Sagrados bastidores da política

A influência de grupos evangélicos na política local

Por Guilherme Correia

Quadrinhos por Fábio Faria e Marina Duarte

Guilherme Correia ·Ouça o minipodcast antes de começar a reportagem

O ano é 2018. Jair Bolsonaro (atualmente sem partido) é eleito presidente do país com mais de 53 milhões de votos. Entre as bandeiras defendidas pelo então deputado federal pelo Partido Social Liberal (PSL) havia temas como segurança pública, anticorrupção, além de pautas morais – potencializadas, na visão de alguns cientistas políticos, por grupos evangélicos.

Em meio à parte do eleitorado que tentou não eleger o ex-capitão do Exército Brasileiro, a jornalista e pesquisadora em Comunicação, 21, Mylena Fraiha se define como seguidora de Jesus, sobretudo a partir de uma perspectiva mais “espiritual”. Criada em uma igreja evangélica em Campo Grande (MS), na Vila José Pires, Mylena seguiu os passos da mãe, primeira a se converter numa família que não era evangélica nem frequentava igreja.

“Parte da minha visão de mundo foi construída a partir desse ambiente, a partir de lá tive preconceitos de coisas que eram fora de lá. Mas foi a partir de lá que me desenvolvi em aspectos intelectuais e artísticos”, comenta.

Nas eleições daquele ano, ela relata que a Quarta Igreja Batista de Campo Grande passou por um “racha”. Segundo ela, pessoas brigaram por política, e alguns até deixaram de frequentar. Em meio a um clima “tenso”, Mylena conta que “havia desrespeito e pessoas que não sabiam dialogar” devido à decisão nacional do próximo presidente. 

Ela narra que um fiel de outra igreja batista, que em 2020 se candidatou a vereador pelo PSL, chegou a discutir com integrantes que práticas contrárias à doutrina Batista eram defendidas e ensinadas. Para ela, tal posição ia contra o ensinamento e pensamentos plurais da própria instituição. “Penso que isso tenha sido movido sim por motivações ideológicas, ideias conservadoras. Ele havia questionado algumas interpretações da bíblia que o seminário discutia”.

Tempos depois, vários teólogos batistas até saíram do Seminário Teológico Batista Sul-Mato-Grossense, que estudava não só a bíblia como diversos outros temas sociais, depois de ruídos com o candidato. Segundo Mylena, houve uma espécie de “desmonte” nesse ensino. “Aquilo foi triste porque acabou com minha vontade de ingressar esses estudos”.

Entre possíveis teorias que alguns cientistas políticos utilizam para explicar como se deu esse processo de eleição, há quem defenda que os evangélicos tenham sido importantes para a candidatura do ultradireitista. Apesar disso, outros apontam que não tenha sido determinante para o resultado nas urnas naquele ano. De qualquer forma, não só o eleitorado evangélico tem crescido a nível nacional, como candidaturas que tenham relação a esses grupo têm aumentado cada vez – ao menos em nível municipal.

“A participação política de grupos evangélicos tem crescido, de fato, nos últimos dez anos. E pautas morais, questões que até então eram ‘de menor peso’ nas disputas eleitorais, em 2018, tiveram importância muito grande, como união civil de pessoas do mesmo sexo ou questões da escola sem partido”, explica o professor e pesquisador em Ciência Política da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Daniel Estevão de Miranda.

O cientista político afirma que certas “pautas morais” têm sido cada vez mais importantes para parte dos eleitores e candidatos – mas que não representam fenômeno ligado exclusivamente a Bolsonaro nem aos grupos evangélicos. “Isso não é de agora. Em 2014, com o PT [Partido dos Trabalhadores] muito envolvido em escândalos de corrupção, à época com a presidente Dilma, a corrupção começou a ter mais peso na avaliação moral dos eleitores”.

Mylena lamenta que algumas pessoas olhem para a religião com um tom acusatório – praticado, invariavelmente, por ela própria. “No geral, a igreja fomenta o sentimento de culpa. Quando tento ler a história de Jesus, eu encontro outra forma de entender a espiritualidade – uma noção de você se libertar dessas amarras na vida, tanto materiais quanto espirituais e psíquicas”.

Ela menciona que desenvolveu um senso crítico sobre diversas questões da sociedade, inclusive sobre a participação religiosa na política partidária, por meio da figura do pastor de sua igreja. “Quem mais me inspirou intelectualmente foi o pastor Marcelo […] um cara que sempre teve uma mensagem positiva em relação às questões sociais. Ele é muito ligado a essa figura de Jesus Cristo e do combate a injustiça social, além de incentivar o lado artístico e intelectual. Não sei se eu fugi da regra ou se o ambiente que presenciei era muito legal”, relata Mylena.

Eu conversei com o pastor Marcelo Moura da Silva, 54, doutor em ciência da religião pela Universidade Metodista de São Paulo, que me recebeu com muita hospitalidade em seu gabinete na igreja que pastoreia há 12 anos. Ele lembrou que a perda significativa de membros em sua igreja se deu por diversos conflitos entre os fiéis. “Decidi não usar redes sociais em 2018, e não sabia de muita coisa que estava acontecendo na igreja. Quando eu via, tinha ‘um brigado com o outro’. Enquanto pastor, precisava ter essa postura de tentar mediar esses conflitos, já que temos pessoas de diferentes pensamentos políticos lá”.

Com a boca coberta por máscara de proteção facial devido à Covid-19, mas sempre com um sorriso nos olhos, o entrevistado foi na verdade aquele que primeiro perguntou na entrevista.

– O que você sabe de religião evangélica?

– Bem pouco.

Crescimento evangélico

No Brasil, para abrir uma igreja é preciso pagar uma taxa de R$ 114,99 para protocolar o registro de pessoa jurídica, o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), em um cartório. Caso o templo não seja independente, ou seja, faça parte de um grupo evangélico maior – como é o caso de grandes igrejas brasileiras como a Assembleia de Deus ou a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – é necessário que a sede autorize a fundação.

Por meio dos dados disponibilizados pela Receita Federal, a reportagem levantou a quantidade de registros feitos de igrejas em toda a história de Campo Grande, que indicam a expansão de vertentes evangélicas visível a olho nu nas quadras e quarteirões das cidades.

No geral, há uma crescente contínua ao longo dos 32 anos analisados, desde o registro oficial da primeira igreja, a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, em 1988. Tendo a matriz em São Paulo (SP), ela possui ao menos 11 unidades em Campo Grande.

Além disso, os anos de 2018 e 2019 foram os que mais tiveram igrejas registradas em toda a série histórica, 305 e 137, respectivamente. A parcial de 2020, inclusive, é a maior desde 2015- são 52 novos registros de igreja neste ano enquanto há cinco anos haviam sido 51.

Pastor da Quarta Igreja Batista de Campo Grande, Marcelo Moura da Silva ressalta que os grupos evangélicos não possuem uma centralidade. “Há entre a vertente ‘histórica’ dos evangélicos, como anglicanos, presbiterianos, metodistas ou batistas, características próprias que as definem entre si. Mas por exemplo, entre as batistas, mesmo com uma ‘confissão de fé’ única e uma cooperação entre as diversas igrejas, não há um governo central, tampouco doutrinário”, explica.

“Um dos maiores problemas em querer tratar de igreja evangélica no Brasil é o desconhecimento básico do que ela é. A gente tem que entender que não é um bloco monolítico. Não há uma visão religiosa doutrinária, temos uma pluralidade absurda. Por exemplo, se compararmos uma igreja luterana com alguma criada recentemente – e a cada dia surge uma nova denominação – há uma distância abissal teológica e histórica”, argumenta.

Em meio a uma série de leituras marxistas, leninistas e trotskistas, a jornalista e pesquisadora Mylena Fraiha avalia que somente a vertente batista já é marcada por diversas contradições dentro da sua fé. “Nos Estados Unidos, era muito ligada à questão do racismo. Foi a mesma igreja que apoiou o KKK [Ku Klux Klan], mas também o Martin Luther King Jr.”.

Marcelo diz que o que une os evangélicos é a crença numa “revelação bíblica” única, mas que a origem desse grupo amplo se deu no final do século XX, quando foi necessária uma maior união entre as diferentes vertentes para que se engajassem política e socialmente. “No Brasil, esse conceito foi forjado há uns 20 anos, porque não conseguíamos ter uma ‘construção comum’ que pudesse contemplar os diversos grupos evangélicos socialmente. Por meio da Associação Evangélica Brasileira, foi exigida maior pluralidade no ensino religioso, por exemplo, que antes era primordialmente católico. Nas capelanias do Exército Brasileiro só haviam padres. A união evangélica se deu para reivindicar isso também”.

Segundo ele, sobretudo no início dessa coalizão, características reformistas eram o que uniam as matizes não católicas. Com o tempo, vertentes neopentecostais quiseram se aliar também, mas houve uma espécie de “purismo”. “No início, não queriam deixar entrar outras vertentes. Mas com o tempo, elas entraram e praticamente dominaram essa organização. As [vertentes] históricas foram perdendo atuação, já que as neopentecostais vieram com força numérica muito significante”.

 

“Com bispos, muitos pastores e até apóstolos, as pentecostais e neopentecostais detém fieis a partir do ‘carisma’ de líderes, um ponto de atração enquanto capital político, tanto dentro da igreja como também influenciando de forma externa, para toda a sociedade”

– Pr. Marcelo Moura da Silva

 

Essa crescente evangélica também é visível em números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Último Censo, de 2010, identificou aumento de aproximadamente 39% na população evangélica do país, no período de 10 anos. Mato Grosso do Sul é o 11º estado com maior número proporcional de fiéis.

O pastor Marcelo comenta que mesmo a Igreja Católica, que possui instrumentos que centralizam a doutrina como a figura do Papa ou estruturas do Vaticano, está sujeita, em menor nível, a possuir especificidades em cada contexto, inclusive na forma em que se relaciona com a política. “As paróquias, por exemplo, são livres nas suas localidades. Há grupos mais ortodoxos, mais moderados e até os mais progressistas”.

Por meio de mensagens trocadas pelo WhatsApp, Igor Ferreira (nome fictício), 32, que frequenta uma igreja evangélica no Centro de Campo Grande comenta que a Igreja Católica teve uma “recuada” na popularidade. Ele avalia que tenha havido tentativa de uma “guinada” por meio da Renovação Carismática Católica, que tentou utilizar a música gospel e figuras para evitar “perda” de católicos para outras crenças.

A religião evangélica sentiu aumento expressivo até mesmo na cultura popular – o grupo Diante do Trono mobilizou mais de 1,5 milhão de pessoas em diversas cidades no Brasil. Campo Grande, em 2004, recebeu show com aproximadamente 250 mil pessoas.

Marcelo analisa que a crescente está relacionada com uma melhor comunicação da igreja evangélica com os fiéis, sobretudo os mais jovens e os com “mentalidade mais crítica”. “As neopentecostais têm linguagem muito aproximada da linguagem cultural de hoje, os cultos são verdadeiros ‘espetáculos’. Mas além disso há o aspecto da experiência religiosa, algo de foro muito íntimo e ‘descontrolado’. Sou pastor mas não tenho mínima ideia de quem tem experiência religiosa genuína. Mas isso é diferente da Católica, normalmente perpetuada pela família, com batismos na infância, etc. Boa parte das evangélicas acreditam na ‘conversão adulta’, quando o indivíduo tem capacidade de tomar ação e decidir sua religiosidade”.

Para Daniel, a relação entre religião e política, no Brasil, é muito mais antiga que a crescente evangélica das últimas décadas. De acordo com o pesquisador, a união entre esses dois campos está ligada com a história do país – desde a chegada dos portugueses, que trouxeram a religião católica, a fé esteve ligada direta ou indiretamente ao âmbito político. Segundo ele, tempos depois, a crise do Império teria forte influência de padres maçons, que colocaram Dom Pedro II no poder.

“Mas o que faz do movimento evangélico ser uma grande novidade?”, provoca. Para ele, um dos diversos motivos é que as próprias lideranças evangélicas, sobretudo os pastores, ingressam diretamente na política por meio de candidaturas nos mais diversos cargos e partidos políticos.

Com o passar dos séculos, diz, a atuação política da Igreja Católica começou a ser mais indireta, a partir de uma estrutura forte e muito organizada. Um sinal disso, segundo ele, seria a ausência de padres eleitos em cargos de senadores e deputados no país.

“Desconheço se teve algum, em cargos mais ‘altos’. A Igreja Católica nunca precisou eleger senadores ou deputados para ter influência. Muitos políticos, até mesmo presidentes da República, foram pessoas declaradamente católicas, mesmo não sendo figuras religiosas. Por meio deles, a Igreja achava esses ‘canais’ de influência. Ela pode até se manifestar, por meio de figuras individuais, mas não tem preocupação de dar o tom de uma campanha”.

Marcelo salienta que essa “união evangélica”, criada para buscar direitos e espaço na sociedade, não teve origem a partir de motivações políticas, mas que pode ser facilmente configurada enquanto instrumento eleitoral. “Tudo é um processo. Com o tempo, se percebeu que poderiam ir mais longe. Essas organizações não funcionam para articulação política, mas cooperam. Facilitam porque congregam um número muito grande de pessoas, e isso te ajuda a fazer a articulação para eleições”, diz.

Segundo Douglas Duarte, evangélico e candidato a vereador pelo PSL em Campo Grande, há cargos públicos que já foram ocupados por lideranças de grupos evangélicos na cidade a partir de nomeações oficiais, que segundo ele, angariavam votos dos fiéis durante campanhas eleitorais. “Eu diria que mais de 600 pessoas, no geral. Imagina todas essas pessoas formadores de opinião em igrejas, cada uma com mais de cinco mil membros, falando em quem votar. Além de ser um ‘comércio da fé’, é o ‘comércio do voto'”.

Igor Ferreira relata que seja frequente que lideranças religiosas sejam remuneradas por figuras políticas da cidade a fim de obter votos entre fiéis. “Geralmente como eles [políticos] têm muito poder aquisitivo, remuneram a ‘cabeça da igreja’. Se têm acesso no governo, ‘loteiam’ a igreja dentro da máquina e tornam elas escravas do sistema. Pastores mesmo, da cabeça da igreja. Eles dizem abertamente: ‘meus irmãos, votem em ‘fulano de tal’”, conta.

Segundo ele, que diz não ter como provar mas afirma já ter conhecido líderes religiosos que tenham feito tais práticas, há igrejas que são criadas e utilizadas para “fins eleitoreiros”. “Tem partidos que pensam assim, partidos que, teoricamente, com muita concentração de evangélicos, calculam ‘tantas igrejas, que podem ser revertidas em tantos votos’. Os caras fazem cálculo assim”.

Daniel ressalta que na última década, evangélicos começaram a buscar maior participação política, se apoiando em diversos discursos morais como os do combate à corrupção. “Principalmente depois desse ciclo de vitórias do PT, nos últimos dez anos, os evangélicos conseguiram ocupar espaço na campanha eleitoral. Como o partido foi sequencialmente acusado de escândalos de corrupção: mensalão, petrolão, entre outros, o que os evangélicos – e outras lideranças não necessariamente evangélicas – fizeram: ‘Vamos explorar isso’”. Segundo o pesquisador, esses grupos começaram a ocupar ativamente o espaço político.

Pastores querem ser políticos

Campo Grande teve ao menos dez pastores que se candidataram a vereador em 2020 e que evidenciaram essa atividade pastoral no nome político, aquele que estampa o material de campanha. Esse índice é apenas indicativo dessa presença nas candidaturas, já que é impossível verificar uma totalidade do fenômeno devido a pastores que não se apresentam assim para os eleitores – o que indica possibilidade de ser ainda maior do que se pode catalogar.

Uma análise dos dados abertos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostra que a quantidade de candidaturas que decidiram declarar o ofício religioso, exclusivo às vertentes evangélicas, no “nome de urna” tem crescido ao longo das últimas duas décadas. Ou seja, os candidatos que se apresentaram como ‘pastor’ ou ‘pastora’ para o eleitorado.

Esse nome é utilizado já que normalmente é pelo qual as pessoas são conhecidas efetivamente, explica Daniel. “Pode ou não ser o mesmo que o nome civil da pessoa. Nos registros eleitorais têm muitos ‘Zé’, ‘Tião’, ‘Tonhão’, que são os apelidos, porque é o nome pelo qual são conhecidos. Se coloca ‘José da Silva’, talvez os eleitores não soubessem quem é. Isso ajuda o eleitor, e vale também para ‘pastores’, ‘sargentos’, ‘professores’, etc”.

O cientista político acredita que, ao menos em tese, parte da percepção eleitoral procura esse tipo de relação. “Muitas pessoas são conhecidas assim no meio onde vivem, até mesmo esposas dos pastores, líderes religiosos de bairros. Isso ajuda a criar essa conexão. Além de ajudar o eleitor a se lembrar do candidato, ele reforça essa relação. Afinal de contas, ele não está votando simplesmente em alguém comum, está votando em quem tenha ações para a educação, se for um professor, em alguém com ações para segurança pública, se for alguém dessa área”.

Segundo o levantamento, 3.611 pastores se candidataram nas eleições municipais de 2016 em todo o Brasil. Quatro anos depois, esse índice teve crescimento de quase 40%, com 5.069 pastores na disputa por cargos em câmaras e prefeituras municipais.

 

“Se você perguntar qual seria o problema disso, te digo: não sou contra a eleição de figuras evangélicas. A política é um espaço democrático e é para as pessoas”

– Prof. Daniel Estevão de Miranda

 

Mesmo dizendo ‘pastor’ no ‘nome de urna’, a maioria dos candidatos indica outra ocupação para a Justiça Eleitoral. O cientista político justifica que isso acontece pela falta de centralização ou regulação das igrejas evangélicas, ao contrário da Católica, além de que esses candidatos podem ter outros ofícios porque não necessariamente vivem da atividade pastoral.

Entre os mais de cinco mil candidatos que se autodenominaram ‘pastor’ nas eleições municipais em todo o Brasil, a maior parte não tem ocupação oficial registrada – são 2.038 no com declaração na opção “outros” – e 528 se definem oficialmente enquanto “sacerdote ou membro de ordem ou seita religiosa”.

Quase todos os partidos de 2020 lançaram candidatos pastores. O Republicanos, partido conhecido por suas ligações com a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), é o com maior quantidade de candidaturas, seguido do Partido Social Cristão (PSC) e do Partido Social Democrata (PSD).

No Brasil inteiro, em 2020, apenas o Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido da Causa Operária (PCO), Partido Novo e o Unidade Popular não tiveram candidatos pastores.

É importante observar que em todos os estados há candidatos que se valem dessas denominações. Mato Grosso do Sul, proporcionalmente – ou seja, no índice de candidatos pastores por candidaturas – é o sexto em todo o país, atrás do Amazonas, Goiás, Rio de Janeiro, Amapá e Pará.

No ponto de vista político, é quase unanimidade que Mato Grosso do Sul seja um estado conservador, embora seja muito difícil mensurar esse aspecto, avalia Daniel. Mesmo assim, ele corrobora com o senso comum e ressalta que um dos indicadores para isso é o perfil dos partidos que dominam a cena política há anos.

Mesmo com considerável influência política no contexto local, os grupos evangélicos não representam força das mais importantes porque não têm espaço em uma região que já é conservadora, avalia o professor.

Nas eleições municipais de 2020, os partidos que mais lançaram candidatos no estado foram Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), agremiação do governador Reinaldo Azambuja, Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e Democratas. “São partidos que têm muita força e que possuem certa identificação com alas de centro e direita”.

Entre os municípios de Mato Grosso do Sul, aliás, Campo Grande não se destaca nesse quesito de forma proporcional. Aquidauana teve nove pastores se candidatando em 2020 – número que comparado ao total de candidatos (183) se mostra de forma mais expressiva que as demais cidades.

Para o pastor Marcelo, o título evangélico deveria se restringir ao âmbito religioso. “Pastor é título de religião, só faz sentido dentro da fé. Sou pastor dentro da igreja, mas tem pessoas que me chamam pelo nome. Acredito até que isso deveria ser proibido nas eleições. Deveria candidatar apenas com o nome de cidadão”, comenta.

Ele ainda menciona que entre vários segmentos religiosos, há uma espécie de “valorização” de quem tenha relação com a fé, mas que nem todos que exerçam a crença são obrigatoriamente “boas pessoas”. “No mundo da religião, se a pessoa tem relação com a igreja e vive da fé, acreditamos que ele vai manter seu caminho, manter seus ideais. Mas nem tudo que reluz é ouro, nem todos os que usam títulos de médico são bons, nem todo jornalista é bom. Nem todo pastor…”, comenta

Na contramão dos colegas que declaram atividade pastoral, o pastor Edil Queiroz, 57, que se candidatou a vereador pelo Partido Verde (PV) em Campo Grande, não utilizou alcunha religiosa no nome político, apesar de ter a vocação pastoral há mais de 31 anos em comunidades batistas da cidade.

No sábado que antecedeu as eleições de 2020, Edil e eu conversamos durante alguns minutos por meio de mensagens de voz e ele explicou que decidiu interromper o pastorado da igreja antes do pleito. “Fui até questionado, porque se eu não ganhasse nessas eleições ficaria sem ocupação, né? Mas queria deixar bem claro para mim mesmo que eu fechei um ciclo desse exercício pastoral institucionalizado, o que não quer dizer que não possa acontecer em um outro momento”, explica.

 

“É até uma crítica que faço. Muitos utilizam o título pastor e trazem suas convicções pessoais para o cenário social. Eu tenho as minhas convicções pessoais, mas eu quero, enquanto cidadão, pensar a cidade como um todo. Isso vale para outras pautas identitárias também”

– Edil Queiroz (PV)

 

Na opinião do cientista político Daniel, o uso do nome “pastor” pode ser encarado como estratégia política para haver identificação com determinadas causas ou valores, ao menos no senso comum. “Esse crescimento está ligado ao crescimento dessas pautas morais, e ao mesmo tempo, também as sustenta. Para se eleger, é preciso convencer, no discurso, que você é diferente dos outros. As pessoas que usam a fé, crenças ou valores morais, precisam convencer o eleitorado, e às vezes até ter posturas mais conservadores que a base evangélica. Candidatos assumem discursos mais radicais do que na igreja, porque, em parte, para ser eleito é preciso ter uma imagem que se faça ser lembrado pelo eleitor e que sinalize suas prioridades”.

Edil também ressalta que é impossível evitar com que quem frequente a igreja em que realiza atividades religiosas não esteja automaticamente propenso a votar nele. Mas ele afirma que sua “consciência” não o permite que faça qualquer tipo de “abordagem política” dentro da igreja. “Não sou candidato da igreja, não represento a denominação. É óbvio que a igreja ‘me dá’ algum eleitorado – fui pastor em uma das igrejas por 19 anos, então acredito que alguém que me conheça de lá vai votar em mim, porém eu separo muito bem isso, a questão da igreja enquanto instituição”.

Carioca, Edil é evangélico desde criança, quando ia à igreja junto de seus pais, e defende sustentabilidade, renovação política e incentivo à articulação social para maior representatividade. Ele terminou sua primeira disputa por cargo público com 338 votos e não foi eleito (Foto: Divulgação/Partido Verde)

Uma das figuras que o fez se engajar no partido foi o Pastor Alvarenga (PV), que se candidatou à vice-prefeitura da cidade junto ao engenheiro Marcelo Bluma (PV) – Alvarenga, inclusive, está incluso no levantamento de candidatos que optaram por declarar a atividade pastoral no “nome de urna”.

Entre os pastores que se candidataram a cargos públicos em 2016, em Campo Grande, o único eleito foi o Pastor Jeremias Flores (Avante). Durante seu mandato, o ex-vereador foi acusado de desviar dinheiro de entidade para igreja pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS). Nas eleições de 2020, mesmo com solicitação do Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS) para que sua candidatura fosse impugnada devido a não prestação de contas dos gastos de campanha, ele recebeu 1.306 votos, mas não foi eleito.

Barreiras no céu de Campo Grande

Em abril de 2020, o prefeito Marcos Trad (PSD) participava de fiscalização do comércio da cidade em detrimento da pandemia de covid-19. Na ocasião, em frente à Esplanada Ferroviária, ele comandou oração junto aos fiscais e apoiadores (Foto: Marcos Maluf/Campo Grande News)

Em Mato Grosso do Sul, Marcos Marcello Trad, 56, foi eleito prefeito da capital, Campo Grande, pelo Partido Social Democrático (PSD) em 2016 e 2020.

Protestante assim como os dois últimos rivais – em 2016, a atual deputada estadual Rose Modesto (PSDB) e em 2020, o procurador Sérgio Harfouche – “Marquinhos” recebeu 241.876 (58,87%) dos votos válidos no segundo turno da disputa de seu primeiro mandato, e 218.418 votos votos (52,58%) no primeiro turno quando garantiu reeleição.

Segundo irmão dos cinco filhos de Nelson Trad – figura presente na política local desde 1963 até seu falecimento, em 2011 – o atual prefeito já tinha bagagem política de vereador e deputado estadual. Além disso, nunca escondeu a preferência religiosa.

Assessor de um parlamentar eleito pelo PSD opina que o atual prefeito, ao contrário dos irmãos Fábio Trad e Nelson Trad, este popularmente conhecido pelo apelido no diminutivo: “Nelsinho”, tem sido uma figura mais “ao centro” em aspecto político-ideológico. “O Fábio é mais de esquerda, o Nelsinho é mais ‘Bolsonaro’ e o Marquinhos fica em cima do muro”.

Para o cientista político Daniel Estevão de Miranda, políticos que ocupam cargos executivos possuem tendência em serem mais “maleáveis”. Ele cita como exemplo a criação de uma subsecretaria para a população LGBTQ+ em Campo Grande, que teve aval do prefeito, apesar de ter havido forte oposição de grupos mais conservadores.

“Podem acusá-lo [Marquinhos] de várias coisas, mas incompetente, do ponto de vista político, ele não é. Ele foi eleito e reeleito várias vezes em vários cargos. Talvez, ele tenha noção que as bases eleitorais deles sejam menos conservadoras e menos radicais do que a gente pense”.

Convertido na Igreja Atos e Justiça do bairro Tiradentes em 2009 Marcos tem sido mais frequente nos últimos anos na igreja Sara Nossa Terra, que possui ao menos 19 unidades na cidade. Ao lado dele, a também evangélica Adriane Lopes (Patriota) foi eleita vice-prefeita em 2020 a partir de uma coligação que uniu partidos tão diferentes como Republicanos e Partido Comunista do Brasil (PC do B).

O pesquisador reforça que, no geral, grupos evangélicos ajudaram a criar uma “virada à direita” no país, mas que muitos têm ações bem menos radicais do que se comparado aos discursos. “Na linha de frente, os políticos que tomam decisões de verdade costumam ser mais moderados”.

Ao comentar sobre essa maleabilidade de chefes de executivos, ele cita artigo publicado no fim de 2017 pelo professor e ex-prefeito de São Paulo (SP) pelo PT, Fernando Haddad, que mencionou diálogos que teve com o então deputado Magno Malta a respeito da polêmica do “kit gay”. Segundo o petista, a apresentação de cartilhas que reforçam combate à homofobia foi discutida amigavelmente com o político antes que fosse apresentada de fato. Apesar disso, em público, Malta foi um dos principais críticos do projeto – utilizando até de notícias falsas para atacar a ação.

 

“O parlamentar, em nível nacional ou local, do legislativo costuma ser mais radical no palanque. Ele tem mais incentivos para ser assim. Já a pessoa do executivo tem de ser ponderada, já que as decisões têm consequências mais diretas”

– Prof. Daniel Estevão de Miranda

 

Em 1º de janeiro de 2017, quando Marquinhos tomou posse, sentado em uma das cadeiras no Centro de Convenções Rubens Gil de Camillo, no Parque dos Poderes, Douglas Duarte, 34, sorria para o prefeito que ajudou a eleger.

Em outubro de 2020, quando buscava se eleger vereador, Douglas diz em tom contrariado: “Ajudei a eleger o Marquinhos, mas hoje vou ajudar a tirar ele”.

Candidato a vereador em 2020 pelo PSL e evangélico, Douglas (à esquerda) relata ter feito parte da campanha de Marquinhos Trad. Neste ano, ficou com 305 votos válidos e não se elegeu (Foto: Reprodução/Instagram)

Em um dos poucos momentos em que pôde me atender, o candidato a vereador em Campo Grande pelo Partido Social Liberal (PSL) conversou comigo por meio de vídeo-chamada durante algumas horas sobre sua campanha e sobre a relação dele com o prefeito da cidade.

 

– Poderia começar a reunião contigo orando. Você é eleitor, não é verdade?

Douglas só teve de interromper durante alguns minutos quando recebeu notificação no celular, vinda da esposa. O sogro, que era pastor evangélico, havia falecido por problemas cardíacos no dia anterior à entrevista, e a cônjuge de Douglas estava no velório.

A vida política dele teve início depois de ser convidado por um amigo a participar do núcleo Juventude do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – um dos partidos que já lançou candidaturas de Marquinhos, Nelson e Otávio Trad.

Foi lá que teve o primeiro contato com a Família Trad. Ao assumir, a liderança do núcleo jovem da agremiação, foi contatado pelo então presidente do partido e atual senador Nelsinho Trad para fazer parte da campanha do irmão, Marquinhos.

Evangélico, Douglas diz não utilizar da religião para se autopromover, apesar de afirmar ser “figura conhecida” na igreja em que frequenta. “Eu acho que não é legal utilizar. Mas, a galera acha interessante, né? Essa crescente [evangélica] na política tem me preocupado, vejo candidato prometendo escola, creche, e infelizmente a grande maioria do povo gosta de ouvir mentira”.

 

“É muito preocupante porque tem algo que eu não gosto e que acontece muito que é o comércio da fé. Já existe há muito tempo, pastores que oferecem curas, milagres. Quem cura e restaura é Deus. A pessoa às vezes é apenas ‘instrumento’. Aquele que conhece a palavra de Deus e não pratica tem castigo dobrado em relação a quem não conhece. Tem o céu e o inferno, mas o que você plantou aqui você vai colher aqui”

– Douglas Duarte (PSL)

 

Já para o professor Daniel, a principal característica negativa é o que ele chama de “visão antipolítica”. Segundo ele, alguns grupos evangélicos têm influenciado negativamente a percepção do eleitorado em relação à chamada “velha política”, ao suporem, por exemplo, uma revisão da política brasileira. “Na política é necessário muito mais a continuidade do que a ruptura. Essa visão antipolítica, que cria esse ‘clima’ de que está tudo errado, é ruim para a democracia brasileira, que não é uma ‘maravilha’, mas é melhor que uma ditadura, por exemplo”, comenta.

Atualmente com bagagem de três partidos em quatro anos, Douglas relata que quando começou a ter contato com a divisão nacional do PTB, não se sentia pertencente a aquela realidade. “Não era meu mundo, fui para Brasília em uma reunião e dividi quarto com vice-prefeito de Belo Horizonte, por exemplo”.

“Me perguntavam ‘de onde você veio?’ e eu respondia que não era filho de ninguém, ‘simplesmente aconteceu’, ‘estava na rua e me chamaram’”, brinca. Nessa escalada, notava que começavam a surgir divergências na campanha de Trad. O pedido para que ele também estivesse presente na campanha do atual deputado estadual Otávio Trad, marcou o início de uma relação conflituosa naquele meio.

Nomeado em  cargo administrativo na Subsecretaria de Políticas para Juventude de Campo Grande (SEMJU) em 2017, ele permaneceu por cerca de quatro meses, diz, e acumulou mais rusgas contra pessoas da subpasta. Segundo Douglas, disputas internas fizeram com que ele fosse exonerado logo depois.

No ano seguinte, 2018, Douglas foi para o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), mas também se decepcionou com a legenda – que enfrentava à época prisão do ex-governador André Puccinelli, um dos símbolos do partido em Mato Grosso do Sul.

Depois de quase desistir da carreira política e permanecer com “um bom salário em uma consultoria”, Douglas diz que foi contatado no início de 2019 por Renan Contar (PSL) para que participasse do gabinete do deputado estadual. Mesmo sem atuação direta, ele relata que começou ajudando com o que sabia – análises de outros políticos e sugestões, por exemplo, marcavam a aproximação de Douglas com o PSL.

Neste ano, ele cogitou concorrer pelo Partido Social Cristão (PSC) – predominantemente evangélico, mas depois de muito estudar os partidos, julgou que o partido que elegeu Bolsonaro tenha sido “a melhor camisa” que poderia vestir, mesmo com alguns conflitos que têm acontecido nos últimos meses, com a tentativa de criação do Aliança pelo Brasil – que dividiu o diretório regional.

Outro partido pelo qual Douglas, em dado momento, cogitou concorrer foi o Avante, agremiação que lançou a candidatura do procurador Sérgio Harfouche para a prefeitura da cidade, em 2020.

Fundador da Igreja Palavra Viva, o pastor e procurador Sérgio Harfouche ministrava culto realizado em abril de 2018 (Foto: Reprodução/Canal YAH Church Campo Grande MS)

Nascido em 4 de abril de 1963 na cidade de Fátima do Sul, distante mais de 230 quilômetros de Campo Grande, Sérgio Fernando Raimundo Harfouche graduou-se em Direito pela Centro Universitário da Grande Dourados (Unigran) e formou-se em Teologia pelo Centro Universitário Filadélfia (Unifil).

Um dos fundadores da Igreja Batista Palavra Viva (IPV), na capital, o pai de quatro filhos ingressou na carreira jurídica em 1992, quando passou a atuar no Ministério Público de Mato Grosso do Sul, na área de direitos da criança e adolescente, assumindo mais de dez anos depois a titularidade da 27ª Promotoria de Infância e Juventude de Campo Grande.

Na promotoria, por meio do Programa de Conciliação e Prevenção da Evasão e Violência Escolar (ProCeve), sua principal bandeira era o combate à violência escolar, fiscalizando alunos infratores os obrigando a prestar serviços comunitários nas instituições de ensino. Com base nesse trabalho, o pastor e deputado estadual Lídio Lopes, marido da vice-prefeita de Marquinhos Trad, apresentou em 2015 à Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul um projeto de lei que buscava combater essa violência – a proposição, engavetada por dois anos, ficou conhecida como “Lei Harfouche”.

Quando a proposta voltou a ser discutida, em maio de 2017, o Ministério Público Estadual (MPE) havia convocado audiência pública do ProCeve, sob pena de multa para o não comparecimento, em Dourados (MS), onde o procurador discursou para dezenas de pais e responsáveis de alunos matriculados no ensino público, com declarações contrárias à discussões de gênero e sexualidade nas escolas, além de dizer falas religiosas como: “está faltando Deus nas escolas”

O Conselho Nacional do Ministério Público iniciou investigação sobre o discurso, mas suspendeu a verificação quando a Corregedoria do MPMS passou a apurar o ato, por meio de processo disciplinar. À época, Harfouche disse ter prestado informações necessárias e ter se baseado apenas no artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que fala sobre o desenvolvimento religioso, além de ter negado ameaças de penalização pelo não comparecimento em postagem – hoje indisponível – em sua página no Facebook.

No ano seguinte, 2018, o projeto que leva o seu sobrenome, depois de ser editado e renomeado como “Lei Paz nas Escolas”, foi aprovado pelos deputados estaduais, e sancionado pelo governador do estado. O texto gerou até discussões sobre o mesmo tema nos estados do Amapá, Amazonas, Rio de Janeiro, Rondônia e Sergipe.

Em abril daquele mesmo ano, o procurador se licenciou do cargo para disputar sua primeira eleição, filiando-se ao Partido Social Cristão (PSC), para o cargo de senador da república. Em julho, mudou de ideia e decidiu concorrer ao governo do estado, mas em agosto, foi oficializado como candidato a vice-governador na chapa do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) junto à atual senadora Simone Tebet (MDB).

Mas no mesmo mês, a emedebista desistiu da disputa e depois de pedido negado para encabeçar a chapa, Harfouche fez o mesmo. Nas semanas seguintes, voltou para a corrida pelo Senado, mas terminou a disputa na sexta colocação, com 292.301 votos, e não foi eleito.

Mesmo que os dois candidatos com mais votos em 2020 sejam evangélicos, a batalha pela prefeitura da cidade, neste ano, foi marcada por uma série de disputas que envolveram até o que a Justiça Eleitoral considerou como acusações contra a honra de Trad.

Para Douglas, existem diversas disputas internas em diversas igrejas sobre quais serão os candidatos apoiados ou não pelos grupos evangélicos, que acabam por gerar uma enorme gama de vertentes políticas no meio evangélico. “Em alguns anos isso [pastores indicarem políticos] deu certo, mas dentro da igreja eles próprios ‘estão se matando’, ao dizer que vão apoiar um ou outro candidato, o que gera disputa interna. A maioria das igrejas estão rachadas por causa de voto, existe uma disputa interna deles por poder. Eu acho isso muito complicado porque prejudica a questão espiritual da igreja”.

Enquanto era candidato, a assessoria de Harfouche não conseguiu encaixar horários para contato com a reportagem. Depois do resultado das eleições, novas solicitações não foram atendidas. Com o atual prefeito da cidade, também não houve possibilidade de contato, mesmo que solicitado em diferentes datas e por diversos meios.

“Bancada da bíblia”

Apelidada de bancada da bíblia, a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) do Congresso Nacional é uma das diversas associações de parlamentares de vários partidos, que debatem determinados temas na câmara dos deputados.

No Brasil, para constituir uma ‘frente’, é necessário registrar requerimento contendo ao menos um terço de membros do Poder Legislativo, além de nomear representante responsável por prestar informações – cargo atualmente ocupado por Silas Câmara (PRB), pastor da igreja Assembleia de Deus e empresário, nascido no Acre mas com carreira política no Amazonas, por onde se elege deputado federal desde 1999.

O cientista político Daniel Estevão ressalta que a FPE tem ganhando força e visibilidade nos últimos dez anos, o que motiva que as pautas morais sejam sustentadas pelos candidatos evangélicos já existentes, ao mesmo tempo em que novos candidatos se veem “forçados” a deixar claro que têm envolvimento com grupos religiosos. “É um movimento que alimenta o outro”, diz.

Por meio da relação completa das frentes parlamentares, disponibilizada no portal da Câmara é possível ver que a FPE é composta majoritariamente pelos partidos PSD (28), PSL (27), Republicanos (25), PP e PL (14).

A título de comparação, a Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana tem maior participação do PSD (31), PSL (24), Republicanos (18) e PT e PP (17).

Fazem parte da FPE no congresso os deputados federais por Mato Grosso do Sul Luiz Ovando (PSL), Fábio Trad (PSD) e Rose Modesto (PSDB).

Em Campo Grande, Mylena Fraiha sentia que certas igrejas tinham relação mais íntima com a política partidária, mesmo que não representasse uma propaganda eleitoral. Ela menciona que na Primeira Igreja Evangélica Batista de Campo Grande (PIB) teve contato com figuras da política local como Maurício Picarelli, ex-apresentador de programa de auditório e ex-deputado estadual, e Herculano Borges, eleito deputado estadual pelo Solidariedade.

 

“Tenho fortes críticas a essa relação partidária no sentido institucional em relação a igreja. Não acho que ali seja espaço para divulgação de política partidária. Mesmo que ache que política, no sentido mais amplo, se relaciona em todos os sentidos da vida e a igreja evangélica precisa construir diálogo com movimentos sociais e entender o que está acontecendo com a sociedade”

– Mylena Fraiha

 

Presente na política desde 2008 quando foi eleito para o cargo de vereador em Campo Grande pelo PSC, Herculano é um dos políticos que defende pautas de viés religioso e conservador na Assembleia Legislativa.

“O pastor da PIB chamava o Herculano para fazer orações por lá, por exemplo. No geral, eram pessoas que estavam na igreja e tinham contatos com as lideranças. Confesso que eu não via isso na Quarta, talvez pelo fato de ser uma igreja pequena, com uns 100 membros ativos. Apesar de ter visto, na minha igreja, gente que foi candidato, eles não falavam isso para nós – o pastor nunca deu espaço para que isso acontecesse, e a Quarta definia claramente que não é interessante misturar política partidária numa igreja”.

Em 2020 Herculano encabeçou projeto de lei que definiu atividade religiosa como essencial durante a pandemia de Covid-19, e que foi sancionado pelo governador Reinaldo Azambuja (PSDB).

Em julho, após a interrupção de um culto no bairro Nova Bandeirantes, em Campo Grande, por agentes da Guarda Civil Municipal (GCM) que fiscalizavam ruas da cidade durante toque de recolher imposto para tentar reduzir casos do novo coronavírus, o deputado reclamou da ação durante sessão da Assembleia Legislativa.

Também o pastor na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e deputado estadual Antônio Vaz (Republicanos) reclamou da situação em sessão na casa de leis e exigiu que devessem “tomar cuidado para não cometer nenhuma injustiça”. Segundo a fala do político, havia perseguição: “Afinal não podemos aceitar esse tipo de perseguição e não vamos nos calar diante desse acontecido, para não virar moda”.

Na Assembleia Legislativa, o caso também sensibilizou João Henrique (PL), candidato à prefeitura em 2020, e o deputado Lídio Lopes (Patriota), que encabeça projeto social intitulado “Unidos Pela Fé” e é membro ativo da Assembleia de Deus.

Mesmo que a laicidade do Estado seja prevista na Constituição Federal, a reportagem procurou quaisquer recomendações específicas sobre essa prática nos registros do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), mas nada foi encontrado. A assessoria de imprensa do órgão também foi contatada, mas apenas recomendações mais amplas foram encaminhadas.

O pastor Marcelo diz que há pessoas com outros tipos de ligação com igrejas, pastoral ou não, que se desenvolvem politicamente e que às vezes sequer evidenciam esse elo. “Em Campo Grande, inclusive, alguns colegas dizem que há mais de 130 candidatos evangélicos entre pastores e membros de igreja que se candidataram em 2020. Tem muita gente boa, conheço muitos pastores que deixaram de ser pastores e viraram bons políticos, foram para a vida pública por um ideal, que é completamente digno e garantido por direito. No geral, as defesa por certas pautas não estão relacionadas obrigatoriamente em ser evangélico ou não”.

Ele ressalta que muitos decidem ingressar na política porque querem dar continuidade aos trabalhos sociais que são realizados por comunidades religiosas, por meio de políticas públicas, mas que nem sempre são bem sucedidos. “As igrejas fazem ações sociais, e alguns podem ter uma percepção que pode levar a desejar um espaço maior para isso. Como se fosse um upgrade, para desenvolver o que a igreja já faz socialmente, mas de forma mais eficaz. Não julgo isso, quando é adequado. Mas o ideal não é determinante, porque o jogo político é outro – os órgãos políticos são muito mais ‘exigentes’. A igreja é espaço de boa fé, e para esses é muito mais fácil enganar ou iludir. Há religiosos que representam grupos significativos, mas com pautas que não interessam a outros determinados grupos”.

Na Câmara Municipal de Campo Grande, além do Pastor Jeremias Flores (Avante), ao menos cinco vereadores eleitos em 2016 têm relação com a religião evangélica e buscaram se reeleger em 2020.

Um deles, Antônio Cruz (PSDB) é pastor da igreja Assembleia de Deus Missões e em 2020 ficou como suplente depois de receber 1.497 votos. Da mesma igreja, Junior Longo (PSDB) não conseguiu se reeleger e também está como suplente, depois de receber 2.597 votos. 

Betinho (Republicanos), que participou de Marcha para Jesus na cidade em 2019 e atua como palestrante motivacional em escolas, empresas, universidades e igrejas, foi reeleito com 3.498 votos.

Papy (Solidariedade), que representa a congregação El Shadday, foi reeleito com 3.078  votos em 2020. Por fim, Gilmar da Cruz (Republicanos) é pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e foi reeleito com 4.195 votos válidos, um dos mais votados nesse pleito.

Guilherme Correia

Repórter

Estudante de Jornalismo, entusiasta de futebol e ciência de dados, repórter da Badaró e responsável pela reportagem que você acabou de ler.

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