Domingos Oliveira em baixo orçamento e alto astral

Por Igor Nolasco

“Este é um filme de baixo orçamento, realizado através de uma associação informal de artistas e técnicos. Filmado em 8 dias (noites) sobre base digital. Este tipo de filme tem um custo 5 a 10 vezes menor que a maioria dos filmes brasileiros. Representa portanto, uma vez que encontre sua viabilização no mercado, a democratização do cinema brasileiro. Sabemos também que o público não se interessa em como um filme é feito […], fazemos aqui apenas um registro para quem possa interessar “.

Nas cartelas iniciais de seu filme “Carreiras”, de 2005, o cineasta Domingos Oliveira apresenta um caminho para a viabilização de produções brasileiras feitas de forma informal e a custo reduzido. Trata as cartelas como uma espécie de manifesto, intitulando a iniciativa de “BOAA – Baixo Orçamento e Alto Astral”. O cineasta faleceu em 2019, mas o manifesto do BOAA talvez ainda possa ensinar algo para as gerações de cineastas do hoje e do amanhã. 

Quando “Carreiras” foi lançado, Oliveira já era um cineasta experiente, com 68 anos de idade. Estreou como cineasta em 1966, com o longa “Todas as Mulheres do Mundo”, filme que viria a se tornar um clássico do cinema brasileiro. Para além disso, o primeiro filme de Domingos ganhou os prêmios de melhor filme, melhor direção, melhor ator (Paulo José, em seu papel mais memorável), melhor produtor, melhor diálogo e melhor argumento no Festival de Brasília, o mais tradicional festival do cinema nacional.

Nos dez anos que seguiram “Todas as Mulheres do Mundo”, Oliveira realizou mais cinco filmes, até que sua carreira enquanto cineasta foi bruscamente interrompida. O realizador decidira focar seus esforços no teatro e na televisão, tendo sido contratado pela Rede Globo. Esse hiato de sua filmografia, que começa a partir do lançamento de “Teu, Tua” em 1976, só findaria mais de duas décadas depois, com “Amores”, em 1998. Quando “Amores” estreou no Festival de Gramado, talvez alguns dos presentes achassem que Domingos iria retomar sua jornada no cinema exatamente de onde havia parado, em “Teu, Tua”. Hoje, passados mais de vinte anos, pode-se apenas imaginar como foi abrupto o choque de encontrar, pelo que era exibido em tela, um cineasta muito diferente, amadurecido (e irremediavelmente influenciado) pelos seus anos no teatro na TV e com novas ideias acerca de como fazer cinema.

Os filmes que Domingos Oliveira fez durante essa segunda fase de sua filmografia seriam os responsáveis por fazer com que o diretor ganhasse a alcunha de “Woody Allen brasileiro”. Não apenas por terem o amor, o sexo e as relações humanas como as temáticas narrativas principais (afinal, essas já eram características dos primeiros filmes de Domingos), mas também pela forma como esses filmes eram feitos. É aí que está a verdadeira lição (ou pelo menos, uma delas) que Domingos Oliveira deixou para o cinema brasileiro.

A partir do primeiro momento em que filmar sobre base digital tornou-se uma possibilidade, o cineasta adotou esse método para seus filmes. Enquanto muitos de seus colegas de profissão no mundo todo obstinadamente declaravam a preferência artística por continuar filmando em película, Oliveira optou pela forma mais prática e (principalmente) barata de se filmar. Do teatro, tirou os esquemas de produção mais enxutos, com elencos reduzidos e foco no texto. Os elencos, aliás, eram majoritariamente compostos por atores com quem o cineasta mantinha franca amizade, dentre os quais frequentemente constava sua própria esposa, Priscilla Rozenbaum.

Se alguém temesse que os filmes da segunda fase de Domingos assumissem uma “estética televisiva” graças aos anos de Rede Globo, talvez encontrasse alívio ao perceber que, em seus melhores momentos, os filmes mais coesos do período tardio da filmografia dominguiana são bem decupados e bem filmados. A contribuição mais notória talvez seja em “Carreiras”, filme que serviu como pivô para o manifesto BOAA e fotografado por Dib Lutfi, diretor de fotografia seminal do cinema brasileiro.

Pensando a Retomada

Impossível compreender a importância da mensagem do BOAA sem considerar o contexto histórico no qual Domingos retoma sua produção cinematográfica. “Amores” estreia ao final dos anos 1990, justamente no período denominado de “Retomada do cinema brasileiro”, caracterizado pelo surgimento de leis de incentivo e por um retorno à produção regular de cinema no Brasil após um período de escassez nos primeiros anos da década de 90. Essa Retomada culmina na criação da Agência Nacional do Cinema, em 2002, e desde então o sistema de produção majoritário para filmes brasileiros de circuito comercial torna-se associado não apenas às leis de incentivo que promoviam financiamentos através de renúncia fiscal, como também aos editais e outros programas.

Ao longo da segunda fase de sua filmografia, Domingos utilizou-se dessas formas de financiamento características da retomada, bem como praticamente todos os cineastas que produziram filmes para circuito comercial na época (e a bem dizer, quase todos até hoje). Suas escolhas técnicas deliberadamente baratas para esses filmes, entretanto, estabelecem o exemplo de como mesmo um cineasta conceituado, com uma filmografia que começa nos anos 1960, não precisava de orçamentos multimilionários para realizar um filme.

Junto com José Mojica Marins, Oliveira faz parte de um time de cineastas que se especializou em lidar com orçamentos enxutos, se não como opção, como condição de um cinema terceiromundista feito em um país que tem uma relação paradoxal com o próprio cinema: um país que pouco valoriza o cinema, mas ao mesmo tempo tem um cinema financiado por políticas públicas. Um país que desqualifica o próprio cinema, mas ao mesmo tempo mal o vê. Um país onde os filmes precisam ser relativamente baratos para que caibam dentro das exigências do financiamento público, mas onde ao mesmo tempo filmar é um ato muito caro para que jovens profissionais sem recursos possam fazê-lo de forma livre e com profissionalismo técnico. Em um país como esse, cineastas como Domingos e Mojica Marins estabeleceram um precedente valioso de ir na contramão dessas adversidades a partir das ferramentas que tinham.

Em sua primeira fase, com filmes como “Todas as Mulheres do Mundo”, “Edu Coração de Ouro” e “Teu, Tua”, Domingos fez um cinema jovem. Jovem por sua temática: seus protagonistas eram jovens, na faixa dos vinte e poucos anos, que estavam lidando com o primeiro grande amor de suas vidas e esbarrando em questões decorrentes dessa inexperiência, como o ciúme. Na segunda fase da obra de Oliveira, seus personagens envelheceram com o diretor. Os filmes passaram a ser protagonizado por figuras de meia idade, recorrentemente integrantes do meio artístico (atores, diretores, escritores…) e lidando com questões adequadas a essa faixa etária, dentre os quais o distanciamento dos amigos de juventude, casamentos que caíram no marasmo, traições e abuso de álcool ou de outras drogas enquanto escapismo do estresse pessoal ou profissional.

Apesar desse amadurecimento temático, em termos de técnica, os filmes da segunda fase se tornaram mais jovens, no sentido de que se tornaram mais práticos de se fazer, mais baratos e mais próximos da realidade dos jovens cineastas contemporâneos, com pouca experiência e poucos recursos. Para além disso, Oliveira ainda se propõe, em algumas ocasiões, a exercícios de auto-análise focados em sua infância (no filme intitulado literalmente “Infância”, de 2014) e no início de sua vida adulta (em “BR716”, de 2016).

O crítico Filipe Furtado resume, em seu texto “Os jogos de cena”: “O intimismo, a autoconsciência e a simplicidade de recursos destes pequenos filmes […] existem em direto contraste com a produção da Retomada […]. Uma recusa ao ‘padrão de qualidade’ […]. Nisso tudo me parece justo pensar essa obra final de Oliveira como uma precursora do cinema jovem brasileiro de baixo orçamento que começa a se destacar desde o fim da década [de 2000], dotada da mesma existência marginal aos meios oficiais de produção e sentimento de liberdade”. Furtado também lista “economia de recursos, […] reutilização de locações de fundo íntimo, tom memorialístico, consciência da ficção e exploração do que há de despojado na filmagem em digital” como elementos recorrentes desse segundo momento da obra de Domingos Oliveira, comparando-o à produção mais recente do cineasta Julio Bressane.

O cinema brasileiro sempre foi uma miríade de complicações (Cacá Diegues teria dito uma vez que “ser cineasta no Brasil é como ser astronauta no Paraguai”), que dentro do contexto da pós-Retomada encontrou um momento difícil nos últimos anos. Um momento progressivamente mais difícil em termos de financiamento, produção, distribuição e exibição. Esse momento tende a se alongar e a continuar piorando. No que tange à produção, a lição do BOAA de Domingos pode ser valiosa para os cineastas iniciantes: baixo orçamento e alto astral, independente das adversidades. Sua obra, com seus filmes ótimos, bons, regulares e ruins, mas sempre feitos com muita vontade, servirá de exemplo para os que buscarem esses meios.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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