos companheiros, ele diz que queria ter paz, finalmente. Mas por que essa brusca necessidade de confessar para estar em paz? Os presos, em algumas prisões da Itália, recebem hoje um tratamento não totalmente cruel, e ele pôde mandar e receber cartas, e seguir escrevendo livros. Ameaçaram-no de mudar sua situação.

Alguns membros do Judiciário ameaçaram Cesare com um argumento muito comum na Itália. Disseram que, se ele não confessasse, os juízes de execução penal deveriam considerá-lo terrorista, e não apenas homicida. Nesse caso, poderia ser submetido ao sistema 41 bis, que significa o isolamento absoluto. As pessoas que sobreviveram a este tipo de isolamento perderam totalmente a capacidade de raciocínio, vários se suicidaram. O 41 bis foi numerosas vezes condenado pela ONU e até pela União Europeia.

Tanto os amigos de Cesare no mundo literário, quanto os membros da família e outras pessoas reconhecem que ele queria se recusar a negociar com a Procuradoria. Ele faz sempre muita questão de seguir os princípios, mas foi convencido de que devia pensar em seus filhos e filhas, nos familiares e nas pessoas que gostam dele, que são muitas na Europa, e não se deixar destruir como um mártir.

Cesare não delatou ninguém. Apenas atribuiu a si mesmo as culpas. Atualmente sua situação tem melhorado bastante e em 2023 poderá passar a um regime mais aberto, com direito a dois meses de liberdade controlada por ano. Houve uma pessoa julgada com base em um caso de 1982, nas mesmas situações de Battisti – mas não era político, e sim acusado de delitos econômicos e estelionato –, em que a União Europeia obrigou a Itália a liberar o prisioneiro e indenizá-lo. Eu quero estudar esse caso com mais cuidado. Ainda não falei com o advogado de Cesare sobre isso.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

Fábio Faria

Diretor de arte

Estudante de jornalismo e ilustrador. Interessado em artes, cultura e assuntos do espectro político.

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3 Comments

  • SINTO QUE A INJUSTIÇA É ALGO NO MUNDO QUE SOFREM APENAS OS INOCENTES.
    SOMENTE ACHO QUE QUANDO EU MORRER AONDE SEJA O LUGAR QUE EU ESTIVER A JUSTIÇA VAI IMPERAR E TEREMOS A PAZ QUE TANTO DESEJAMOS.
    QUE DEUS NA SUA INFINITA BONDADE PROTEJA E ABENÇOE NOSSO COMPANHEIRO CESSARE AO QUAL PASSOU E PASSA POR UM MOMENTO DIFÍCIL MAIS CREIO QUE 2023 CHEGARÁ E ELE TERÁ A OPORTUNIDADE DE RESPIRAR UM.POUCO MELHOR.

  • …parabéns ao querido companheiro carlos lungarzo, que com o devido respeito, competência e garra, abraça a defesa de mais um injustiçado pelos atuais governantes do país. tempos difíceis enfrentamos, oxalá tenhamos forças para bradar contra as injustiças que assolam o brasil e seu povo. que mais homens como lungarzo levantem-se em defesa dos direitos e por justiça aos desprivilegiados e oprimidos. vamus às lutas!!!…

  • Obrigado, Roque. Saudades e abraços

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