Pandemia escancara projeto insustentável de país

Por Carolina de Mendonça
Colaborou Leopoldo Neto

Capa por Guilherme Correia

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

(Constituição Federal, 1988, popularmente chamada de Constituição Cidadã)

 

Eu tinha um outro projeto de texto para esta quinzena. Cheguei a começar a escrever o texto no qual falaria sobre trabalho, machismo, redes sociais – tudo isto pela visão da psicologia analítica. Enfim, um dia ele sairá. Confesso aqui que meu texto atrasou a ser escrito, hoje deveria estar pronto, mas por motivos de força maior eu não consegui escrever. Estou com síndrome gripal, em aparente melhora, o que em um momento qualquer seria só uma gripezinha, mas no atual contexto me apavorou – o que, potencialmente, agravou os sintomas.

Sintomas similares aos gripais hoje apavoram pessoas mundo afora. A Covid-19 é a pior epidemia dos últimos séculos e vitimou, apenas no Brasil, até a data em que este texto foi escrito (8) mais de 100 mil pessoas. Que se tem registro. Faltam-se exames, sobram negligencias – de profissionais de saúde que fazem descaso da ciência, de governantes que sedem à pressão da economia, de projetos que visam o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), de um presidente com um projeto de governo genocida. Até dia primeiro de agosto morreram 40 mil pessoas por Síndrome Respiratória sem Causa Revelada, comum em casos de COVID-19.

As tantas vítimas diretas do vírus não são, e nunca serão, apenas um número, são imensuráveis. Um dos projetos criados como forma de lidar com o luto coletivo é o Memorial Inumeráveis que entre arte, poesia e jornalismo, busca manter viva a memória daqueles que a vida foi finalizada pela COVID-19. Matriarcas amorosas que faziam doces deliciosos, tios divertidos que amavam churrasco, torcedores fanáticos, bebês recém-nascidos que eram a alegria da família, jovens profissionais de saúde dedicadas, adolescentes sonhadores e até pessoas com histórico de atleta e boa saúde, mães puérperas que sonhavam conhecer seus filhos.

O Brasil tem as piores taxas de mortalidade entre pacientes obstétricas do mundo, sendo responsável por aproximadamente 77% dos casos fatais deste grupo no mundo, muitas por falta de assistência adequada. Bebês perdem suas mães, sem ao menos tempo de conhecê-las. Por conta da fragilidade dos recém-nascidos, são grupo de risco e se infeccionam. E não há justificativa possível para tamanha negligência.

 Mas há uma explicação para tamanha perversidade: o capitalismo. A maior parte das pessoas que morrem pela Covid-19 são idosos – que não produzem trabalho,  essencial para os lucros da burguesia –, pessoas com histórico prévio de adoecimento crônico (como diabetes, hipertensão), classes que necessitam de assistência de saúde, e pessoas com baixa renda. A pandemia acelera o genocídio em curso daqueles que são considerados inúteis à economia, porém essenciais e inesquecíveis na vida daqueles que os amam.

O distanciamento social foi implementado no Brasil, apesar da negligência na implementação da quarentena, durantes alguns meses o comércio e serviços não essenciais ficaram paralisados na maior parte do Brasil. Por não haver auxílios para micro e pequenos empresários – maiores prejudicados com a crise sanitária e econômica – e existir gigantesca dificuldade de um empréstimo, muitas empresas demitiram seus funcionários, outras diversas decretaram falência.

Sem emprego, muitos dependeram do Auxílio Emergencial, este extremamente burocrático e com uma quantia significativamente inferior a um salário mínimo. A pandemia escancarou a fome no mundo, no Brasil o cenário devastador faz centenas de pessoas se amontoarem em filas nas agências da Caixa Econômica Federal em busca de algum dinheiro para sobreviver, mesmo que minimamente ou vão as ruas trabalhar. O vírus é uma incerteza, mas a fome é certa. Apesar da Constituição prevê a saúde como direito de todos e dever do estado, a quarentena, medida preventiva de saúde para população, não pode ser praticada por todos. E isso é bom para os bilionários, no Brasil houve crescimento na fortuna desses, a crise produziu um trilionário

Em meio à pandemia de Covid-19 há também uma epidemia de violência doméstica. Os índices de denúncias dispararam, se prevê que de subnotificações também. Pela impossibilidade de sair do ambiente doméstico e convivência permanente com o agressor a quarentena se tornou um risco a vida de muitas brasileiras. Somente na Bahia houve um aumento de 150% de vítimas de feminicídio, maior parte negra.

Os jovens brasileiros também vêm apresentando episódios de ansiedade e de depressão mais frequentes. O isolamento e incerteza são catalizadores para tais patologias, assim como vivenciar lutos. Associado a isso também se percebe um alto consumo de álcool na população, deixando-a mais vulnerável. Contudo, não há propostas em larga escala para cuidados em saúde mental por conta desse período, ao contrário, a saúde mental no Brasil encontra-se sucateada, em prol de investimentos públicos em iniciativas privadas com lógicas manicomiais.

A situação é catalizadora para risco de suicídios, o qual se nota aumento de casos. O suicídio é um problema social e em mesma medida existencial. No cenário atual é ratificado que algumas existências não são válidas para o sistema capitalista. Existência da maior parte da população não se é válida ao sistema que transforma sujeitos únicos em números e coloca negligência como fatalismo. “E daí? Eu sou Messias, mas não faço milagres” disse o chefe de Estado brasileiro quando foi questionado sobre um novo recorde de mortes em abril. O número hoje já é pequeno em quantidade, permanece gigantesco por cada vida perdida.

O Brasil hoje tem a média de mil mortes por dia por COVID-19 registradas. Mil pessoas todos os dias. E são reabertos shoppings pelo país afora, bares voltam a ser liberados em algumas capitais, cultos religiosos nunca pararam em alguns locais, mesmo com proibição. Governantes colocam a motivação de reabrir serviços não essenciais, pois é preciso “salvar” a economia. As mortes fazem parte de um projeto de país.

É preciso não negar a gravidade da situação e vivenciar as tantas dores do momento. Negar a dor é parte do projeto que a causa. Em meio a tantos lutos individuais e um luto coletivo sem precedentes, enquanto população precisamos transformar nosso sofrimento em luta. A única forma de não repetirmos tamanho descaso com a vida humana é destruirmos o que nos mantém enquanto apenas engrenagens que podem ser rapidamente substituídas.  

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

Guilherme Correia

Repórter e Subdiretor de arte

Estudante de jornalismo. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

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